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sábado, 24 de setembro de 2016

«Fumo», excerto do romance «O Delfim», de José Cardoso Pires

Imagem encontrada em http://portocanal.sapo.pt/

Fumo: E aqui cortam-me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá da forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura – e eu também. Os olhos ardem-me, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão. Só daí por bastante tempo consigo despegar-me daquele tugúrio consolador, e então pasmo: também a aldeia se encontra coberta de bruma. Bruma ou fumo de pinho?
Depois do dia luminoso que esteve, uma turvação assim, repentina, não engana ninguém. São os ventos a mudar, são eles, os ares do oceano, que entram pela costa carregados de poeira de água, de névoa. Ar marítimo. Correcto, confere com o boletim meteorológico, que, uma vez sem exemplo, se decidiu a cumprir a palavra. De madrugada cá teremos o prometido noroeste, nada quezilento, nada alvoroçado, para impedir, como convém, a fuga das aves para o mar. Só falta que abrande durante a tarde de maneira a proporcionar uma deslumbrante entrada de patos na lagoa ao pôr-do-sol. Isso então é que seria correcto, correctíssimo. Por nada deste mundo queria estar na pele desses cavalheiros que repousam agora nos juncais, ferrados no sono. E nesta conversa já são quase dez horas, quem diria.
As luzes do café derramam-se na cinza clara que repassou a noite, a balbúrdia dos ciclistas aumenta. Gente que chega, um rádio que berra, a mulher que chama pelo filho, e eu cortando esta confusão, rumo à hospedaria. No momento em que vou abrir a porta, trava junto de mim o Morris-850 do Padre Novo.
«Venho agora da Vila. Acabo de encontrar o Engenheiro no posto de gasolina.»
Disse isto sem despegar as mãos do volante. Como se andasse a passar a palavra de pessoa em pessoa e tivesse pressa.

«O Delfim», romance de José Cardoso Pires, Moraes Editores, Lisboa, Outubro de 1978 (8.ª edição).

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

[chegam os jornais da tarde], excerto do romance «O Delfim», de José Cardoso Pires

José Cardoso Pires – foto encontrada em https://aralumiar.wordpress.com
Só agora, dezoito horas e catorze minutos, chegam os jornais da tarde, e faço votos que com notícias de bom tempo. Oxalá. Para honra e glória do melhor ganso da época, é indispensável que a criadita me traga um bom Diário de Lisboa ou um bom Diário Popular que não me falem de chuva nem de vento forte e ainda menos de trovoadas. Indispensável, está em jogo um pacto de rebuçados. E estou eu, que também conto no pacto.
O cauteleiro montou a banca dos jornais numa das mesas à entrada do café, e daqui, dali e dacolá começam a surgir os clientes de todos os dias. Além deles, vêm os de fora, os caçadores que andaram a passear e a visitar as tascas como turistas. Cruzaram-se nos mesmos sítios, ouviram as mesmas pessoas, dentro em pouco já se falam. Quando se encontrarem ao jantar, na sala do rés-do-chão, vão fatalmente trocar impressões sobre a lagoa com os dados que lhes foi possível juntar e em seguida hão-de passar aos cães e às pólvoras e, por vezes, a problemas de leis. Conheço a cantiga. E tu despacha-te, criadita. Esse diário da tarde é importantíssimo para o nosso pacto, os outros caçadores que se lixem. Seja cão se merecem que a gente se preocupe com eles.
Pelo que anuncia o jornal, tudo vai correr amanhã na melhor ordem. Bancos de nevoeiro na costa meridional – não nesta, o diabo seja surdo –, pequena descida de temperatura e o clássico vento moderado que, para cúmulo, sopra de noroeste. Nada mau. Tenho muita pena dos respeitáveis galeirões desta nobre e progressiva terra, mas está escrito. Escusado tentarem fugir para o mar, porque o vento vem contra eles, nem essa salvação lhes resta.
Estendo-me na cama a ler o jornal. Em poucos minutos está visto e deixa-me os dedos sujos de tinta, comprometidos por uma negrura baça de chumbo. É o suor, penso; o amargo e penoso suor de umas folhinhas que nasceram de apreensivos redactores e passaram por cadeias sucessivas de repartições, tesouras, adiamentos, sustos, até serem espremidas nas pesadas rotativas. Esfregando o polegar no indicador, sentimos escorrer o esforço, o fungo quase imperceptível que reveste e que alisa os altos e baixos da nossa consciência. São jornais sem sobressaltos, é o que se pode dizer deles, lendo-os. E é o que eles nos dizem a nós, suando. Foram tão escorridos, tão lavados pela Censura, que sujam as mãos.
Este, em particular, vem exausto. Mensageiro maltratado mas convencido (em artigos de fundo e notas do dia) do seu Valiosíssimo Papel de Órgão da Informação nas Estruturas Nacionais, chegou à Gafeira muito composto de bom senso e com a autoridade de ter preenchido as vinte e quatro páginas que lhe competem. Chegou cansado; sem voz, pode dizer-se.
Abre-se e pouco adianta, a não ser para os desconfiados leitores das entrelinhas. Mas, vá lá, mal ou bem sempre traz um prometedor boletim meteorológico. Esperemos que não falhe. Que, ao menos, não seja tão desastrado como certas previsões da NASA – lembro-me eu, deparando com a fotografia de Edwin Aldrin a sorrir a duas colunas da primeira página.  

