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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

[Tornar habituais as formas de cultura], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em www.matraqueando.com.br
Roma, 13 de Setembro – Tornar habituais as formas de cultura, como acontece com os livros que se lêem, se relêem, e entram no quotidiano da nossa vida. Apagar o deslumbramento espantado do primeiro encontro, e admirar calma e demoradamente cada criação, cada solução, cada imponderável toque do pincel ou do escopro. Ver, rever, analisar, assimilar, e regressar mais consciente e mais humilde.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

[há um melro que começa a cantar ainda mais cedo do que eu], registo diarístico de Miguel Torga

Fotografia encontrada em aves-birds-oiseaux.blogspot.com
Coimbra, 28 de Junho – Numa ínsua que fica em frente da janela do meu quarto há um melro que começa a cantar ainda mais cedo do que eu. Rasga a manhã com assobios tão frescos e lavados, que a sonolência que me fica das insónias desfaz-se e dá lugar a uma vontade lúcida de o acompanhar nos gorjeios. A desgraça é que ele é ave e eu sou homem. As nossas modulações paralelas nunca se encontram. Os poemas dele, orvalhos de som, entram na sinfonia cósmica da natureza, e perdem-se no feliz anonimato das coisas que a mão direita deu sem a esquerda saber. Os meus, esses ficam enclausurados numa pasta, prudentemente à espera que mil artimanhas os consigam levar meia-dúzia de ouvidos impuros.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

[a chave do inefável], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em sopoesia.wordpress.com

Coimbra, 26 de Maio [Junho] – O desespero de ser poeta é não poder fazer nada pelos outros, tendo na mão a chave do inefável. Quem o é verdadeiramente e em grande, limita-se a deixar um mundo de purezas ideais ao lado de um outro de impurezas concretas. O poema de Camões nem salvou a Pátria nem morigerou a crueldade dos netos dos conquistadores. É uma epopeia para se aprender a dividir orações.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

[sou um poeta de paredes lisas], registo diarístico de Miguel Torga

Fotografia encontrada em http://ofelino.blogspot.pt/

Porto, 18 de Junho – Não há dúvida nenhuma que sou um poeta de paredes lisas. No escritório dum camarada que visitei hoje, coberto de fotografias assinadas, tive a impressão de estar no gabinete dum caçador de feras, que mandasse curtir as peles das vítimas e as exibisse como troféus. A do leão com uma dedicatória majestática, a do hipopótamo com os olhos na posteridade, a do chacal ainda a sonhar cadáveres...
Tudo enternecedor e autêntico. Mas cruel como todos os embalsamamentos.
Homem de ar livre, a minha poesia não é de autógrafos nem de gavetas. É um golpe de vento no alto de uma serrania, onde subo a ver se consigo oxigenar o sangue e a vida.
Não, quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja. O legado são os livros que deixar impressos. Esses rilhem-nos à vontade.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

[o artista tem de vencer o cansaço que deles se apodera ao fim de meia dúzia de livros], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em http://www.bookess.com/

Coimbra, 31 de Maio – Depois de vencer a resistência dos leitores, o artista tem de vencer o cansaço que deles se apodera ao fim de meia dúzia de livros. Se lhes oferece incessantemente o mesmo prato, ainda que seja perfeitamente condimentado, o gosto não resiste ao hábito; se os espicaça com autênticas novidades, o instinto de conservação reage e defende-se egoisticamente de cada nova aventura. Por isso poucos criadores têm a coragem de agredir sem qualquer preocupação o seu público. Entram num compromisso, e atamancam a velhice como podem, esquecidos de que os admiradores não representam nada na obra, e de que o que é preciso não é contar com eles, mas com ela. Criá-la e dar-lhe o destino implícito na sua estrutura. A uma coisa só o artista deve estar atento: é que os alicerces de granito não tenham um telhado de vidro.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

