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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

MOMENTO UM (de «Os ossos»), história de Lina Céu

«Os gigantes», Salvador Dalí, 1951.
Era uma vez um gigante e uma anã, não de uma história de crianças, nem de história nenhuma mascarada. Mas eles eram a sério desta vida, da real. E mais estranho, muito mais, é que eles eram simplesmente irmãos. A sério. Tinham exactamente os mesmos pais, que não eram nem uma coisa nem outra, mas normais como todos os pais, ou uma parte deles.
Então viviam numa cas boa e grande. Havia um andar apenas para os pais, outro para o gigante e outro para a irmãzinha anã. O andar do gigante era grande e muito arejado. Tinha um quarto para ele dormir e um salão comprido cheio de luz. O da maninha anã era mais que um andar, tinha também um quintalão enorme onde havia baloiços, tanque de areia e água para ela brincar, nespereiras onde os baloiços estavam agarrados e palmeiras altíssimas, pelo menos quatro, no sítio em que o quintal acabava.
Havia também uns muros de propósito para ela correr e se habituar a correr sem cair e dentro dos limites de muros, para se habituar a limites. Mas quando queria também corria sem muros. Depois das palmeiras e do portão grande é que não.
Nesse espaço maravilhoso e gigantesco que pertencia à irmãzinha havia anões e anãs de propósito para brincar com. É mesmo assim. Brincar com. Era muito feliz e cheia de companhias e de espaços, a mana anãzinha.
O mano gigante é que tinha outro modo de vida. No salão grande que era só dele havia uma arca numa ponta e na outra extremidade uma mesa. Em cima da mesa havia livros, muitos. Dentro da arca, dentro dela, que estava sempre aberta, não, ela não era um caixão, havia ossos. Ossos muitos ossos de todos os tamanhos e feitios. A anãzinha não se lembrava muito bem se havia caveiras. Mas se havia, não lhe teriam chamado muito a atenção. Os braços e pernas e coluna e costelas, desses, desses sim, lembrava-se muito bem.
A mana anã passava muitas horas no salão do seu mano gigante. Não para brincar, que não era ambiente para isso. Mas porque, primeiro, gostava muito do seu mano, segundo, gostava muito do contraste dos tamanhos, terceiro, gostava do salão vazio, do espaço todo, só mesa de um lado com livros, só arca do outro com ossos. Quarto, quer dizer, quarta razão pela qual tinha curiosidade louca pelos livros do irmão e pelos ossos do irmão. Quer dizer, salvo seja, os ossos que ele possuía na arca sempre aberta.
O gigante passava o tempo passeando de um lado para o outro do salão com livros na mão, um de cada vez.
O gigante estudava Medicina.
A anã adorava o irmão, adorava ver estudar, adorava os ossos que o irmão estudava.
Um dia perguntou-lhe: Mano, por acaso não serão esses ossos os do Camões? Porquê?, perguntou o gigante curioso com a curiosidade da sua mana anã. É que aqui só há ossos livros e eu sei que Camões escreveu livros importantes. E o que aqui há é tudo importante, se não o meu mano gigante não estava a estudar tanto.
O gigante sorriu-lhe ternamente como sorria sempre e respondeu-lhe que os ossos do Camões estavam guardados numa arca muito mais importante e guardada num sítio ainda mais importante. E para estudar Medicina se utilizavam os ossos das pessoas muito menos interessantes que geralmente não faziam livros pelo menos que se soubesse. Então a mana ficou satisfeita com esta explicação e achou bem.
Achou que assim estava tudo correcto e lógico.
Um dia em que lá voltou à procura do sorriso terno e das palavras doces do seu mano gigante, disse-lhe ensina-me alguma coisa de Medicina, uma coisa que eu aprenda depressa e não me esqueça nunca. Então ele respondeu-lhe: vou-te ensinar porque é que a tua madrinha de que tanto gostas e devia ser gigante como eu é também anãzinha como tu. E disse-lhe: a paraplegia pótica[1] é produzida pelo abcesso extradural, intra-raquídeo e ante-medular. Diz.
Ela repetiu logo à primeira e nunca mais esqueceu. E já chegava tudo para aquele dia.

In «Histórias de Cá e de Lá», de Lina Céu, Papiro Editora, Porto, Maio de 2010 (1.ª edição).


[1] Alusiva a Percival Pott, cirurgião inglês, 1713-1788.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O LABIRINTO, de Jorge Luis Borges


















Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou com uma cabeça de touro, e em cuja rede de pedra tantas gerações se perderam. Este é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem, e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem, e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações, como Maria Kodama e eu nos perdemos, naquela manhã, e continuamos perdidos no Tempo, essoutro labirinto.