«O Delfim», romance de José Cardoso Pires, Moraes Editores, Lisboa, Outubro de 1978 (8.ª edição).

terça-feira, 13 de setembro de 2016

DUNAS, de Carlos de Oliveira

Imagem encontrada em http://www.praiasalagoanas.com.br/

















Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:
«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instala-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem.»

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

PORTA, poema de Carlos de Oliveira

Pintura de Magritte

A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

MAPA, poema de Carlos de Oliveira

Carlos de Oliveira 
(foto encontrada em http://www.andotherstories.org)





















I
O poeta
[o cartógrafo?]
observa
as suas
ilhas caligráficas
cercadas
por um mar
sem marés,
arquipélago
a que falta
vento,
fauna, flora,
e o hálito húmido
da espuma,

II
pensando
que
talvez alguma
ave errante
traga
à solidão
do mapa,
aos recifes desertos,
um frémito,
um voo,
se for possível
voar
sobre tanta
aridez.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O CÍRCULO, de Carlos de Oliveira

Imagem encontrada em http://ibitiramacimentos.com.br/ 















Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho mais parecido com ela do que a areia, só para saber se a áspera exortação da terra, o seu revérbero imóvel na brancura, pode reacender-me os olhos quase mortos.
O que eu tenho andado sobre este círculo incessante; e ao centro o pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-me como um íman ao seu rigor já cego.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

O FUNDO DAS ÁGUAS, de Carlos de Oliveira


Adensam-se as formas vagas, surdindo tumultuariamente de não sei quê desesperado ainda como o mundo dos princípios; adensam-se os elementos, os vendavais, a aspereza do ferro, do cálcio, da lava, a fereza biológica dum fundo que não tem outro destino senão explodir.
Estou a sentir na sombra: um rumor de larvas e sementes, o amor de que sou capaz pela vida e pelos outros; o esboçar dalguma flor negra acordando, um ritmo de versos; caprichos da botânica ou desvios da alma; o vento da harmonia submerso entre caules sanguíneos e rugosos; a breve tempestade das conchas e dos peixes, a grande solidariedade que vos devo.
O que me espanta é a aceitação de cada dia. E desta angústia vou tecendo as palavras, desta água salgada e doce como as lágrimas e o sangue. Tecendo escuramente as palavras.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

LOOK BACK IN ANGER, de Carlos de Oliveira

Fotografia encontrada em http://turma801-gurias.blogspot.pt/

Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital de retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais da prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

MAR, poema de Carlos de Oliveira

Imagem encontrada em http://nalpontes2.blogspot.pt/

Concha
escondida
entre os lírios da espuma
violada
como as portas da vida
que se cobrem
dos «roxos lírios»
do amor,
coalhaste
a praia solitária
de pérolas
e sal.

In «Trabalho Poético», de Carlos de Oliveira, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998 (3.ª edição).