«Geórgica», poema de Miguel Torga

Imagem encontrada em saraantonio.wordpress.com
S. Martinho de Anta, 6 de Outubro

GEÓRGICA

Se gostas de maçãs, colhe maçãs
Do teu próprio pomar.
Guarda republicana há sempre em toda a parte
Onde não temos nada,
E a força é cega por definição.
Ora no teu pomar
Podes serenamente
Gozar o transitório paraíso.
Na pequenina haste
Que um dia tu plantaste
Nasceram frutos túmidos e doces
Que são teus.
Colhe, pois, esses frutos.
Não faças como o Adão e como a Eva, uns brutos
Que comeram maçãs, mas do pomar de Deus.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

[um artista é exactamente como as tais partículas da física], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem retirada de garanhunslivre.blogspot.com    
Coimbra, 19 de Setembro – Pois então saibam: um artista é exactamente como as tais partículas da física de que não há possibilidade matemática de traçar o destino. Se somos determinados, por que não prevêem o poema que eu vou escrever?




In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

[tão pudico que até as inofensivas intimidades da sua vida cobria dum véu literário], registo diarístico de Miguel Torga

Eça de Queirós – Fotografia encontrada em http://expresso.sapo.pt/

Coimbra, 5 de Julho – «Dizer tudo. Contar tudo. Passar para o papel a verdade inteira, sem deixar dentro da alma o mais pequeno segredo. No artista, até as contas do alfaiate interessam».
Estes críticos esquecem-se de que os escritores são homens. Julgam que somos máquinas de varrer as imundícies dos outros e as nossas.
Dizer tudo, dizemo-lo nós, duma maneira ou doutra. Mas dizemo-lo como queremos, numa confissão que não tem direcção, nem regras.
Um escritor como Eça de Queirós, o mais pudico dos nossos artistas – tão pudico que até as inofensivas intimidades da sua vida cobria dum véu literário –, não teria dito tudo? Ficaria dele algum segredo escondido? Alguém precisa ainda de saber mais?

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

[Único lugar real de emigração], poema de João José Cochofel

Pintura de Claude Monet – Imagem retirada de http://jenniferlynking.blogspot.pt/

Único lugar real de emigração,
aqui te reencontro livre,
meu velho parque deserto
que só as estátuas habitam.
Brincam para ti as crianças,
amam para ti os pares de namorados,
viajam para ti os turistas,
e de te pensarem existes,
pérola de solidão,
árvores, pedra, barcos, risos,
e esse ar de imutável nativa presença
que é feito de quanto para ti
Debussy, Monet, Verlaine
compuseram, pintaram, escreveram.

In «Obra Poética» [«Emigrante Clandestino», 1965], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição).

[Rio-me dos que fazem], poema de João José Cochofel

Carvalho em campo de trigo no Alentejo (Portugal) 
Fotografia de Faísca, encontrada em http://www.acatolica.com/

Rio-me dos que fazem
profissão de poeta.

A poesia não é um cartão de identidade
para exigir nas relações cosmopolitas.
A poesia não é a prova malabar
das teorias dos exegetas.

Talvez a poesia seja afinal e apenas isto
apenas esta maneira discreta de adivinhar
os nexos ocultos que existem
entre a espera cansada dos homens
e o hálito fresco da maresia,
a violência quente das searas,
a nitidez metálica das máquinas.

In «Obra Poética» [«Quatro Andamentos», 1964], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição).

[Ó amendoeira], poema de João José Cochofel

Fotografia encontrada em http://aeppea.wordpress.com/


















Ó amendoeira
assim mozartiana,
toda florescência,
ainda sem rama
nos galhos escuros
onde só a cor
põe a alegria
de vencer a dor.

In «Obra Poética» [«Quatro Andamentos», 1964], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição).

[Faço poesia], poema de João José Cochofel

Imagem encontrada em www.poetanarquista.blogspot.com

Faço poesia
como quem canta ou chora
se tem razões para isso.

A literatura
posso bem ignorá-la.
Só não posso fechar
esta chaga de lume
a supurar
música, legendas, negrume,
lixo.

In «Obra Poética» [«Quatro Andamentos», 1964], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição).