In «A memória de Shakespeare», de Jorge Luís Borges (com Prólogo de Luís Alves da Costa e tradução de Luís Manuel Bernardo e Luís Alves da Costa), Colecção «A Biblioteca de Babel» (n.º 7), Vega (editor Assírio Bacelar), Lisboa, 1994 (1.ª edição)

[A curvatura da onda], por Maria Velho da Costa

Pormenor de imagem encontrada em http://www.scielo.br/

A curvatura da onda é a mão que não apreende. A virilidade do mar está no ronco e na coloratura. O glauco é grave, a paciência, a espessura que dilacera a audição. A sereia é tecida do rochedo erodido à distância, sopro de alvéolos milenarmente tangidos. Sólida, a mulher do homem desfaz sob o bloco abissal a finitude da teia, espuma limítrofe, lateral.

In «Da rosa fixa» (poesia), de Maria Velho da Costa, colecção Graffiti, Quetzal Editores, Lisboa, 1999 (2.ª edição revista).

[Ah os actos, os actos], por Maria Velho da Costa

Fotografia encontrada em http://camelecocacola.blogspot.pt/

Ah os actos, os actos, que perfazem os modos dessa espera. Séculos depois substituía-se ao pente de osso, tear da cabeça, um apuramento de horários e ocultos gestos, humildados, ainda que lassos, diários, a contratação das águas, combustíveis. Sê fiel, ao impraticável regrado. Também Camilo portuguesmente navegou um oceano de pequenos mistérios a prazo.

In «Da rosa fixa» (poesia), de Maria Velho da Costa, colecção Graffiti, Quetzal Editores, Lisboa, 1999 (2.ª edição revista).

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A MONDEGUINA, de Diogo Lucas Linhares


«A Mondeguina» é um poema só. Um único poema percorrendo um livro inteiro, escondendo, entre uma e outra ponta, sorrisos brancos em capas negras. Este livro é a musa honrando o seu Rio, na plenitude da construção, na realização dos desejos dos homens e das mulheres, mesmo antes de os homens e as mulheres saberem os seus desejos. É intemporal, como o antes, o depois e o agora ao mesmo tempo, como um relógio que está desde ontem adiantado. E é os estudantes unidos perguntando de quem é o Rio. É nosso! Num grito bravo, irreverente. Podem tirar-nos tudo. Mas nunca nos tirarão a vontade de atravessar a margem, chegar ao lado de lá. Valeu a pena? Valeu pois.

Diogo Lucas Linhares

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O AUTOR:
Diogo Lucas Linhares  (pseudónimo literário de Diogo Xavier Ferreira Cardoso) nasceu em Coimbra, no dia 21 de Agosto de 1993. É estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Lançou, aos 18 anos, o seu primeiro livro de poesia, «Dias de sorte». Agora, embarca na sua segunda experiência, «A Mondeguina», procurando ouvir o Rio e sentir-lhe as formas.
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FICHA TÉCNICA:
Autor: Diogo Lucas Linhares
Capa: Fotografia de Miguel Escobar
Editora: Mar da Palavra - Edições, Lda.

Colecção: Poemar (N.º 7)
PVP: 10,60 €
N.º de páginas: 56
Formato: 13,0 x 19,0 cm
ISBN: 972-8910-68-6 (EAN: 978-972-8910-68-6)

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https://www.facebook.com/149325878444472/photos/a.401126863264371.88598.149325878444472/828109490566104/?
type=1&theater
http://www.bibliofeira.com/livro/489734627/a-mondeguina-poesia/
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=833399076710225&set=a.122800974436709.22037.100001204215464&type=1&theater
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=510401902434276&set=a.132035266937610.26026.100003934126770&type=1&theater
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1090861637625411&set=a.640090752702504.1073741864.100001047554935&type=3&theater
http://www.livroseleituras.com/web/index.php?option=com_content&view=article&id=2335%3Adiogo-xavier-&catid=102%3Aultimas-propostas&Itemid=165

Apresentação do livro A MONDEGUINA_Casa Municipal da Cultura de Coimbra, 5 de Dezembro de 2014 (pelas 17h30)












CONVITE

A editora Mar da Palavra e o autor têm o prazer de o convidar para a sessão pública de apresentação do livro de poesia “A Mondeguina”, da autoria de Diogo Lucas Linhares (pseudónimo literário de Diogo Xavier Ferreira Cardoso), que se realizará em Coimbra, no dia 5 de Dezembro de 2014 (sexta-feira), pelas 17h30, na Sala José Sebastião da Silva Dias (sala polivalente) da Casa Municipal da Cultura (à Rua Pedro Monteiro).

