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quarta-feira, 24 de julho de 2013

A literatura portuguesa, Gil Vicente e Camões sob o olhar de Miguel Torga

Com muitos séculos já de duração – seiscentos e cinquenta anos bem medidos – a literatura portuguesa tem tido, como todos os corpos vivos, as suas horas de pujança e de torpor. Erguida do plano nacional para o plano universal por alguns dos seus obreiros, agrilhoada às fronteiras pátrias por outros, a sua fortuna variou através dos tempos, ora a brilhar, ora a bruxulear. Independentemente do condicionalismo histórico a que esteve sujeita, com três fases sucessivas no crescimento – período de inconsciência, onde não há sombra sequer de propósito criador, mas acaso; período de imitação, em que se copiam sem qualquer rebuço modelos alheios; e período de originalidade, quando aparece pela primeira vez aquilo a que podemos chamar brio ou responsabilidade profissional –, e apesar de certas rugas fradescas que a desfeiam às vezes, e de certo pendor arcaizante que a trava nas horas de corrida, não há dúvida que temos diante de nós uma evidência expressiva, com os seus monumentos inconfundíveis e o seu particularismo temperamental. Evidência expressiva que o tempo há-de acabar por tornar conhecida e amada, uma vez que a consciência do mundo se alarga e o mundo se torna pequeno. Começa a compreender-se que em matéria de cultura não pode haver compartimentos estanques, e que basta uma lacuna para invalidar um juízo universal. Acontece ainda que a língua portuguesa, semeada em vários continentes, alastra cada vez mais. E é de esperar que uma curiosidade viva se debruce sobre as obras em que palpita o seu coração original. Então, não será mais possível a ignorância dum tesouro espiritual onde fulguram Gil Vicente, um génio que fechou com chave de ouro as portas ogivais da Idade Média, e Camões, o único grande poeta dos Descobrimentos marítimos, esse golpe vertical na história da humanidade. Na meditação das criações dum e doutro poderá a burguesia dominante reviver em termos dramáticos e épicos o fim da classe a que se opôs, e o princípio do comercialismo internacional que a consolidou. Isto, pelo menos. Verificar como o primeiro embarcava as Almas maceradas e religiosas do passado nos batéis transcendentes da teologia, antes que o outro povoasse as naus da ventura de homens heróicos e desejosos de conhecer o corpo inteiro da terra mãe, ávidos duma certeza objectiva que era já ciência e finalidade temporal. Na verdade, se na Trilogia das Barcas (do Inferno, do Purgatório e da Glória) atravessavam as águas estagnadas do Letes os restos duma época que se esgotara devorando-se – fazendo, como a cobra do mito germânico, um círculo do seu próprio corpo –, o vento duma outra vida varria o convés das caravelas transatlânticas. Num, a alma em agonias canónicas; no outro, a avaliação do cosmos em que vivemos.
Estátua de Gil Vicente, em Lisboa
Não é que estes aspectos religiosos e sociais sejam tudo quanto se deva tirar dos autos e das farsas do grande dramaturgo ou da epopeia que conta os feitos de Vasco da Gama e dos seus marujos. Longe disso. A graça espontânea do dizer, o lirismo natural, a funda pungência de certas falas, o pitoresco de muitas e variadas situações e, sobretudo, o marulhar duma irreverência que não tem ainda possibilidades de completa expressão, fazem das peças de Gil Vicente realizações singularmente vivas desse período atribulado do espírito humano, insatisfeito já dentro dos seus quadros formais, mas sem força para os quebrar duma vez. Realizações tão extraordinárias, que nunca mais o teatro português viu coisa igual. A corda poética duma fé ingénua, esticada por todos os dogmatismos contra-reformistas, estalou, dramaticamente falando. E será preciso que outra espécie de sublimação humana condicione o aparecimento dum Frei Luís de Sousa, ainda assim menos convincente, pela maior contingência dos seus ingredientes.
Pelo que diz respeito a Camões, aí a poesia voou com asas doutra força em todos os sentidos. Lírico ainda não superado em língua portuguesa – pela finura de sentimentos, pureza da formulação e modernidade de visão da complexidade humana –, pôde ainda erguer-se epicamente à altura da gesta de que foi serôdio participante. Tudo quanto uma inesperada experiência colectiva tinha de angustioso e promissor, de permanente e caduco, de transcendente e rasteiro, aí está gravado indelevelmente nesses Lusíadas, onde, do princípio ao fim, o espírito é uma curiosidade incessante. O homem, agora, não venera apenas um Deus, não teme apenas um medo, não sente apenas uma fome. Universal e cosmopolita, o indivíduo é presa de todas as solicitações do corpo e da alma. Observa os fenómenos da natureza, investiga as leis que regem os astros e os seres, debruça-se inquieto sobre os abismos, mede as distâncias que nos separam do infinito e do finito. Estamos diante do bípede polimórfico da Renascença, essa hipertrofia magnífica e divina de virtualidades até aí açaimadas pela humildade. Tudo pode ser tentado, exaltado ou negado pelo espírito. Deus perdeu a sua omnipotência. A razão desacredita-lhe o melhor da sua força.
Imagem colhida em sociedadedospoetasamigos.blogspot.com
Ao lado de meia dúzia de obras fundamentais que constituem a riqueza indestrutível do mundo, Os Lusíadas têm um lugar à parte. São e serão pelos séculos fora o único padrão artístico desse ímpeto que arredondou definitivamente a terra e a consciência dos que nela habitam. A ênfase patriótica que às vezes os encarna numa visão estreita de nacionalismo, não lhes faz minguar o tamanho, verdadeiramente gigantesco. E podemos considerar tão grande generosidade do destino que coubesse a Portugal a glória de vencer o Mar Tormentoso, como dar-lhe o cantor da façanha. Na verdade, o milagre foi completo: o feito e o seu arauto. Nem lhe falta a ponta do cepticismo que a Idade Moderna não dispensa. No fim da aventura, a náusea do próprio triunfo.

In «Traço de União – Temas portugueses e brasileiros», de Miguel Torga, Coimbra, 1969 (2.ª edição revista) – Excerto de «Panorama da Literatura Portuguesa», conferência realizada na Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, em 17 de Agosto de 1954.

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