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

[Crepita o lume a compasso], poema de João José Cochofel

Antonio Vivaldi (1678-1741) 
Imagem encontrada em http://www.classicfm.com/composers/vivaldi/

Crepita o lume a compasso
na música de Vivaldi.
Traz a quentura interior
ao calor que até à pele
vem das achas da lareira.

Gozo um casulo só meu
que as técnicas de outros homens,
longe, solidários, dão.

In «Obra Poética» [«Quatro Andamentos», 1964], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição).

[Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro], registo diarístico de Miguel Torga

LAS COLUMNAS DE FUEGO DEL MARQUÉS DE SADE -Imagem encontrada em www.clarin.com

Coimbra, 25 de Maio – O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa inquietação que todos os livros deviam provocar. Uma incerteza, um pavor crescente, um medo de cada vírgula. A segurança burguesa de que as suas leituras foram previamente policiadas, e de que tudo o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção dum garoto que está a roubar pêras num quintal. Quanto à pornografia, há comunicados oficiais piores.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

[Visconti amigo], poema de João José Cochofel

Fotografia encontrada em http://www.casadacultura.unb.br/
Visconti amigo,
tanto eu como tu nascemos tarde.
Ambos amamos os palácios,
ambos amamos as ruínas
que o tempo poupou, e as outras
mais ruínas ainda
por não querermos poupá-las.

In «Obra Poética» [«Quatro Andamentos», 1964], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

«Não», poema de João José Cochofel

«Violino», quadro de Amadeu de Sousa Cardoso, óleo sobre tela
Não,
não temos alma,
amigos poetas de longe,
não temos alma para cantar a certeza
até ao fundo.

A que revela ao mundo,
mesmo nas horas instáveis,
os olhos de Elsa
e os corpos memoráveis.
E traz com ela
o cio que acorda a terra
e tanto dá as árvores ao vento
e as praias ao mar,
como os seios às mãos
e os sexos à gula
de um corpo, lua tangível
e desnuda
em vossos versos reflectida.

Ânsia que vos não erra,
poetas de longe,
límpidos olhos
onde dorme a exacta flor prometida.

Num silêncio trespassado de lágrimas
mais duras que as choradas,
outro era o quinhão que nos cabia:
a cantar esta secura
de água sem nascente.
Um brejo de agruras
onde calam todas as fontes
dos dedos brotadas.

Enquanto num frémito de violinos
molhados de espanto de furar a treva
despertam flutuações carnais abrindo,
tão naturais
como te queremos, Terra!

In «Obra Poética» [«Os Dias Íntimos», 1944-1958], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

«Abre-se o sonho as estradas», poema de João José Cochofel

Imagem encontrada em http://culturadetravesseiro.blogspot.pt/ 

Abre-se o sonho as estradas
de indizíveis paisagens.
Vem desvendá-las,
sonhador de imagens!

Na pele e nos olhos
é que o mundo é bom,
e imaginá-lo
em cor e em som,

na imagem de um verso,
na linha de um estilo.
Sonhando, que importa?
Tudo é senti-lo.

In «Obra Poética» [«Os Dias Íntimos», 1944-1958], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

«Só o coração vai ao leme», poema de João José Cochofel

Foto retirada de http://www.pavconhecimento.pt/

Só o coração vai ao leme
nas águas frias das minhas mágoas.
Só ele não teme
os remoinhos dessas águas.

– Olha! Se perguntarem por mim,
diz que não estou.
Fui de viagem,
a triste viagem em que triste vou.

Perdi quanto era ainda
o leite branco da infância.
Vou de largada,
eu com a minha ânsia.

In «Obra Poética» [«Os Dias Íntimos», 1944-1958], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

«Barcos à beira-rio», poema de João José Cochofel

Foto retirada de vivercomlight.blogspot.com
Barcos à beira-rio
e o bulício do porto.
Eu, com a filha pela mão,
olhando absorto.

O vaivém das coisas e dos braços,
o ar, a cor e o som,
levam-lhe os olhos; a mim os pensamentos.
Da mão dela vem um calor bom,
e estes homens, curvados e baços,
entram pelo meu sonho de todos os momentos.