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

DESPEDIDA, de Yvette Kace Centeno

Fotografia encontrada em https://avesdosazores.wordpress.com/
Saudades terei
só do jardim
da corrida dos melros
sobre a relva
do bailado dos gansos
sobre o lago
e do luar
nas noites de Verão
depois de um pacato
entardecer

Recordo ainda
o coaxar das rãs
melancólico, hipnótico
no jardim envolvente
parecendo voar

In «Canções do Rio Profundo» (poesia), de Y. K. Centeno (com uma pintura de Jacinta Andrade), colecção «pequeno formato» (n.º 25), Edições ASA, Porto, Novembro de 2002 (1.ª edição).

BACK HOME, de Yvette Kace Centeno

Foto encontrada em http://www.deoutramaneira.com

Partir
finalmente partir

o mar azul
ao longe

o barco
preparado

e do ultimo pássaro
o canto desejado




In «Canções do Rio Profundo» (poesia), de Y. K. Centeno (com uma pintura de Jacinta Andrade), colecção «pequeno formato» (n.º 25), Edições ASA, Porto, Novembro de 2002 (1.ª edição).

Que trabalho exasperado, o da língua

Foto encontrada em http://gens-isibraiega.blogspot.pt


















Que trabalho exasperado, o da língua,
essa em que dizes com mão insegura
desvios, desacertos, desalinhos.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 18 de novembro de 2014

«Da salvação das almas», de Jorge Luis Borges

Fotografia encontrada em http://www.livrosepessoas.com/tag/jorge-luis-borges/
Num Outono, num dos Outonos do tempo, as divindades do Xinto congregaram-se em Izumo, mas não pela primeira vez. Disse-se que eram oito milhões, mas eu sou um homem muito tímido, e sentir-me-ia um pouco perdido, entre tanta gente. Para mais, não convém manipular cifras inconcebíveis. Digamos que eram oito, já que o oito é, nestas ilhas, de bom agouro.
Estavam tristes, mas não o mostravam, porque os rostos das divindades são kanjis, que se não deixam decifrar. No verde cume de um cerro, em roda se sentaram. Do seu firmamento, ou de uma pedra, ou de um floco de neve, haviam espiado os homens. Uma das divindades disse:
Há muitos dias, ou muitos séculos, reunimo-nos aqui, para criar o Japão e o Mundo. As águas, os peixes, as sete cores do Arco, as reproduções das plantas e dos animais saíram-nos bem. Para que tantas coisas os não oprimissem, demos aos homens a prole, o dia plural e a noite una. Assim mesmo, lhes outorgámos o dom de poder ensaiar algumas variações. A abelha continua a repetir colmeias; o homem imaginou instrumentos: o arado, a chave, o caleidoscópio. Também imaginou a espada e a arte da guerra. Acabou de imaginar uma arma invisível, que pode ser o fim da História. Antes de que ocorra esse insensato feito, apaguemos os homens.
Ficaram a pensar. Sem se atrapalhar, disse outra divindade:
É verdade. Eles imaginaram essa coisa atroz, mas também há esta, que cabe no espaço que abarcam as suas dezassete sílabas…
Entoou-as. Estavam num idioma desconhecido, e não as pude entender.
A divindade maior sentenciou:
Que os homens perdurem.
Assim, por obra de um haiku, se salvou a espécie humana.

In «A memória de Shakespeare», de Jorge Luís Borges (com Prólogo de Luís Alves da Costa e tradução de Luís Manuel Bernardo e Luís Alves da Costa), Colecção «A Biblioteca de Babel» (n.º 7), Vega (editor Assírio Bacelar), Lisboa, 1994 (1.ª edição).
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UM POUCO SOBRE JORGE LUIS BORGES / Vídeo «Buenos Aires: Las calles de Borges»:
http://livingdesign.info/2011/09/11/buenos-aires-las-calles-de-borges/

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

[…] se a inspiração vos não transbordar da alma […]

Imagem encontrada em http://jorge-pontes.blogspot.pt/

WAGNER
Ah! Quando se vive assim encafuado num gabinete e se contacta com o mundo apenas nos dias de festa, e só de longe, através de um óculo, como se pode aspirar a guiá-lo um dia pela persuasão?

FAUSTO
Nunca o conseguireis, se não sentirdes intensamente; se a inspiração vos não transbordar da alma, se, mercê de violenta emoção, não souberdes arrebatar o coração dos que vos escutam. Ide, pois, concentrar-vos em vós mesmo, juntar e aquecer os restos de outros festins, para assim obterdes um pequeno cozinhado… Ateai uma mísera chama no monte de cinzas onde soprais!... Só então podereis aspirar à admiração das crianças e dos símios, se tal vos apraz; mas nunca conseguireis agir sobre os vossos semelhantes, se a vossa eloquência vos não vier directa do coração.

In «Fausto», de Goethe (tradução de Luiza Neto Jorge, sobre a versão francesa de Gérard de Nerval), Colecção «Livro B» (n.º 47), Editorial Estampa, Lisboa, Julho de 2003 (4.ª edição).