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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

BOAS FESTAS e um VERTIGINOSO, ESTONTEANTE, INESQUECÍVEL 2017...

A todos os nossos leitores, autores, ilustradores, paginadores, colaboradores das artes gráficas, livreiros e amigos, desejamos que se sintam felizes e capazes de retemperar forças para um novo ano.
É sempre actual a canção/poema de Ary dos Santos:

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

«poemas ocasionais», de Fernando Miguel Bernardes

(Nota introdutória)

VOZ A ECOAR PELAS QUEBRADAS…

       Dizem-se «ocasionais». De ocasião. Como suspiro d’alma que se dá, de quando em vez, perante o inusitado, ao ler uma frase sentida, ou, mesmo, diante do rumo ziguezagueante de uma Humanidade ora, cada vez mais, a desmerecer inicial maiúscula.
          Voz a ecoar pelas quebradas. Um rio. Já o imperador romano Marco Aurélio escrevia ser a vida qual rio torrentoso: mal acabas de ver a folhinha flutuante, ei-la que já lá vai e, em seu lugar, outra vem, em jeito de abalada.
          E importava parar.
          No parque duma cidade ergueram monumento ao ancião: um banco igual ao banco onde ele passava as tardes a ver as águas gorgolejar, a ouvir as aves trinarem ao desafio: «O octogenário / sentou-se / num tronco / a meditar» (p. 75).
          Para aí voou meu pensamento, ao saborear estes poemas ocasionais.
          Para um rio:
                    lavou avós lavou netos
                    regou no campo o esparteiro
                    rendilhou de verde os fetos
                    da cerca do fazendeiro   (p. 24).

          Para a Natureza:
                    na várzea dos olmos
                    os estorninhos
                    mostram-se esquivos:
                    sobem aos fios

                    e pousam
                    espreitam
                    em redor
                    receiam desafios (p. 74).

          Para a humanidade sem inicial maiúscula. A meter bem fundo o dedo na ferida, para que sangre deveras:
                    de armas na mão
                    e drones no ar
                    sem tripulação
                    e sabem matar

                    corpo-computador
                    frio e desumano…
                    quem o manipula
                    diz-se um ser humano (p. 72).
          
          Por isso, há
                     montes maninhos
                     verduras
                     transgénicas

                     frutas maduras
                     de intervenções
                     polémicas  (p. 65).

      Por aí vamos, embalados ao ritmo do soneto ou de rimas mais libertas, envoltas sempre, porém, numa suavidade que encanta.
         Fazemos nosso o libelo contra os parasitas:
       «Vérmina – disse o doutor, ao ser pelo doente consultado; vermes – disse o eleitor, ao ser, pelos que elegeu, parasitado» (p. 90).
          Lamentamo-nos, evocando o Coriolano de Shakespeare:
        «Eleito a falsas promessas, este no comando agora – ai, ai, Coriolano!... – eis, por fim, tudo às avessas, os cidadãos ao engano!» (p. 81).
       Sentamo-nos ao relento com o sem-abrigo, a ver a Lua: «Tu tens uma cama quente», diz ele, «e a mim o que me ajuda é um travo de aguardente!» (p. 14).
        Sonhamos ser o «construtor da habitação por vir, sem cerca ou alão de prevenir», porque «de todos tudo é e abundante será!» (p. 66); e sorriremos, confiantes de que, um dia, o «clarão aberto» vai mesmo deflagrar (p. 70), qual sereno desabrochar de «rosa rubra na lapela sobre o peito» (p. 92). Cumprir-se-á, assim, uma «última vontade», porque, entretanto, «da tundra ao Tibete», tu «disseste ao meu ouvido: ‘Amo-te!’» «e, do deserto, a cheiro a menta se evolou aos cumes mais elevados»… (p. 79).
          É assim a poesia de Fernando Miguel Bernardes – na perspicaz atenção crítica ao que o rodeia. E as suas palavras são sibilantes flechas certeiras; o objectivo: pôr de novo inicial maiúscula na palavra Humanidade, ao lado de uma outra, que com ela deve rimar também: a Liberdade!

José d’ Encarnação
................................... 