sábado, 3 de setembro de 2016

O EXERCÍCIO DA CRÓNICA com José Saramago, na visão de Maria Alzira Seixo

Imagem encontrada em http://desaramago.blogspot.pt/
A primeira notoriedade de José Saramago adveio-lhe da sua actividade de cronista, através de textos publicados em A Capital (1968-1969) e no Jornal do Fundão (1971-1972), mais ou menos contemporâneos dos seus livros de poesia. Reunidos em volume, tais textos dão origem às colectâneas Deste Mundo e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973), aliás seguidos pouco depois de outros dois livros de matéria assimilável, As Opiniões Que o DL Teve, de 1974, e Os Apontamentos, de 1976. Estas obras revelam um pleno e regular exercício da prosa (por parte de um escritor que entretanto se havia dedicado à poesia) durante os anos, respectivamente, de 1968, 1969, 1971, 1972, 1973 e 1975. Insiste-se, pois, na capacidade de produção regular de José Saramago, sublinhando, por um lado, que a crónica corresponde a um texto curto, de inspiração imediata e não necessariamente aprofundada, de diálogo com o quotidiano ocasional, mas que, por outro lado, por isso mesmo exige grande capacidade de medida e de concentração, possibilidade de resposta a estímulos nem sempre muito relevantes e uma relação com o tempo (e isto parece-nos fundamental) que coloca o sujeito da escrita numa posição polivalente de quem capta a vibração do momento que passa, prolongando as suas ressonâncias pela fundura de um passado que o promove em sabedoria reflectida e pelo projecto de um futuro que o texto pressupõe em acção transformadora, de aperfeiçoamento eficaz. Há, portanto, vários pontos a reter em função do exercício regular da crónica neste ponto da carreira de José Saramago: uma certa coincidência de atitude entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido); uma prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no escritor um treino acentuado dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia expressivas; um hábito de colocar em conjunção de interesses a dinâmica do tempo que se vive (seus acontecimentos, suas marcas específicas), a sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão – numa palavra, a qualidade literária do texto (e veremos como, no fundo, a crónica de José Saramago se articula quase sempre em torno destes três pólos: o tempo, o sujeito e a palavra que fabula a experiência que esse mesmo sujeito entretece com o seu tempo).
Entretanto, há que distinguir as crónicas de Deste Mundo e do Outro e de A Bagagem do Viajante das que formam os conjuntos As Opiniões Que o DL Teve e Os Apontamentos. As primeiras são textos jornalísticos (que do jornalismo colhem a sua brevidade e efemeridade) e assumem uma relação directa com a literatura (na medida em que a crónica, partindo da notícia que faz o tempo, dá mais lugar ao sujeito da escrita que qualquer outro escrito jornalístico, quer no plano da opinião, quer no da sensibilidade); as segundas, de tipo editorialista, eludem a marca mais acentuadamente literária para se proporem como emissões alargadas de uma opinião que se pretende genérica, colectiva, a dos leitores que, na resposta crítica aos acontecimentos do tempo, o jornalista procura representar. Nas Opiniões, Saramago manifesta as interrogações e perplexidades a que podia ter direito a condicionada liberdade de expressão dos tempos do caetanismo; nos Apontamentos (e apenas dois anos mais tarde, portanto), assume uma frontal posição de coincidência com o processo revolucionário de 75, não escamoteando, no entanto (e será bom recordá-lo!), críticas severas a algumas das faces desse processo; dois longos anos, de um lado, seis escassos meses, do outro, em precipitado empenho de construção que se termina pela decepção do seu abalo. É urgente reler estes dois livros à luz do presente, relembrar muitos dos condicionamentos que o imediato ante-25 de Abril impunha à condição humana portuguesa e percorrer com minúcia o modo como o Diário de Notícias acompanhou esse crucial período da nossa história, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro, a ver se de uma vez por todas se tenta compreender uma acção que, com irregularidades e deficiências (que aliás o próprio articulista constantemente admite), marcou de modo determinante a vida portuguesa dos tempos da revolução, que sem a suficiente ponderação se tem de modo fácil e leviano constantemente condenado, muitas vezes como alibi para outros erros e para outras formas menos confessadas de influência incerta sobre o processo democrático que, após o 25 de Abril, nos deu ao menos este bem precioso da liberdade. Tendem uns a esquecer que José Saramago foi figura central dessa acção, para poderem agora enaltecer com boa consciência os seus méritos de romancista; outros manterão bem viva a lembrança da sua luta, e com ela farão esmorecer o reconhecimento da importância da sua actividade literária; como se fosse impossível integrar no modelo de uma personalidade humana coerências, contradições, opções de vida, linhas de acção, tudo o que nos faz ser com os outros e dos outros simultaneamente nos diferencia; como se fosse impossível (talvez porque não seja vantajoso…) reconhecer o outro na sua especificidade insuspeitada e assim eliminar todo, mas todo, o fanatismo. Do nosso ponto de vista, estas duas colectâneas, que vivem fundamentalmente do jornalismo político e conjuntural, sem pretenderem uma integração imediata nos domínios da literatura, constituem documentos de grande importância para a história da cultura contemporânea, ponto de vista de um grande escritor sobre o tempo que ele ajudou a formular.