Bate-me de rijo o sol de Setembro,
alacre e matinal.
Esta mão na minha
é o que a vida vale.

É o penhor humano
de um mundo mais belo;
de quanto fizemos
por ganhá-lo e tê-lo.

In «Obra Poética» [«Os Dias Íntimos», 1944-1958], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

«Faze que a tua vida seja o que te nega», poema de João José Cochofel

Foto retirada de http://cvc.instituto-camoes.pt/
Faze que a tua vida seja o que te nega.
A luta é tua: fá-la.
Agora, os sonhos em farrapos,
melhor é a luta que pensá-la.

Ergue com o vigor do teu pulso;
solda-o em aço.
E da tua obra afirma.
– Sou o que faço.

In «Obra Poética» [«Sol de Agosto», 1941], de João José Cochofel, colecção «Obras Completas», Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1988 (1.ª edição)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

[mais pareciam simples chávenas de chá], excerto do livro «Chá e Amor», de Yasunari Kawabata

Imagem retirada de www.blogclubedeleitores.com     
Fumiko, num tabuleiro, trouxe duas taças.
Eram cilíndricas – e uma era uma Raku vermelha, e a outra uma Raku preta.
Colocou a taça preta diante de Kikuji – e Kikuji logo se apercebeu de que se tratava de um chá vulgar.
Pegando na taça, tentou saber de que mãos de oleiro ela saíra, observando-a sob todos os ângulos. Sem cerimónia, perguntou:
– Que peça é esta...?
– Penso que uma Ryonyu [Raku, porcelana de Kyoto, com origem no séc. XVI. Ryonyu (1756-1834) foi o nono mestre dos fornos de cal de Raku].
– E a vermelha...?
– Também uma Ryonyu.
– Parecem ser um par. – E Kikuji olhou para a taça vermelha, que Fumiko, sem lhe tocar, mantinha sobre os joelhos.
Embora fossem peças rituais, a verdade é que, fora do contexto, mais pareciam simples chávenas de chá – e logo uma imagem desagradável, tal um relâmpago, se implantou na mente de Kikuji.
Morrera o pai de Fumiko – e o pai de Kikuji continuara a viver. Ora não teria acontecido que este par de Raku... Isso, isso: aquelas duas peças não teriam sido utilizadas como simples chávenas de chá quando o pai de Kikuji vinha visitar a mãe de Fumiko? Não teriam sido usadas como chávenas de chá de «um casal», a preta nas mãos do pai de Kikuji, a vermelha nas mãos da senhora Ota...?
Se eram na verdade Ryonyu, qualquer pessoa teria de estar atenta, não se descuidando enquanto as tivesse nas mãos. Mas teriam essas duas taças, enfim, participado em excursões, levadas pelo «casal»...?
Fumiko, certamente a par destas coisas do passado, talvez se estivesse a rir dele. Mas Kikuji não viu qualquer espécie de malícia, nem tão-pouco uma atitude calculista, no facto de ela haver trazido até ele aquelas duas peças de chá... Compreendeu a sentimentalidade da jovem, sem dúvida com um certo ar juvenil, mas uma sentimentalidade que, afinal, também o afectava.
Ele e Fumiko, visitados pela morte da mãe dela, sentiam-se incapazes de se desfazer daquela ridícula (ou melodramática?) sentimentalidade. Aliás, o par de taças Raku acabara por aprofundar o desgosto que os atingira a ambos.
Agora, aquela terna sentimentalidade... Kikuji encolheu os ombros. Oh, sim! Fumiko estava a par de tudo: as relações do pai dele com a mãe dela; as relações desta com ele próprio; a morte, finalmente, da senhora Ota. Depois – ambos tinham partilhado a atitude de esconder aquele tão dolorido suicídio...
Fumiko (via-se nos seus olhos um pouquinho avermelhados) tinha chorado enquanto se dera à delicada tarefa de fazer o chá. E logo Kikuji:
– Estou feliz por ter vindo hoje aqui. Muito me tocou o que há pouco disse... Lembra-se? Que entre os vivos e os mortos não pode haver perdão. Ora bem... Devo pensar ou não que fui perdoado pela sua mãe?
Fumiko acenou que sim:
– Se não fosse assim – disse –, a mãe também não podia ser perdoada. Ela é que não se perdoa a si própria.
– Mas, de qualquer maneira, não deixa de ser terrível que eu esteja aqui consigo...
– Porquê...?
E ela levantou os olhos para ele:
– Acha que foi mau para ela ter morrido? Pois saiba que me mantenho um tanto fria... Tenha-se ela equivocado ou não, ou mesmo que ninguém a tenha compreendido, penso que a morte não deveria ter sido a sua resposta à situação em que se viu envolvida. A morte rompe com todo o entendimento, corta toda a compreensão. Penso que nunca ninguém deveria esquecer isso.
Kikuji mantinha-se silencioso. Pensava, lá muito no seu íntimo, se também Fumiko encaminhava os seus passos para uma confrontação final com o segredo da morte. Estranho, na verdade, que ela tivesse dito que a morte punha termo a toda e qualquer compreensão...