AUTOR:
Fernando Miguel Bernardes nasceu em Gândara dos Olivais, Leiria. Estudou nas Universidades de Coimbra e Clássica de Lisboa, onde se licenciou.
Como engenheiro geógrafo, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo nessa qualidade feito uma pós-graduação em Cálculo Científico.
Docente de Informática no ensino superior particular, exerceu também funções de técnico superior de Sistemas Informáticos numa empresa de construção naval.
Foi ainda director de departamento de uma câmara municipal da Área Metropolitana de Lisboa.
Poemas de que é autor foram musicados e cantados, ou declamados, alguns com gravação em disco  ou DVD (Digital Versatile Disc), por artistas como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Manuel Freire, Daniel, José Jorge Letria, Samuel e José Carlos Ary dos Santos. 
Antes da Revolução de Abril, devido à sua ideologia e posições tomadas como resistente ao regime, foi várias vezes detido, julgado e condenado nos chamados Tribunais Plenários, tendo cumprido as sucessivas penas em prisões políticas de Coimbra, Porto, Lisboa e Caxias. Mais tarde, foi-lhe reconhecido, pela Assembleia da República, o «mérito excepcional da contribuição dada à defesa da Liberdade e da Democracia».
No seguimento da publicação dos seus livros para a infância e juventude, vem visitando escolas do ensino básico por todo o País, para, com as crianças, os pais e os professores, ler e comentar e dramatizar alguns dos seus textos, previamente explorados nas respectivas turmas.
Co-fundador da Organização dos Trabalhadores Científicos, é sócio activo de instituições científicas e culturais como a Sociedade de Geografia de Lisboa, na qual foi inserido como vogal da Secção de Geografia Matemática e Cartografia, ou como a Associação Portuguesa de Escritores, sendo nesta membro efectivo da Direcção.
Integra e coordena habitualmente júris de prémios literários de âmbito nacional e internacional.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

QUASE NADA, poema de Eugénio de Andrade

Fotografia encontrada em http://chc.org.br/

Passo e amo e ardo.
Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
levo comigo uma criança
que nunca viu o mar.

In «Coração do Dia / Mar de Setembro», poesia de Eugénio de Andrade (com texto, reproduzido nas badanas, da autoria de Fernando Pinto do Amaral), Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 3), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro de 1994 (11.ª edição / 12.ª edição).

MAR DE SETEMBRO, poema de Eugénio de Andrade

Imagem encontrada em http://www.heliocristovao.net/

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves – só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.

In «Coração do Dia / Mar de Setembro», poesia de Eugénio de Andrade (com texto, reproduzido nas badanas, da autoria de Fernando Pinto do Amaral), Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 3), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro de 1994 (11.ª edição / 12.ª edição).

DA MEMÓRIA, poema de Eugénio de Andrade

Imagem encontrada em http://www.aspenpitkin.com/

Branco, branco e orvalhado,
o tempo das crianças e dos álamos.

In «Coração do Dia / Mar de Setembro», poesia de Eugénio de Andrade (com texto, reproduzido nas badanas, da autoria de Fernando Pinto do Amaral), Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 3), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Setembro de 1994 (11.ª edição / 12.ª edição).

terça-feira, 29 de novembro de 2016

OS NOMES, texto poético de Eugénio de Andrade

Imagem encontrada em http://www.agronegocios.eu/

Tua mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te afluente-de-junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava, branca-vertente-do-trigo, tudo isto apenas numa sílaba. Só ela sabia como se arranjava para o conseguir, meu-baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito. Assim te queria. Eu, às vezes.

In «Antologia Breve», poesia de Eugénio de Andrade, Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 25), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Maio de 1994 (6.ª edição).

ASSIM É A POESIA, escrevia Eugénio de Andrade

Foto encontrada em http://viajeaqui.abril.com.br/

Não sei onde acordei, a luz perde-se ao fundo do corredor, longo, longo, com quartos dos dois lados, um deles é o teu, demoro muito, muito a chegar lá, os meus passos são de menino, mas os teus olhos esperam-me, com tanto amor, tanto, que corres ao meu encontro com medo que tropece no ar – ó musicalíssima.
28.11.85

In «Antologia Breve», poesia de Eugénio de Andrade, Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 25), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Maio de 1994 (6.ª edição).