O essencial da nossa atenção, para uma análise da obra literária de José Saramago, concentrar-se-á, porém, e neste sector da crónica, sobre os escritos que compõem Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante. Costuma dizer o autor, referindo-se à relação que as crónicas entretecem com a sua restante obra, que «está lá tudo»; e, com efeito, quase tudo, pelo menos, parece já lá estar. Não só no que diz respeito à temática: a relação identidade/alteridade; a articulação entre o homem e a terra; o projecto humano e a sua transposição, ou transcendência; a concepção do «homo Viator» e a sua incidência temporal; não só também no que diz respeito à constelação de motivos preferenciais que preenchem essa temática: a água, a embarcação, a estrela, o silêncio, a pedra, o rumor – mas também nas atitudes dominantes: cepticismo radical no limite do desengano em fulgurações entretecido por um ilimitado entusiasmo na capacidade de construção humana, no projecto que é o sonho; mas também ainda na frase tensa que não se fecha completamente à irrupção lírica, na mordacidade que não exclui a ternura, na ironia que quase sempre traz a cumplicidade do afago.
Estes dois livros, de leitura fascinante, põem-nos em contacto com esse tempo essencial que a crónica assume (simultaneamente fragmentado e intenso, dada a brevidade contida de cada texto) – «descobre-se que só violentamente se enchem os dias da vida. E então todo o passado aparece sob uma nova iluminação» DMO, 126 –, percebido por uma sensibilidade, toda olhos e inteligência, que capta o sentido das coisas – «Aqui só se fala de simplezas quotidianas, pequenos acontecimentos, leves fantasias» ou «de verdades que parecem mentiras», BV, 56 – e que se afina de muito perto pela do leitor, quer em atitude de sincronia quer em atitude de provocação – «travo o mais que posso para não me estatelar no tom da gravidade pretensiosa (…), prefiro esta corda cúmplice, entre cronista e leitor que alguma coisa viveram e que, por isso mesmo, não se tomam demasiadamente a sério», DMO, 79 –, relatando factos, não tanto pelo amor do relato, mas para fazer vibrar as coisas, o seu sentido, a sua visão, a nossa passagem por elas e o abrir delas em nós, num estado de permanente reconsideração e descoberta, na abertura de todos os possíveis ao outro lado deles – «ao cair da tarde (…) gosto de andar pelas ruas da cidade, distraído para os que me conhecem, agudamente atento para todo o desconhecido, como se procurasse decididamente outro mundo», BV, 99.
Fotografia encontrada em http://www.cidadedoporto.pcp.pt/
Que campos cobrem as crónicas de José Saramago? Os da actualidade (parte-se por vezes de uma notícia nos jornais); os da memória (regressa-se à infância, suas marcas, suas recordações, suas nostalgias); os do ambiente (evoca-se a cidade, outras cidades conhecidas, o campo, os vários tipos de ruralidade); os da tipologia humana (o amola-tesouras, o cego do harmónio, os frequentadores de café, etc., etc.); os da sugestão frásica e vocabular (um verso, uma frase – a sua capacidade evocativa poderão ser matéria para uma crónica); os da cultura (domínios da arte, vultos de escritores, leituras, etc.); miúdas situações do quotidiano anónimo; efabulações de tipo onírico que hesitam entre a vocação para um destinatário infantil e uma acentuada propensão do escritor para os domínios do maravilhoso e do fantástico que mais tarde veremos concretizar-se melhor na sua restante obra.
São, assim, bastante diversas na matéria, as crónicas de José Saramago; porém em geral obedecendo a um modelo singular que, se não é fixo, se reparte por alternativas não muito diferenciadas. Se o próprio título da primeira colectânea aponta para uma dualidade que, através da coordenação, justapõe complexificando em vez de simplistamente praticar a disjunção (Deste Mundo e do Outro), e se o título da segunda pressupõe a noção de um «homo Viator» que não é limite absoluto de si próprio (embora essa tentação possa surgir no seu caminho) mas entidade essencialmente definida pelos acidentes (acessórios) que congrega no (ou para o) seu caminho – temos nestes dois princípios de indicação estrutural informações fundamentais para a apreensão da sua crónica como prática específica de um género determinado. Na verdade, quase estes seus textos se dividem em duas partes: uma primeira parte de tratamento genérico do tema, sucedendo-se a sua especificação parcelar – sendo esta divisão submetida a variantes, que podem revestir as seguintes formas: enunciado de um tema/derivação para um tema afim; enunciado de um tema/derivação para um tema contrário ou contraditório; narração de um caso, ou fábula, ou história/considerações moralizantes (ou por ordem inversa); e outras. Quase sempre, portanto, a arquitectura discursiva se bipolariza, mantendo como resultado uma tensão ideológica, ou a sua conversão através da ironia ou da conclusão (ou abertura) claramente moralizante. Essa construção dual do texto aponta igualmente para uma oscilação de soluções, para um compromisso incómodo, para a necessidade de escolha, e outras atitudes humanas sempre definidas pela tensão, a incerteza ou mesmo a incompatibilidade.