In
«Chá e Amor», romance de Yasunari Kawabata (prefácio e tradução de Pedro Alvim, a partir da versão inglesa de Edward G. Seidenstiker; revisão de Alice Araújo), colecção Escola de Letras, Vega Editora, Lisboa, 2007 (4.ª edição).

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

[A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem retirada de http://poderdoamors2.blogspot.pt
Coimbra, 17 de Junho – A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo deste meu Diário. Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade byroniana pode conceber o absurdo de se julgar pólo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de Rousseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe necessariamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro seja um essencial doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação. Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No meu Diário creio que há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e de alegria.
Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe tão-pouco de artistas que ignora a falta de sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.

In «Diário (3.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de 1973 (3.ª edição).

[A ideia de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência], registo diarístico de Miguel Torga

De Vinne, T. L. : The invention of printing. London, 1877
Coimbra, 5 de Julho – Na tipografia, a ver trabalhar lado a lado máquinas impressoras, desde o velho prelo renascentista até à última rotativa americana. O prelo já só tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até ao infinito. Não são, porém, as características de rendimento que, a meu ver, separam significativamente os vários modelos e espelham a constante trajectorial de toda a criação humana. A ideia de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência, porque, ao fim e ao cabo, estamos sempre diante de aparelhos de imprimir caracteres em papel, e o maior ou menor número de exemplares conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente interesse na comparação destas realizações é a arquitectura aparente de cada uma. O prelo pode ser comparado a uma capela românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer desvio da intenção original. Há uma simplicidade genial na sua estrutura, que lhe dá uma beleza recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza se perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco integral, pasmados e ajoelhados perante um número infinito de rodinhas, de parafusos, de aspiradores, de cilindros e de fios. No colosso que há-de vir, nem vale a pena falar, de tal grandeza será o delírio...
Quanto aos operários que manobram estes engenhos, os que movem o prelo estão numa espécie de fraternidade imediata com ele, que lembra a pureza das relações com Deus na tal sé de arco redondo, onde o corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne desce. E é pouco mais ou menos o que acontece com a máquina seguinte. Uma vez que foi possível aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar naquele movimento como a sombra de um defunto. Na rotativa actual, é de ver, o homem perdeu inteiramente o pé na realidade, e, à semelhança da posição do crente nas igrejas setecentistas, é já só aos ornamentos que os seus olhos ficam atidos. Basta-lhe carregar num botão, para que a sua desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu barroco imaturamente, é que a civilização mecânica corre o perigo de se perder ou de perder a humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a conceber um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum Meteor! Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de sofreguidão, se devorou. Parte da humanidade não tinha acabado sequer de abrir os olhos para a maravilha (e em Portugal a maior parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já a maravilha estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos milagres do nosso tempo. Se não fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que não fomos capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os milagres, tem o seu perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega que não fique lugar para a presença céptica da razão que os fez.

In «Diário (3.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Dezembro de 1973 (3.ª edição).