A ARTE DOS VERSOS, poema de Eugénio de Andrade

Fotografia encontrada em http://hortaaporta.blogspot.pt/

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

In «Antologia Breve», poesia de Eugénio de Andrade, Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 25), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Maio de 1994 (6.ª edição).

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

AS PALAVRAS, poema de Eugénio de Andrade

Foto encontrada em http://users.isr.ist.utl.pt

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

In «Antologia Breve», poesia de Eugénio de Andrade, Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 25), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Maio de 1994 (6.ª edição).

terça-feira, 15 de novembro de 2016

«À sombra, dar à sombra», poema de Eugénio de Andrade

Imagem encontrada em https://br.pinterest.com

À sombra, dar à sombra
o mesmo nome que dei ao lume.
Até onde me lembro
havia a crespa, alucinada

luz caindo, as laranjas do mar.
O ar não estava ainda cheio de vozes:
falar é semelhante à baba
do prazer mais triste e solitário.

Entre animal e homem, a criança,
o minotauro.
O corpo foi traído, não voltará,
não voltará a ser igual.


In, «Branco no Branco / Contra a Obscuridade», poesia de Eugénio de Andrade (com texto, reproduzido nas badanas, da autoria de Óscar Lopes – «Uma Espécie de Música», 1981), Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 18), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Abril de 1993 (5.ª edição / 5.ª edição).

«O mar. O mar novamente à minha porta», poema de Eugénio de Andrade

Foto encontrada em http://pt.freeimages.com/


O mar. O mar novamente à minha porta.
Vi-o pela primeira vez nos olhos
de minha mãe, onda após onda,
perfeito e calmo, depois,

contras as falésias, já sem bridas.
Com ele nos braços, quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo

seu coração de vidro bater no escuro,
até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.

Este mar, que de tão longe me chama.
que levou na ressaca, além dos meus navios?


In, «Branco no Branco / Contra a Obscuridade», poesia de Eugénio de Andrade (com texto, reproduzido nas badanas, da autoria de Óscar Lopes – «Uma Espécie de Música», 1981), Colecção «Obra de Eugénio de Andrade» (n.º 18), Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Abril de 1993 (5.ª edição / 5.ª edição).

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O RIO, texto de Eugénio de Andrade

Fotografia encontrada em http://oscaminhosdaagra.blogspot.pt/

Chega ao fim, o rio. Vem de longe só para morrer às mãos das vagas. Chega extenuado, o caminho é longo, nem sempre fácil, embora se demore muita vez a contemplar as margens, ora escarpadas, ora em socalcos verdes, entre oiro e carmim. Na foz esperam-no as gaivotas, mas sobre os seus flancos, onde o céu é mais fértil, as garças cinzentas seguem-no de perto – não sei dizer qual destas aves prefere para companhia. O que ele mais ama, sobre isso não tenho dúvidas, são aqueles álamos frios das terras de Sória, onde as suas águas são delgadas e jovens. Os álamos e a música que neles há, quando os anjos lhes acariciam as folhas, que tremem à sua aproximação. É com eles na alma, que se verga por fim o rio às águas salgadas da sua última morada.

In «À sombra da memória», conjunto de textos (de diversos momentos) de Eugénio de Andrade (com posfácio de Gonçalo M. Tavares), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Biblioteca “Obra de Eugénio de Andrade”, Dezembro de 2008, (2.ª edição / 1.ª edição nas Quasi Edições).

