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Liceu Alexandre Herculano, no Porto |
Foi numa aula de francês, no Liceu Alexandre Herculano, no Porto. O miúdo que engolia comprimidos do avô está distraído. O professor dá-lhe com o ponteiro na cabeça. O miúdo levanta-se e arranca a vara das mãos de António Cobeira, o mesmo de quem Fernando Pessoa enviou um poema, «A Romaria das Árvores», a Álvaro Pina, para publicação na revista Águia. Mas isso o miúdo ainda não sabe. Por ora dói-lhe a cabeça da bordoada. Mas dela nascerá a amizade com o professor e a descoberta de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em sua casa, ao cimo da Rua Santos Pousada, Cobeira lê-lhe cartas pessoais e manuscritos dos seus dois amigos poetas.
Anos
antes, em Águeda, o miúdo que embirrava com mangas curtas, abre um dos armários
onde estão os livros que vieram de Aveiro, da casa do avô paterno. Folheia uma
revista chamada Orpheu. Começa a ler
um texto longo, assinado por Álvaro de Campos: Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, / olho pró lado da barra, olho pró Indefinido.
Vai por ali fora, entre o horror e o fascínio. Apetece-lhe rasgar a revista,
mas não resiste, não consegue parar. De súbito as palavras perderam o sentido,
estão cheias de mistério, é outra língua na mesma língua. Acaba por riscar a
primeira página, irritado com o seu próprio encantamento. Mais tarde, no
discurso de agradecimento do Prémio Pessoa, dirá que «aqueles riscos
desesperados nas páginas daquele velho exemplar de Orpheu talvez tenham sido o seu primeiro poema». Tal como a
primeira leitura de Mário de Sá-Carneiro ainda hoje se confunde com a paulada
na cabeça que lhe deu o professor António Cobeira. Um dia Miguel Torga
perguntar-lhe-á se já sentiu «o coice da literatura». O miúdo que pregava pregos
numa tábua pensa nas estrelas que viu quando o ponteiro lhe acertou na cabeça.
A poesia bate com força.
In «O miúdo que pregava pregos numa
tábua» (novela), de Manuel Alegre, Publicações Dom Quixote, Alfragide, Abril de
2010 (3.ª edição).
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