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Foto retirada https://www.facebook.com/wsomersetmaugham
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Mrs. Henderson
pôs-se a trabalhar sem perda de tempo, porque era urgente aprontar a casa, no
menor prazo possível, para receber as crianças de que devia tomar conta. Todos
esperavam que Londres fosse intensamente bombardeada, e os hospitais tinham
instruções no sentido de se prepararem para acomodar vários milhares de
feridos. Os doentes em condições de viajar deviam ser enviados para o campo, e
os que pudessem ser dispensados sem perigo voltariam para suas casas. Houve um
alarme antiaéreo no primeiro dia de guerra, e uma multidão de gente, uns por
brincadeira, outros por medo, a maioria porque achava que se esperava deles
aquilo mesmo, correram aos abrigos ainda inadequados. As autoridades insistiam
na necessidade de se evacuarem as crianças, e os comboios, repletos, partiam da
cidade. Era difícil, em tão curto prazo, encontrar acomodações convenientes
para aquele fluxo diário.
Mrs. Henderson
retirou a mobília da sala de baile e colocou camas pneumáticas, mandadas vir à
pressa de Londres, em duas fileiras ao longo das paredes; esvaziou a grande
sala de visitas e transformou-a em sala de brincar; e na ampla sala de jantar,
só utilizada nas grandes festas, instalou o refeitório. Assim, ficava para uso
da família o hall, decorado por
William Kent – um dos locais mais notáveis da casa – além de uma sala de
visitas e uma de jantar menores, e a biblioteca, com trabalhos de Grinling
Gibbons. A conselho de Roger, ela decidira começar com trinta crianças, que
vieram em dois grupos, um de doze e outro de dezoito. Procediam de Stepney, e
tinham de quatro a doze anos; algumas, eram educadinhas, filhas de
trabalhadores respeitáveis, mas outras deixavam transparecer lamentavelmente a
aviltante pobreza dos pais. Vinham esfarrapadas e piolhentas. Tinham de ser
lavadas, esfregadas e vestidas. As mais novas eram bastante fáceis de tratar
mas algumas das mais velhas, especialmente os meninos, eram duras de dominar.
Tinham hábitos anti-higiénicos, diziam palavrões e revelavam instintos de
destruição. Duas ou três, a princípio, pareceram absolutamente ingovernáveis.
Quebravam tudo o que pezinhos travessos pisavam maldosamente os canteiros, de
modo que nem uma flor ficou de pé. Algumas nunca se haviam sentado, antes à
mesa durante as refeições: comiam sentadas no chão, e quando as obrigavam a ir
para a mesa, numa raiva desesperada, punham-se a atirar ao chão tudo que
encontravam ao seu alcance. Mas talvez as mais difíceis de tratar fossem as que
tinham saudades da família. Sentiam-se assustadas e sozinhas na grande casa
perdida no campo, e cheias de nostalgia das ruas barulhentas e imundas dos
bairros pobres de Londres. Havia também as mães, que vinham durante o dia
visitar os filhos. Muitas ficavam contentes de sabê-los a salvo, e embora
sentissem a falta deles não podiam deixar de ver que lhes fazia bem viverem
aquela vida saudável do campo. Sentiam instintivamente que podiam confiá-los à
bondosa senhora que falava com tanta amabilidade. Mas outras eram mais
difíceis. Achavam ruim a comida simples e sadia que Mrs. Henderson dava às
crianças, e queixavam-se de que elas estavam a passar fome. Outro motivo de
reclamações era que ela fornecesse leite fresco em vez de condensado.
«Mesquinha!» diziam. Estavam convencidas de que Mrs. Henderson recebia dinheiro
do governo para sustentar as crianças, e não procuravam esconder a crença de
que ela estava a fazer um bom negócio. Protestavam contra as roupas novas que
ela lhes comprara; achavam aquilo um acinte à própria capacidade de vestirem os
filhos decentemente; e como todos estavam vestidos da mesma maneira, qualquer
um podia pensar que «eles eram uns enjeitados». Também não concordavam com os
«banhos a toda a hora» que Mrs. Henderson insistia em dar às crianças. «O que
vai acontecer é que eles morrem de frio, os pobrezinhos», protestavam. Muitas
chegaram a insistir para levar os filhos. Esses forma substituídos por outros –
e antes deles chegarem ninguém poderia dizer se seriam bonzinhos e bem
comportados, ou pequeninos bandidos dados a desordens.
Em poucas semanas,
porém, combinando firmeza e brandura, Mrs. Henderson conseguiu criar autoridade
mesmo sobre os mais turbulentos. Com o seu coração bondoso, ela alegrava-se ao
ver que a boa comida e o ar puro os fazia engordar e ficar corados. As mães
mais azedas eram obrigadas a reconhecer que os filhos davam a impressão de ir
muito bem, e admitiam, comicamente vexadas, que a «velha afinal de contas não
era das piores». Foi um triunfo para Mrs. Henderson quando uma mulher ríspida,
de traços duros, mãe de seis filhos, lhe disse:
– A senhora é
mesmo uma dama, não tem que ver. E isto digo-o eu para quem quiser ouvir.
In «Antes do amanhecer», romance de William Somerset
Maugham (tradução de Moacir Werneck de Castro), colecção «Autores de Sempre»,
Livros do Brasil, Lisboa, [1990].
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