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

PORTO DE TODO O MUNDO, excerto do romance Gaibéus, de Alves Redol

Foto encontrada em http://leituras-cruzadas.blogspot.pt/
Naquela noite, na praia de areia fina, onde os avieiros pelo Inverno vêm puxar as redes, só se ouvia o marulhar brando do Tejo a acariciá-la.
Estava noite de luar. Um luar brando de Outono que vestia as coisas de penumbra triste. Piscavam luzes na outra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num concílio de estrelas. Eram constelações de vidas, todas iguais vistas de longe.
A luz que iluminava o senhor não brilhava mais do que a outra que alumiava o servo. Ali não havia casebres, nem palácios. Todas eram irmãs, como ar; estrelas da Estrada de Santiago que polvilhavam de oiro o azul-negro.
Dali os seus anseios partiam para longas viagens, embalados pela dolência das marés, com velas enfunadas pelo sopro da imaginação de cada qual. Até ele vinha o passado, qual história estranha dita pelo Tejo, numa voz meiga e doce. E o passado era triste - mais triste que o badalar de um chocalho vindo de longe.
Ambições naufragadas, restos de alegrias e desditas, de que tinha vaga recordação. O presente era amargo, tão doloroso como o passado.
Mas ali, naquele silêncio, guardava sonhos de criança, como se nunca tivesse entrado na vida e ainda a julgasse uma floresta de frutos de oiro.
Era ali, sentado na praia, de corpo alquebrado pelas soalheiras e pelo trabalho, que vinha fazer a sua viagem de promissão. Na dolência vaga da noite acompanhava-o, às vezes, o trapejar de velas no virar dos bordos.
E ficava-se a olhar as fragatas, embarcando nelas os seus anseios sempre jovens.
A carreira daqueles barcos era curta e não chegava ao mar. Descarregavam em qualquer porto das margens e voltavam de novo, rio acima, em viagem decorada. E todos os dias e todas as noites, enquanto houvesse fretes, até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendidos para encalhar nos valados.
Barcos irmãos da sua vida de alugado.
Também já andara por esse mundo, embarcado como mercadoria. Encontrara homens de outras raças, raças que afinal eram Irmãs da sua. Nunca julgara isso. Sabia agora que o Agostinho Serra pertencia a outra raça e que a sua era a mesma dos negros descarregadores dos molhes dos portos por onde andara. Irmão dos negros que colhiam café e pilavam milho, por essas terras distantes de oiro e febres.
Fora e voltara - sempre passageiro de terceira.
Estava agora ali, trabalharia amanhã no fundo de uma mina a viver em trevas - a sua vida assemelhava-se a uma mina em trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque sabia haver lá em cima outra vida com luz e ar. Vivia na sub-humanidade - morava na cave de um prédio de muitos andares, onde, nos altos, havia lugar para ele e para os companheiros.
O canavial, ali perto, falou à noite. E a noite não lhe respondeu. Só as águas do Tejo contavam histórias estranhas de dramas seus.
Vinha aí a maré alta. Ele desconhecia ainda que a vida dos homens é um rio com marés, um rio com fluxos e refluxos que um dia o havia de trazer para a luz. E as águas não se aquietariam nunca, porque então não seriam de rio, mas de charco. A vida nunca é charco. Rio aparentemente igual e sempre diferente.
Cruzou as mãos por detrás da nuca e assim ficou longo tempo, estendido no areal.
Os rapazes não tinham vindo naquela noite. Não se ouviam os seus brados, nem as suas gargalhadas. Quando eles estavam, via-se moço também. E parecia-lhe que andava com eles a correr e a saltar, esquecido de tudo. Ria-se dos seus ditos, seguia-lhes as brincadeiras.
Mas noites havia de tristeza mais funda. Então, não ficava a esquecer-se de si. Seguia pelo carril do valado e andava sem destino. Ora a passo lento, ora em marcha leve. Os pensamentos acompanhavam-no de mãos dadas.
Aquela era uma dessas noites. Os rapazes tinham procurado outro rumo e pudera ficar só. Silêncio e ele.
E ambos falavam como se se entendessem, como amigos velhos encontrados ao fim de caminhar diferente. O silêncio dizia-lhe palavras que mais ninguém lhe poderia dizer naquela emposta. Falava pelos homens que ainda se não haviam encontrado.