Porque uma certa distensão epidérmicas no modo de narrar ou de descrever de José Saramago não consegue esconder a violência da crítica (a sua crónica é quase sempre crítica), reflexiva, moralista ou satírica (campos do registo discursivo por onde se expande). Com uma agravante: a da integração e exposição do sujeito da escrita em muitos dos seus textos, integrando-o nesses raciocínios e tensões, englobando-o em todos esses mundos (e outros mais, ou o imenso outro que não é este, e por isso faz vibrar profundamente a nossa imaginação) e fazendo mesmo dele matéria discursiva primeira. Que por isso mesmo não pode evitar a reflexão essencial, a que se orienta em torno da crónica como género, seus possíveis e suas realizações; sempre escudado (para salvaguarda de um pretensiosismo descabido ou de uma literatice incómoda) por essa magnífica capacidade de estabelecer cumplicidades explícitas com o leitor que é um dos maiores encantos da prosa de José Saramago (que assim igualmente exorciza, no apelo da campanha e nos intervalos da violência constativa e crítica, uma enorme sujeição à vulnerabilidade).
No termo deste capítulo sobre a crónicas, forçoso nos é referir ainda um livro posterior de José Saramago que muito tem a ver, não só com o estilo utilizado nestes seus escritos, mas também com a mundivivência e com a concepção do literário que os informa. Refiro-me a Viagem a Portugal, de 1981. Será esta obra, em princípio, integrável na conhecida categoria dos livros de viagens, muito embora a realização da viagem no país de origem e de permanência (como é aqui o caso) não seja componente habitual deste tipo de literatura; neste caso, porém, preferimos integrá-lo numa zona de hesitação entre a crónica e a ficção (zona que adiante especificaremos melhor em relação a outros textos do escritor), não só porque assume grande parte da caracterização com que abrangemos as suas crónicas mas porque se constitui como uma história (quase uma ficção) em que o autor é «o viajante» e em que a especificidade das terras e dos seres com que se cruza durante o seu itinerário determinado perlo país, a sedução ou estranheza que sobre ele exercem, são tratados num registo de seriação descritiva, sim (como na literatura de viagens), mas fazendo avultar os saldos reflexivos e os desvios líricos, quando não irónicos (como na crónica) e, sobretudo, a componente mágica da sua selecção, o entretecer propositado ou casual de atitudes, a fulgurância dos encontros ou a lateralidade das emoções, como faria num dos seus romances.
Aliás, não será por acaso (e citamo-lo apenas a título de exemplo) que uma das crónicas de Deste Mundo e do Outro, que parte justamente da consideração das Viagens na Minha Terra de Garrett, se especifica, na sua segunda parte (aliás aqui homologamente bifurcada), para o tema da viagem, e da viagem na nossa terra, homóloga desse «prazer digressivo» de Garrett, também desvio de caminhos no caminho discursivo do texto. E escreve José Saramago (e repare-se em toda a metáfora imbricada da viagem e do discurso): «Pois (agora é que eu chego) o melhor das Viagens é exactamente a viagem – a crónica. Se o leitor não conhece ou já não está lembrado, abra o livro e saboreie. Começa logo no título: Viagens na minha terra. Lidas estas palavras, faz a gente uma pausa, deixa que os olhos escorreguem para o vago da meditação e murmura: viagens na minha terra. A terra de que se fala não vai além de Santarém, ainda fica muita légua por andar e outros vales com outros rouxinóis – ou sem eles. (…) Deu-se-me um nó na garganta e pus-me a olhar, do horizonte desta mesa, essa terra que é minha, que não conheço toda, que mal conheço, de que tão pouco sei, onde há gente que fala a minha língua, gente para quem escrevo estas crónicas, que são como pontes lançadas no espaço vazio à procura de solo firme onde possam assentar a sua esperança de duração. E então veio-me cá de dentro uma grave e grande cólera contra a literatura que de tudo faz motivo e ocasião. Pensei que uma cura de silêncio. Mais silêncio?, pergunta daí o leitor. Não, respondo-lhe eu: um silêncio diferente. O silêncio de quem reflecte, de quem se recolhe a si mesmo, de quem pensa e mede as suas forças. O silêncio de quem se acha colocado no arranque de uma estrada e convoca as forças preciosas que a viagem lhe vai exigir. A viagem na minha terra, pois é dela que estou falando», 52-53.
A citação é longa, mas demonstra mutas das observações feitas ao longo do capítulo; assim como demonstra a procedência de um dos temas maiores da obra de José Saramago: o tema da viagem. Viagem que ele identifica com a crónica: percurso do espaço, excurso no tempo; a partir do homem: que escreve, situa e, ele só, constrói. «Deito-me ao comprido do barco que a corrente leva e vejo passar ramos verdes, brancas nuvens, céus de azul e pérola, aves prodigiosas. Cai sobre mim uma funda e dolorosa alegria», DMO, 232.

