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Imagem retirada de http://www.angolaeseusfilhos.blogspot.pt/
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Avancemos então por aí fora. Um livro é como uma estrada, muitas são as curvas, ora avança ora recua, ora vai dar a nenhures, que é talvez onde agora estou. Na terra de ninguém, ou aquela que fica junto à fronteira e que sempre tanto me fascinou, Talvera, diz-se em provençal, a língua, como a italiana, da poesia. Talvera, junto à raia, terra de ninguém. Ou a terra de ninguém da guerra, a clássica e a moderna, uma pequena clareira perto de Quipedro, eles de lado de lá, no meio da floresta, nós do lado de cá, por detrás de jipes, unimogues e GMC. Veja-se onde um livro nos leva, da palavra nenhures à palavra Talvera, e desta que não é propriamente a de ninguém da guerra das trincheiras, mas a do perigo e da morte, a uma clareira no meio do mato, entre Nambuangongo e Quipedro, em Angola, tenho vinte e seis anos, o miúdo que pregava pregos numa tábua está agora deitado de espingarda na mão, não tem espelho onde se mire, veste uma farda camuflada, não sei se o rosto será o mesmo, nem o rosto nem o resto. As balas assobiam, batem na chapa das viaturas, haverá sempre uma bala a assobiar, na prosa e no verso, na escrita e na vida. Uma bala assobia pelo livro dentro, fura o caderno que trago na mochila, enche de terra e sangue uma antologia do Eugénio de Andrade que levo para ler à noite em Quipedro onde, neste momento, não sei sequer se chegarei. Quem chega é o Zé Pedro, vamos chamar-lhe assim, companheiro de pelotão em Mafra, veio de Zala para me desenrascar, cigarro ao canto da boca. Isto só vai à bazucada, diz ele, que sabe do que fala e nem sequer gosta da guerra, já estava contra antes de partir, o problema é que não há como escolher, caímos na emboscada, agora temos de nos safar.
–
Faz tiro a tiro – diz Zé Pedro –, tens boa pontaria, assim bates melhor o
terreno, eu vou mandar-lhes uma bazucada.
Mas
antes que o faça, as balas deixam de bater nas chapas, já não passam por cima
de nós a assobiar.
–
Piraram-se – diz o que veio de Zala para me ajudar. – Vamos esperar mais um
bocado, pelo sim pelo não enfio-lhes à mesma uma bazucada, o barulho
assusta-os.
–
Assustados estamos todos – respondo eu.
–
Pois é, mas antes os gajos do que nós.
E
zás.
Pode
ser que se tenham assustado com o disparo, mas quem tem os ouvidos a chiar sou
eu.
Quarenta
e seis anos depois, é essa a chiadeira que sinto dentro dos meus ouvidos, um
zumbido que parecia de cigarras no Verão e, agora, por causa da escrita e do
som metálico da bazuca, se transforma neste estrondo de guerra diante da página
que é uma clareira no meio do mato entre Nambuangongo e Quipedro.
In «O miúdo que pregava pregos numa tábua»
(novela), de Manuel Alegre, Publicações Dom Quixote, Alfragide, Abril de 2010
(3.ª edição).
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