Estavam ali, lado a lado, confessando anseios e desditas, sem erguer a voz. As palavras pareciam rezadas, não fosse alguém traí-las. A noite escutava-os, mas sabia calar os segredos do ceifeiro e do silêncio. Nem as luzes da outra margem, nem as estrelas, conheciam a conversa que ciciavam ao ouvido um do outro.
Dois vultos saíram da negridão e vinham pelo valado. O ceifeiro não os viu, nem ouviu - continuava entregue ao futuro e, embora o seu companheiro se calasse, ficou, como um louco, a falar sozinho. Quando voltou a si, os vultos já estavam sentados na areia; o lume de um cigarro brilhava na praia. Tinham as cabeças voltadas para ele e viu-lhes os olhos vivos e iluminados de interrogações. Talvez alucinação, mas bem os sentia penetrarem-lhe o cérebro, agora inundado pela sua presença.
Voltou-se para o outro lado, mas aqueles olhares vogavam no Tejo, como a tremulina da luz do luar, mas lucilavam mais, porque eram interrogadores. E subiram depois pela noite, piscando na outra margem; aqui, isolados num casal, mais adiante, na mancha dos luzeiros de lugarejos e vilas.
Sentiu vontade de se erguer e tomar o carril, caminhando sem destino, como quando os rapazes vinham e precisava isolar-se. Mas chegara primeiro e o corpo pedia-lhe repouso. Cerrou os olhos e o olhar dos outros brilhou mais dentro do seu.
Se não havia onde fainar ou nas horas de comer, os dois encontravam sempre motivo de conversa - diálogo igual, mas novo a cada hora. Sabiam de cor os projectos de há tanto sonhados. Trabalhavam na mira de os realizar - talvez no ano próximo. Tiravam à barriga o escasso que ganhavam, porque só assim poderiam partir.
Aquela ideia avassalara-os, dominando-lhes a vida. Andavam sempre juntos, como se o sonho estivesse dividido pelos dois e só assim pudesse ser repetido.
Devoravam as horas a falar dele, antevendo ambientes que o João da Loja lhes criara quando contava, aos serões, as suas aventuras por outras terras. Aquele homem, de quem se diziam os maiores crimes, tornara-se no alvo dos seus desígnios e na rota do seu futuro. Os dois companheiros punham-se sempre mais perto a escutá-lo; de quando em quando, trocavam olhares entre si, porque o sonho era de ambos e o desejo de abalar dominava-os a todo o momento.
Aqui nunca mais passariam da mesma piolheira. Trabalhar de dia para comer de noite... e mal. Condenados a uma pena, terem porta por onde se via a liberdade e ficarem entre grades à espera da morte.
- Isso é que não!... -concordavam ambos. Não queriam fortuna - se viesse, melhor -, mas granjear trabalho, pão certo e alguma coisa para a velhice; quando os anos pesam, não há patrão que conheça o servo.
Naquela noite, tinham vindo até à praia, trocando vagas palavras, mais pensativos do que palradores. As quatro paredes lá da terra não as podiam vender, pois as mães precisavam de telha; também eles quando regressassem encontrariam abrigo. Já ia em cinco anos que aquela ideia os tomara: desde então, nunca se desprendera deles.
Agora tornara-se parte integrante do seu corpo - como se aquele rumo lhes fosse marcado no berço por fatalismo. Nunca lhes dera para se prenderem a um rancho e virem à Lezíria fazer uma temporada larga. Os outros voltavam mirradinhos de febres, a caminho da botica ou do bruxo, e aquela marca nunca mais passava.
Eles esgaravatavam por todos os lados e sempre conseguiam fugir a tais contratos. Neste ano tudo correra pior e não podiam ficar de braços cruzados, metendo a mão no saco das economias para tirar, em vez de lhe juntarem alguns cobres, mesmo poucos.
Suplício constante, aquela miragem de partir - suplício e esperança das horas amargas.
O rio fora-os atraindo como a estrada da sua evasão. Tinham caminhado para ali, sem o ouvir, mas sentindo-o chamar. Ficavam agora a dois passos da sua carreira, como se em breve fundeasse o barco que os levaria para as terras do João da Loja.
Ali era o cais de embarque e mais outro companheiro esperava também o momento de abalar. Não tinham malas, nem sacos. Mas partiriam com os anseios, e isso bastava aos emigrantes.