In «O Essencial sobre José Saramago», de Maria Alzira Seixo, Colecção Essencial (n.º 33), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Novembro de 1987 (1.ª edição).

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Quer vencer o pessimismo envolvente? Pense e adira a novos desafios...

Na certeza de que o mercado editorial precisa de crescer, em face de uma população nacional que não tem generalizados hábitos de leitura, a editora Mar da Palavra quer vencer o pessimismo envolvente e, para isso, decidiu marcar o ritmo, utilizando um conjunto de estratégias que, não sendo propriamente revolucionárias, poderão consistir em acções próprias no sentido de contornar alguns escolhos e barreiras num território dominado por grandes grupos editoriais.
A mobilidade estratégica é fundamental. Assim, sem deixar de seguir o seu modelo de «indústria cultural», a Mar da Palavra procura ser mais pragmática. Dessa forma, tenta adaptar-se aos nichos de mercado ou às franjas de leitores não habituais nos planos de intervenção massificada. 
Como dizem os entendidos, «a paciência de chinês», «o começar pequeno» e «a teimosia na visão» são três virtudes do empreendedor cultural e editorial que decidiu percorrer um caminho... Com efeito, a editora Mar da Palavra procura articular saberes distintos, numa realidade cada vez mais transdisciplinar. Por conseguinte, aposta nas parcerias, convicta de que é preciso criar interfaces que aproximem as pessoas.
Contacte-nos!

E-mail: mardapalavra@gmail.com

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

[Eis-me, pois, imperador. Que tolice! Mas ao menos poderei fazer com que leiam os meus livros], capítulo do livro «Eu, Cláudio Imperador», de Robert Graves

