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segunda-feira, 7 de junho de 2021

Novidades Literárias

21 de Julho de 2018 

Houve um período, que felizmente acabou há já algum tempo, em que acreditei que, se uma narrativa não fosse absolutamente nova, se não fosse comparável senão a si própria e a nada mais, melhor seria deitá-la fora. Tratava-se de uma atitude extremamente presunçosa e ao mesmo tempo extremamente ingénua. Assentava na hipótese não declarada de eu ser dotada de capacidades extraordinárias, seguindo-se daí que, se essas capacidades não se manifestassem em obras absoluta e preciosamente únicas, me restava tirar lucidamente as seguintes conclusões: estava a trair-me a mim própria por preguiça, por facilitismo, ou a minha hipótese era completamente infundada. Em suma, não valia a pena escrever, se não estivesse em condições de escrever coisas que fossem, ao mesmo tempo que completamente diferentes, melhores do que livros que amava e que tinham estado na origem da minha obsessão narrativa. Com o tempo mudei de opinião. Hoje fio-me pouco nos que dizem: eis um livro verdadeiramente novo. De verdadeiramente novo em literatura não há senão o nosso modo extremamente individual de usar o depósito da literatura planetária. Estamos mergulhados naquilo que nos precedeu. Não entendo os manuais escolares que alinham cronologicamente autores, vidas e obras, das origens aos nossos dias, nem a lista detalhada das leituras que fizemos dos sete anos em diante. Não há um antes do qual sejamos o depois. Toda a literatura, grande ou medíocre que seja, é nossa contemporânea, acumula-se à nossa volta enquanto escrevemos, é o ar que respiramos. Por conseguinte, as nossas páginas nunca são “novas” no sentido que a indústria cultural dá ao adjectivo. Constituem antes a marca do modo como, querendo ou não querendo, nos alimentamos da tradição para exprimir – no seu interior – a nossa individualidade. Nenhum autor isolado esgota em si próprio a literatura produzindo textos sem dívidas. Não existem obras que cortem cerce com o passado, obras que o dispensem, obras que separem as águas. A novidade literária – se se quiser mesmo insistir nesse conceito – é dada pelo modo como cada indivíduo habita o magma pelo qual é arrastado. Tarefa árdua, portanto, distinguir-se e talvez também não realmente necessária. Surpreendem-me os que exibem provocantemente a sua “novidade”, que se consideram únicos, que não querem admitir influências. É uma exibição espectacular de arrogância para uso dos media, ou uma manifestação do terror de não se conseguir ter uma individualidade própria, como se esta só se pudesse manifestar negando a matéria literária que nos constituiu e constitui. Na realidade nem sequer Homero foi alguma vez “novo”. Provavelmente o autor singular toma a cada vez forma, graças a um esforço de reordenamento do material literário que o precede. E de facto já não é pouco.

Crónica de Elena Ferrante (com tradução de Miguel Serras Pereira), incluída no livro «A Invenção Ocasional», Relógio D’Água Editores, Lisboa, Julho de 2019.

 

Notícias a cântaros



14 de Julho de 2018

    Não tenho a obsessão de me sentir informada sobre tudo o que acontece no mundo. Em mais nova limitava-me a passar os olhos por alguns títulos de jornal e via o noticiário televisivo sem qualquer continuidade. Foi o crescente interesse pela política, que explodiu por volta dos vinte anos, que me impeliu a acumular notícias. Tinha a impressão de ter vivido até esse momento de maneira distraída e tive medo de vir a viver a minha vida sem me dar conta sequer dos desastres, dos horrores à minha volta. Temia tornar-me uma pessoa superficial, com as suas cumplicidades inconscientes, com o seu desinteresse culpado. Assim, impus-me a leitura dos jornais e, como me pareceu que tal não bastava, passei aos livros de História Contemporânea, à Sociologia, à Filosofia. Houve um período em que, violentando a minha natureza, deixei até de ler romances, uma vez que isso me parecia roubar tempo à necessidade de viver o meu tempo com olhos bem abertos. Mas não fiz grandes progressos, era sempre como se houvesse entrado na sala depois de o filme ter já começado e tivesse de me esforçar por me orientar. Onde estava o bem, onde o mal? Quem era justo, quem injusto? Quem interpretava os factos e quem os distorcia? Um esforço que não acabou, pois antes me parece hoje mais difícil do que no passado procurarmos compreender como vai o mundo sem descobrirmos, já tarde, que fomos distraidamente coniventes com a corrupção do género humano. A chuva ininterrupta de notícias não ajuda, não ajudam os livros, não ajudam as sempre novas fórmulas sociológicas que simplificam brilhantemente a realidade. Tenho, pelo contrário, a impressão de que o sistema da informação, nas suas articulações em papel e electrónica, impõe aos cidadãos uma espécie de caos informativo, uma condição em que, quanto mais nos informamos, mais nos confundimos. O problema, portanto, para mim, não é estar informadíssima, mas detectar na massa inutilmente dilatada das notícias as que me sirvam para distinguir a tempo o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior. Tarefa dificílima. Tive sempre uma grande admiração por quem, do interior das convicções mais diversas, na desordem que é própria de todo o presente, intuiu desde o início os perigos enormes do nazi-fascismo e os denunciou com coragem. Mas seremos ainda capazes de sermos sentinelas que vêem longe? Existirão hoje condições para vermos longe? Às vezes parece-me compreender porque é que nós, mulheres, somos cada vez mais leitoras de romances. Os romances, quando funcionam, servem-se de mentiras para dizer a verdade. O mercado da informação, na sua guerra em torno das audiências, tende cada vez mais a transformar as verdades mais insuportáveis em romanescas, apaixonantes, gratificantes mentiras.

Crónica de Elena Ferrante (com tradução de Miguel Serras Pereira), incluída no livro «A Invenção Ocasional», Relógio D’Água Editores, Lisboa, Julho de 2019.