As estrelas no céu prometiam-lhes boa viagem. E interrogavam-se, mudos.
Reviam todo o sonho acalentado durante cinco anos. Imaginavam as cidades e os campos da nova pátria, onde iriam trabalhar - trabalhar em quê?...
Em tudo o que braços humanos pudessem pegar. Não havia melindres na escolha, nem hesitações. Começariam outra vida, mais dura talvez, mas mãe. Sorria-lhes a casa onde à noite voltavam, felizes da jorna, embora quebrados de fadigas. E os carinhos das companheiras, mulheres estranhas que os seduziam, acalentavam-lhes o corpo e davam-lhes ímpetos para lutar. O trabalho não os arrefentava - nunca se tinham furtado a dar o seu esforço.
Contudo, queriam pão certo - queriam ser homens. Tudo se vestia de cores novas para os receber e acarinhar: as cidades e os campos, as casas entre flores e as companheiras.
Vida de trabalho, sim, mas vida de homem.
Falta pouco para embarcar, o navio não tarda. Não lho disseram; eles porém adivinhavam-no, pois o rio agita mansamente as águas para embalar o barco.
O companheiro que espera ainda não deu palavra e parece triste. Talvez pense na mulher e nos filhos. Razão tiveram eles para nunca se comprometerem. Depois, sim, quando voltassem...
Se o outro ceifeiro não estivesse para ali tão alheado, iriam perguntar-lhe quais as razões do seu acabrunhamento. Emprestariam ainda a sua fé àquele companheiro abatido e silencioso.
- Eh, camarada!... - disse um deles.
O outro não se moveu. Olharam-se e ficaram a ouvir os seus sonhos.
- Camarada!... - gritou mais alto.
O brado encheu a noite. O ceifeiro rebelde continuou estendido na areia; por fim voltou a cabeça, contrariado.
- Vossemecê sabe onde vai ter esta água"!
A resposta tardou. Quando veio, a voz soou-lhes frouxa ou dorida.
- Vai por aí abaixo...
Logo se esqueceu de que o tinham interrogado. Os rapazes não vieram ainda jogar ao «primeiro da bela mula» e prefere ficar só. Porque viriam aqueles dois companheiros despertá-lo agora- Não lhe agradava moer o tempo em conversas para entreter. Falariam do trabalho e de mulheres, das suas terras e dos seus amigos. Conversas de quem nada tem para dizer e procura palavras fiadas.
- O camarada parece que anda a modos doente... Silêncio.
Um deles chegou-se mais ao ceifeiro rebelde, quase a tocar-lhe:
- Alguma sezãozita por aí a minar...
- Na!...
A cara do gaibéu agradou-lhe. Era magra e o olhar não o feria.
E continuou, erguendo o busto e fixando-se nos cotovelos:
- Já tenho o coirão curtido.
- Dos anos daqui!...
- Pois! Agora... só alguma para cavalo é que cá entra.
- Ah!... vossemecê é cá do sítio?
- Não fui parido na borda de nenhuma aberta, ande lá. Sou daqui perto, nem quase me lembro donde. De Aldeia Galega!...
- Não conheço - interrompeu o outro gaibéu.
- É para riba?... - interrogou o outro.
- Na!...
E indicou para o sul num movimento de cabeça.
- Fica ali no mar da Palha.
Os gaibéus quedaram-se contrafeitos, sem perceber e sem perguntar. E volveram os olhos para aquele lado. Um deles inclinou-se para trás, apoiando-se também aos cotovelos.
- Vossemecê sabe onde é que isto vai ter?... E apontou o rio, a cobrir a praia aos poucos.
- Isso nem se sabe, homem.
- Ao fim do mundo...
- E o mundo é grande...
- Longe?!...
Estavam no porto à espera do barco que os levaria na viagem para a liberdade. Só sabiam que iam partir com mais um companheiro. Assim seria melhor, pois nascera ali perto e podia dizer-lhes tudo o que ansiavam conhecer.
- Ao fim do mundo - respondeu o ceifeiro rebelde.
Os gaibéus entreolharam-se confusos. Não se haviam enganado, ainda bem. Daquela praia poderiam abalar para as terras de além, donde o João da Loja voltara rico.
- Contou-me um marinheiro quando embarquei. Esta água Vem vai a Lisboa e depois mar fora. E os mares são muitos e é só um. 
                                                                                                                                      In «Gaibéus», romance de Alves Redol, Colecção «Livros de Bolso Europa-América» (n.º 11), Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1971.