Imagem encontrada em http://cabelodoaimar.blogspot.pt/
Eis o que se passou: Calígula saíra do teatro. Uma liteira esperava-o para levá-lo ao palácio pelo caminho mais longo, entre duas alas de guardas. Mas Vinício disse-lhe:
– Vamos pela galeria, que leva menos tempo. Creio que os jovens gregos estão lá à espera, perto da entrada.
– Muito bem, vamos! – disse Calígula.
A multidão tentou segui-lo, mas Vinício ficou para trás e repeliu-a.
– O imperador não quer que o incomodem – gritou ele. – Para trás!
Ordenou aos guardas que fechassem as portas.
Calígula aproximou-se da galeria. Cássio avançou e saudou-o:
– A senha, César?
– Hem? Ah!, sim, a senha! Vou dar-te uma linda hoje: «Velho de saias!»
Por trás dele «o Tigre» perguntou:
– Sim? – Era o sinal convencionado.
– Sim! – disse Cássio, puxando da espada e ferindo Calígula com toda  força.
Queria abrir-lhe o crânio até ao queixo, mas, com a fúria, errou o golpe e atingiu-o entre o pescoço e a espádua. O alto do esterno recebeu toda a violência da estocada. Calígula, cambaleando de dor e de surpresa, olhou em redor com um ar alucinado, quis dar meia volta para fugir. Mas Cássio, rápido, antes que ele se voltasse, atacou-o de novo, fendendo-lhe a mandíbula. Depois «o Tigre», perseguindo-o, abateu-o com um golpe ao lado da cabeça. Ele ergueu-se lentamente sobre os joelhos.
– Fere outra vez! – gritou Cássio.
Calígula ergueu para o céu um olhar de angústia:
– Ó Júpiter… – suplicou ele.
– É para já – gritou «o Tigre», decepando-lhe uma das mãos.
Aquila deu o golpe de misericórdia – uma estocada profunda na virilha – e mais dez espadas mergulharam ainda, para maior segurança, no ventre e no peito. Um capitão chamado Bubo mergulhou a mão num ferimento aberto e lambeu os dedos, exclamando:
– Eu tinha jurado beber-lhe o sangue!
A multidão apinhou-se. De repente deram o alarme. «Os germanos!» Os assassinos não podiam enfrentar um batalhão inteiro de germanos. Precipitaram-se para o edifício mais próximo, que era precisamente a minha primeira casa, utilizada por Calígula para alojar os embaixadores estrangeiros que não queria hospedar no palácio. Entraram pelo pórtico e saíram pela porta de serviço. Todos se escaparam a tempo, salvo «o Tigre» e Asprenas. «O Tigre» fingiu não estar com os assassinos e juntou-se aos germanos, para clamar por vingança. Quanto a Asprenas, fugiu pela galeria, onde o alcançaram e mataram. Abateram da mesma forma dois outros senadores que encontraram por acaso.
Mas era apenas uma pequena parte dos germanos. O resto do batalhão invadiu o teatro e fechou as portas, com a intenção de vingar com um morticínio em massa a morte do seu herói. Daí, os gritos que eu ouvira. Ninguém na assistência sabia que Calígula estava morto, nem sequer que haviam atentado contra a sua vida. Mas a intenção dos germanos era bastante clara, pois davam palmadinhas nas suas espadas e acariciavam-nas, falando-lhes como a seres humanos, como costuma invariavelmente fazer quando se aprestam para derramar sangue. Não havia salvação possível. De repente, no palco, a trombeta deu o toque de «atenção», seguido das seis notas que significam «ordem do imperador». Mnester apareceu e ergueu a mão. O tumulto acabou para dar lugar a soluços e gemidos abafados, pois quando Mnester aparecia em cena era regra ninguém dizer palavra alguma, sob pena de morte imediata. Os próprios germanos pararam no meio das suas palmadinhas e carícias às espadas. A «ordem do imperador» transformava-os em estátuas.
Mnester gritou: «Ele não morreu, cidadãos. Não morreu! Os assassinos arremessaram-se sobre ele e fizeram-no cair de joelhos – assim. Mas ele ergueu-se – assim. As espadas nada podem contra o nosso divino César. Ferido e ensanguentado como estava, ergueu a augusta cabeça e afastou-se com o seu passo divino – assim – entre as alas dos seus covardes assassinos, desconcertados. Os ferimentos tornaram-se a fechar – milagre! Está agora na Praça do Mercado a falar aos seus súbditos do alto da tribuna.»
Uma aclamação formidável atroou os ares. Os germanos embainharam as espadas e retiraram-se do teatro. A oportuna mentira de Mnester (sugerida por Herodes Agripa, rei dos Judeus, o único homem em Roma que conservou o sangue-frio durante aquela tarde fatal) salvara umas sessenta mil vidas.
A verdade já era conhecida no palácio, onde provocava a mais completa confusão. Alguns velhos soldados acharam que a ocasião era esplêndida para uma pilhagem em regra. Cada porta tinha um trinco de ouro, fácil de arrancar com uma espada pontiaguda e que valia seis meses de soldo. Fingiam pois que andavam à procura dos assassinos, aos gritos de «Morram! Morram! Vinguemos César!» Ocultei-me atrás de um cortinado. Entraram dois soldados. Descobriram os meus pés por baixo.
Saí e atirei-me de rosto contra o chão.
– Não me… me… matem, senhores – supliquei. – Eu n… n… não t… t… t… tenho nada com a coisa!
– Quem é este velho senhor? – perguntou um dos soldados, novato no palácio. – Não parece perigoso.
– Como, não sabes? É o irmão aleijado de Germânico. Um rico tipo. Nada mau. Levanta-te, Cláudio, não te farão mal.
Fizeram-me descer com eles ao salão de festas, onde os sargentos e os caporais estavam em conselho de guerra. Um jovem sargento, de pé sobre uma mesa, agitava os braços, gritando:
