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terça-feira, 17 de junho de 2014

O QUE NOS ESTÁ A SER DITO, texto de José Tolentino Mendonça


Imagem encontrada em http://exame.abril.com.br

A bússola serve para indicar o Norte. A existência de um Norte estabelece uma orientação, um tracejado com o qual passamos a contar. Pode acontecer ao viajante, quando retira a bússola do seu bolso, que esta tenha deixado de funcionar. Mas nesse caso, o viajante sabe que o problema é da bússola e não lhe passa pela cabeça colocar em causa a existência do Norte. Tomemos agora a bússola como metáfora da relação que mantemos com o sentido. Houve, de facto, um tempo em que as fontes de sentido (religiosas, políticas e éticas...) exerciam uma atracão capaz de polarizar e de assegurar todas as procuras. Essas fontes tinham o magnetismo assertivo da agulha de uma bússola e as respostas que davam pareciam simples, naturais e inquestionáveis.
Mas mudanças e ruturas culturais aconteceram. E deu-se uma passagem que podemos descrever assim: na orientação das nossas viagens deixámos de recorrer à bússola e passamos a utilizar o radar. Isto significa o quê? Significa que não estamos mais ligados a uma direção precisa. É verdade que o radar vai em busca do seu alvo, mas essa busca implica agora uma abertura indiscriminada, plural, móvel. Com a bússola era-nos claramente apontado um Norte, e só uma direção: o radar vem potenciar e complexificar a procura. Diversificam-se os sinais e multiplicam-se igualmente os caminhos. As vias da procura espiritual deixaram de ter sentido único.
Hoje estamos perante uma ulterior mudança, porque mais do que investirmos na procura de sinais aqui e ali, garantimos agora sobretudo a possibilidade de recebê-los. Se, antes, o radar estava à procura de um sinal, hoje somos nós a procurar um canal de acesso através do qual os dados possam passar, sem no entanto termos nós necessariamente de fazer a procura. Quando um dado fica disponível (um e-mail, por exemplo), recebemo-lo de forma automática porque temos aberto um canal de receção. O problema atual não é, portanto, encontrar a mensagem de sentido mas descodificá-la.
Os tempos estão a mudar. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O que nos está a ser dito? – é a pergunta necessária. O que é que esta avalanche cultural nos revela? De facto, a grande crise, a mais aguda, não é sequer a dos acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia, sobrepõe-se um problema maior: a crise de interpretação. Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos.

In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).

NOTA: O texto segue o AO90.

UM LIVRO SEMPRE POR LER, texto de José Tolentino Mendonça

Pormenor de pintura na Capela Sistina – Imagem encontrada em thesoftmanias.blogspot.pt

Tem-se tornado justamente famosa a anotação que pertence ao poeta William Blake: as Escrituras judaico-cristãs são um grande código da arte e do Homem. O que é um modo de dizer que a atividade cultural do Ocidente foi ininterruptamente fecundada pelo texto e pela simbólica bíblicas. De facto, sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina, diariamente frequentado por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável que as misteriosas estátuas da ilha de Páscoa. Mas também os grandes museus nacionais, pelo menos os da Europa, tornar-se-iam num arsenal de objetos sem razão e nexo.
A Bíblia representa uma espécie de «atlas iconográfico», um «estaleiro de símbolos». É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens. Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso: é também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. Por isso, o escritor italiano Sergio Quinzio, recentemente, defendia: «A Bíblia deveria ser estudada na escola, e por todos, como se estuda a Ilíada...» Compreender a Bíblia é compreender-se, já que a Bíblia participa de modo determinante no circuito das relações que ligam experiência religiosa e consciência civil na Europa Moderna, a ponto de poder iluminar a própria identidade europeia.
A Bíblia aparece-nos disseminada pelo pensamento, imaginação e quotidiano. Ela continua a ser um texto, claro. Mas também, e de um modo irrecusável, a Bíblia constitui hoje um metatexto, uma espécie de chave indispensável à decifração do real. Da filosofia às ciências políticas, da psicanálise à literatura, da arquitetura explícita das cidades ao desenho implícito dos afetos, da arte dita sacra às formas de expressão que enchem, por toda a parte, galerias, museus, escaparates: a Bíblia é um parceiro, voluntário ou involuntário, nessa comunicação global. O mundo constrói-se na intertextualidade. Como outrora se falava do palimpsesto, temos hoje o zapping, o link, o corta e cola. O texto bíblico participa na construção do mundo, ao mesmo tempo que viabiliza a sua legibilidade.

In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).

NOTA: O texto segue o AO90.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

MORRER É SÓ NÃO SER VISTO, texto de José Tolentino Mendonça


Imagem encontrada em http://algointrinseco.blogspot.com
O verso certeiro de Fernando Pessoa que diz «morrer é só não ser visto» ganhou, nos últimos dias, significados que nos deveriam desassossegar. As notícias que dão conta dos idosos que vivem e morrem em total solidão mostram-nos como a frase de Pessoa não é apenas uma alusão simbólica à invisibilidade dos mortos, mas se tornou uma descrição literal do que, entre nós, acontece aos vivos. Num número que ninguém ainda consegue bem quantificar, mas que os poucos indicadores dão como preocupante e crescente, multiplicam-se as situações de isolamento humano, sobretudo na terceira idade, precisamente quando o cuidado e o acompanhamento deveriam ser redobrados.
Por vezes, no cruzamento apressado das horas, deparamos com um rosto idoso que nos olha por detrás de uma janela, na nesga quase oculta de uma cortina, e fazemos por não pensar muito nisso. Mas que nos dizem esses olhos? Que nos dizem esses olhos que nos olham em silêncio, sedentos de proximidade e de palavra; esses olhos para quem tudo é adiado; esses olhos que se sabem deixados para o fim ou nem isso; esses olhos impotentes e, ainda assim, tão doces; esses olhos que tateiam as coisas e já não estão certos de as reconhecer ou de as poder ativar; esses olhos que desistem um milhão de vezes por dia e nenhuma delas sem dor; esse olhos que se deixaram sequestrar pela televisão a tempo inteiro; esses olhos vazios do que não viram, mas que não desistem de esperar; esses olhos atrapalhados na geografia que alteramos sem aviso; esses olhos que não conseguem perceber a literatura incluída de um mundo que, sem o merecerem, lhes é hostil? Sim, que nos dizem os olhos que encontramos regularmente por anos a fio, ou mesmo só por uns meses, que nos habituamos a reconhecer na nossa paisagem anónima e distraída e, de repente, deixamos de ver? «Morrer é só não ser visto.» Deveríamos escrever o verso de Pessoa na Constituição da República e no nosso coração.

In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).

NOTA: O texto segue o AO90.