Com muitos séculos já
de duração – seiscentos e cinquenta anos bem medidos – a literatura portuguesa
tem tido, como todos os corpos vivos, as suas horas de pujança e de torpor.
Erguida do plano nacional para o plano universal por alguns dos seus obreiros, agrilhoada
às fronteiras pátrias por outros, a sua fortuna variou através dos tempos, ora
a brilhar, ora a bruxulear. Independentemente do condicionalismo histórico a
que esteve sujeita, com três fases sucessivas no crescimento – período de
inconsciência, onde não há sombra sequer de propósito criador, mas acaso;
período de imitação, em que se copiam sem qualquer rebuço modelos alheios; e
período de originalidade, quando aparece pela primeira vez aquilo a que podemos
chamar brio ou responsabilidade profissional –, e apesar de certas rugas
fradescas que a desfeiam às vezes, e de certo pendor arcaizante que a trava nas
horas de corrida, não há dúvida que temos diante de nós uma evidência
expressiva, com os seus monumentos inconfundíveis e o seu particularismo temperamental.
Evidência expressiva que o tempo há-de acabar por tornar conhecida e amada, uma
vez que a consciência do mundo se alarga e o mundo se torna pequeno. Começa a
compreender-se que em matéria de cultura não pode haver compartimentos
estanques, e que basta uma lacuna para invalidar um juízo universal. Acontece
ainda que a língua portuguesa, semeada em vários continentes, alastra cada vez
mais. E é de esperar que uma curiosidade viva se debruce sobre as obras em que
palpita o seu coração original. Então, não será mais possível a ignorância dum
tesouro espiritual onde fulguram Gil Vicente, um génio que fechou com chave de
ouro as portas ogivais da Idade Média, e Camões, o único grande poeta dos
Descobrimentos marítimos, esse golpe vertical na história da humanidade. Na
meditação das criações dum e doutro poderá a burguesia dominante reviver em
termos dramáticos e épicos o fim da classe a que se opôs, e o princípio do
comercialismo internacional que a consolidou. Isto, pelo menos. Verificar como
o primeiro embarcava as Almas maceradas e religiosas do passado nos batéis
transcendentes da teologia, antes que o outro povoasse as naus da ventura de
homens heróicos e desejosos de conhecer o corpo inteiro da terra mãe, ávidos
duma certeza objectiva que era já ciência e finalidade temporal. Na verdade, se
na Trilogia das Barcas (do Inferno,
do Purgatório e da Glória) atravessavam as águas estagnadas do Letes os restos
duma época que se esgotara devorando-se – fazendo, como a cobra do mito
germânico, um círculo do seu próprio corpo –, o vento duma outra vida varria o
convés das caravelas transatlânticas. Num, a alma em agonias canónicas; no
outro, a avaliação do cosmos em que vivemos.
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Estátua de Gil Vicente, em Lisboa |
Não é que estes
aspectos religiosos e sociais sejam tudo quanto se deva tirar dos autos e das
farsas do grande dramaturgo ou da epopeia que conta os feitos de Vasco da Gama
e dos seus marujos. Longe disso. A graça espontânea do dizer, o lirismo
natural, a funda pungência de certas falas, o pitoresco de muitas e variadas
situações e, sobretudo, o marulhar duma irreverência que não tem ainda
possibilidades de completa expressão, fazem das peças de Gil Vicente
realizações singularmente vivas desse período atribulado do espírito humano,
insatisfeito já dentro dos seus quadros formais, mas sem força para os quebrar
duma vez. Realizações tão extraordinárias, que nunca mais o teatro português
viu coisa igual. A corda poética duma fé ingénua, esticada por todos os
dogmatismos contra-reformistas, estalou, dramaticamente falando. E será preciso
que outra espécie de sublimação humana condicione o aparecimento dum Frei Luís de Sousa, ainda assim menos
convincente, pela maior contingência dos seus ingredientes.
Pelo que diz respeito
a Camões, aí a poesia voou com asas doutra força em todos os sentidos. Lírico
ainda não superado em língua portuguesa – pela finura de sentimentos, pureza da
formulação e modernidade de visão da complexidade humana –, pôde ainda
erguer-se epicamente à altura da gesta de que foi serôdio participante. Tudo
quanto uma inesperada experiência colectiva tinha de angustioso e promissor, de
permanente e caduco, de transcendente e rasteiro, aí está gravado
indelevelmente nesses Lusíadas, onde,
do princípio ao fim, o espírito é uma curiosidade incessante. O homem, agora,
não venera apenas um Deus, não teme apenas um medo, não sente apenas uma fome.
Universal e cosmopolita, o indivíduo é presa de todas as solicitações do corpo
e da alma. Observa os fenómenos da natureza, investiga as leis que regem os
astros e os seres, debruça-se inquieto sobre os abismos, mede as distâncias que
nos separam do infinito e do finito. Estamos diante do bípede polimórfico da
Renascença, essa hipertrofia magnífica e divina de virtualidades até aí
açaimadas pela humildade. Tudo pode ser tentado, exaltado ou negado pelo
espírito. Deus perdeu a sua omnipotência. A razão desacredita-lhe o melhor da
sua força.
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Imagem colhida em sociedadedospoetasamigos.blogspot.com
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Ao lado de meia dúzia
de obras fundamentais que constituem a riqueza indestrutível do mundo, Os Lusíadas têm um lugar à parte. São e
serão pelos séculos fora o único padrão artístico desse ímpeto que arredondou
definitivamente a terra e a consciência dos que nela habitam. A ênfase
patriótica que às vezes os encarna numa visão estreita de nacionalismo, não lhes
faz minguar o tamanho, verdadeiramente gigantesco. E podemos considerar tão
grande generosidade do destino que coubesse a Portugal a glória de vencer o Mar
Tormentoso, como dar-lhe o cantor da façanha. Na verdade, o milagre foi
completo: o feito e o seu arauto. Nem lhe falta a ponta do cepticismo que a
Idade Moderna não dispensa. No fim da aventura, a náusea do próprio triunfo.
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