– A República que se dane! A nossa única esperança é encontrar um novo imperador. Não importa qual, contando que possamos convencer os germanos a aceitá-lo.
 Incitato – propôs alguém a rir.
– Antes ele que ninguém. É preciso descobrirmos alguém imediatamente, para aclamar os germanos, senão arrasarão tudo.
Os meus dois guardiões abriram caminho, arrastando-me consigo.
– Sargento!, olha o que temos aqui! Isto é que é sorte. É o velho Cláudio. Porque não o velho Cláudio como imperador? É quem há de melhor em Roma para isso, embora coxeie e gagueje um pouco.
Aclamações, risos, gritos de «Viva o Imperador Cláudio!»
– Como, senhor! – disse o sargento. – Todos te supúnhamos morto. Erguei-o, camaradas, para que o vejamos.
Dois grandes caporais agarraram-me pelas pernas e escarrancharam-me aos ombros:
– Viva o Imperador Cláudio!
– Ponham-me no chão! – gritei furioso. – Ponham-me no chão! Não quero ser imperador! Recuso-me a ser imperador. Viva a República.
Mas eles limitaram-se a rir:
– Essa é boa! Diz que não quer ser imperador. Modesto, hem?
– Dêem-me uma espada! – gritei. – Prefiro a morte.
Messalina correu para nós.
– Por amor de mim, Cláudio, faz o que te pedem. Por amor do nosso filho. Eles matam-te, se te recusares. Já mataram Cesónia. Agarraram a filhinha pelos pés e fizeram-lhe saltar os miolos contra um muro.
– Tudo se passará bem, senhor, logo que te acostumes – disse um soldado, sorrindo. – Não é assim tão desagradável, a vida de um imperador.
Não protestei mais. Para quê lutar contra o destino? Carregaram-me pelo pátio de honra, cantando o hino ridículo composto para a subida ao Poder de Calígula: «Germânico voltou, eis o fim da nossa miséria.» Pois eu também me chamo Germânico. Forçaram-me a pôr a coroa de folhas de carvalho feita de ouro, que pertencia a Calígula e fora arrancada às mãos dos saqueadores. Para conservar o equilíbrio, tinha de me agarrar com toda a força aos ombros dos caporais. A coroa ficara-me de banda, sobre uma orelha. Sentia-me perfeitamente ridículo. Assemelhava-me a um criminoso que levassem para a execução. As trombetas entoaram a Saudação Imperial.
Os germanos voltavam-se lentamente na nossa direcção. Estavam agora cientes de que Calígula morrera de facto. Tinham-no sabido por um senador que viera ao seu encontro vestido de luto. Furiosos por terem sido ludibriados, haviam querido voltar ao teatro, mas o teatro estava vazio; só podiam vingar-se sobre os guardas, mas os guardas estavam armados. O toque das trombetas decidiu-os afinal. Precipitaram-se para mim, gritando: «Hoch! Hoch! Viva o imperador Cláudio!» Começaram freneticamente a oferecer as suas azagaias ao meu serviço e a tentar atravessar a multidão dos guardas, para virem beijar-me os pés. Gritei-lhes que ficassem onde estavam; eles obedeceram, prosternando-se à minha frente. Fui levado em triunfo à volta do pátio.
Mas quem poderia adivinhar os pensamentos e lembranças que me passavam pelo espírito naquelas circunstâncias extraordinárias? Pensava na profecia da sibila, no presságio do lobo, nos conselhos de Pólio, ou no sonho de Briseis? No meu avô e na liberdade? No meu pai e na liberdade? Na vida e na morte dos meus três predecessores imperiais: Augusto, Tibério, Calígula? Em tudo aquilo a que eu ainda me arriscava, da parte dos conspiradores, do Senado, dos batalhões da Guarda que tinham ficado no acampamento? Em Messalina e no nosso filho ainda por nascer? Na minha avó Lívia, que eu prometera deificar, se me tornasse um dia imperador? Em Póstumo e Germânico, em Agripina e Nero? Em Camila, o meu primeiro amor?
Não, nunca adivinharão o que me passava pela cabeça. Mas vou ser franco e direi a verdade, embora a confissão me cubra de vergonha. Pensava: «Eis-me, pois, imperador. Que tolice! Mas ao menos poderei fazer com que leiam os meus livros. Audições públicas perante uma numerosa assistência. E sem contar que são bons livros – trinta e cinco anos de assíduo trabalho. É de justiça, apenas. Para encontrar ouvintes, Pólio dava banquetes dispendiosos. Era no entanto um excelente historiador e o “último romano”. A minha História de Cartago está cheia de anedotas divertidas. Estou certo de que agradará.»
Eis o que eu pensava. Pensava também em todas as ocasiões que teria, como imperador, de consultar os arquivos secretos e saber exactamente o que se tinha passado em tal ou tal circunstância. Quantas histórias embrulhadas poderia eu destrinçar! Que sorte maravilhosa para um historiador! Como acabais de ver, aproveitei bem. E só muito raramente recorri ao privilégio, que tem o historiador, de imaginar conversas de que apenas conhece o fundo.

In «Eu, Cláudio Imperador», de Robert Graves (a partir da autobiografia de Tibério Cláudio, com tradução de Rogério Petinga), Livraria Bertrand, Amadora, Fevereiro de 1979 (1.ª edição).

AS IMPENSÁVEIS PORTAS DA ILUSÃO, poema de Ana Hatherly

Imagem encontrada em http://www.lanchaarare.com/

O que é que leva o meu barco
para esta praia
onde um poder esquivo
se contenta
com a ambígua oferta de palavras?

Estamos aqui
no exíguo barco do desejo
exibidos
na frágil singularidade do verbo

Insatisfeitos sempre
aguardamos
que se abram
as impensáveis portas da ilusão

In «O Pavão Negro», poesia de Ana Hatherly (com prefácio de Ana Hatherly e Paulo Cunha e Silva), colecção «Poesia Inédita Portuguesa», Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2003 (1.ª edição).