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sábado, 29 de março de 2014

«Terramoto 2 – País meu», poema de Lina Céu

Imagem encontrada em http://www.publico.pt/ - Foto de Nuno Ferreira Santos

País meu, má fortuna, amor ausente
Onde está o Abril que resgatou
Tanta tortura e morte e apagou
Com cravos e sem sangue a dor presente?

País meu, onde está a nossa glória
De sermos nação livre, independente,
De termos mente sã e sangue quente
Que fizemos por nós a nossa História?

País meu, foi má sorte ou desvario
Tal como um ventre grávido que amou
Que gerou filhos mas que não pariu?

País meu, sonho meu ou espelho meu
Da velha História que pra trás ficou
Onde está nosso orgulho, onde estou eu?

In «A raiz e o fruto – Sessenta sonetos em dois andamentos com pausa», de Lina Céu, Papiro Editora, Porto, Fevereiro de 2012 (1.ª edição).

«Oceanos e mares», poema de Lina Céu

Fotografia encontrada em http://www.mapansantos.com.br/

Oceanos e mares não são apenas
Água salgada mais gelada ou quente
Nem só fauna e flora e muita gente
Que vive nela, com barbatanas, penas

As barbatanas nadam e labutam
Felizes e infelizes sobrevivem
E as penas voam, sofrem a vertigem
São pássaros e povos, sofrem, lutam

Oceanos e mares comem terra
Outras vezes devoram, matam, curam
Apoiam nas tormentas e na guerra

E salvam muitas vidas e procuram
Abraçar continentes e países
Beijando os seres humanos que os torturam!

«A raiz e o fruto – Sessenta sonetos em dois andamentos com pausa», de Lina Céu, Papiro Editora, Porto, Fevereiro de 2012 (1.ª edição).

«Rio», poema de Lina Céu

Fotografia encontrada em http://aminhaconfusao.blogspot.pt/

A água do Mondego corre calma
Límpida não, apenas só serena
Sem lágrima de Inês, sem dó, sem pena
Que o rio não tem mais sonhos, não tem alma

Nasceu, cresceu e corre lentamente
E nele se junta o Dão, o Alva, o Ceira
É genuíno, autêntico, é da Beira
E a Estrela é serra e mãe, fonte e nascente!

Tantos poemas se escreveram, tantos,
Tantos amores ao pé de ti amaram
Quantas mãos criminosas te estragaram

Agora já não há sonhos nem prantos
Apenas água fria, como em nós,
Um rio que nasce e corre para a foz…

In «A raiz e o fruto – Sessenta sonetos em dois andamentos com pausa», de Lina Céu, Papiro Editora, Porto, Fevereiro de 2012 (1.ª edição).

sexta-feira, 28 de março de 2014

29 DE ABRIL (19h00), NO PALÁCIO GALVEIAS, EM LISBOA: APRESENTAÇÃO DO LIVRO «AS ÁRVORES NUAS», DE LINA CÉU



A Biblioteca Municipal Palácio Galveias, a editora Mar da Palavra e a Autora, Lina Céu Brito Canhão Martins de Carvalho, convidam V.ª Ex.ª para a sessão de apresentação pública, em Lisboa, do livro de poesia «As árvores nuas» (com prefácio do médico e escritor J. M. Pinto Serra), no dia 29 de Abril de 2014 (terça-feira), pelas 19h00, no Palácio Galveias (ao Campo Pequeno).
A obra poética será apresentada pela Dr.ª Maria Teresa Cid (professora do ensino secundário e universitário). 

segunda-feira, 17 de março de 2014

«mnemónica platónica que nada tem a ver com a poesia», poema de maria toscano

Imagem encontrada em http://kelpney.blogspot.pt/

todos
farsentos
ternurentos
sedentos
– mesmo os isentos –
somos instrumentos

do Amor

Coimbra, R. Bonfim, 22 Julho 2003

In «a artesã do desengano», de maria toscano, Pé de Página Editores, Coimbra, Novembro de 2003 (1.ª edição).

[os espelhos mudos estão embaciados], excerto poético de maria toscano

Anel de espelhos proposto por Arnaud Lapierre, na Place Vendôme, em Paris

já vejo, enfim, pois os espelhos mudos estão embaciados
(para isso se inventaram e desembaciámos os espelhos)
já vejo. urge-me o olhar. ergo-me a olhar de frente.
já herdo. por mãos de ofício, herdo a poderosa terra,
a rude côdea amassada por mãos de ofício lavrada
nessa laboriosa arte do desgoverno da carne
por mãos de oferecimento no ofício do momento
já herdo a carne mestiça.

In «a artesã do desengano», de maria toscano, Pé de Página Editores, Coimbra, Novembro de 2003 (1.ª edição).

sexta-feira, 14 de março de 2014

[Diante dum caderno seu, nós que nunca descobrimos nada (paz aos Descobrimentos!), como poderemos aceitar sem escândalo aquela imaginação exaltada], observação de Miguel Torga sobre Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci
Coimbra, 8 de Novembro de 1952 – Um convite, que recusei, para falar de Leonardo da Vinci. É preciso saber resistir às tentações de Satanás, mormente numa terra onde nunca se soube apreciar devidamente o alcance dos seus sortilégios. Que poderia eu dizer de interessante e original sobre uma experiência humana que nunca teve em Portugal, já não digo aproximação, mas pelo menos compreensão?
A grandeza de certas figuras é tanto delas como de exegese que se lhes junta. Ora, se formos a ver o que da nossa vida cultural consta desse esforço vivificador dos mais arrojados pioneiros do espírito, é uma desolação. E, necessariamente, quem tente fazê-lo pela primeira vez, na hipótese feliz de ser capaz disso, nem sequer pode ser entendido. Saber sei eu que Leonardo foi no palco do mundo um actor sem medida. Que, mesmo entre as demais extraordinárias presenças do Renascimento, a sua se destaca duma maneira tão singular que causa calafrios. Que há nele o que quer que seja de irredutível, de atómico, de subversivo. Mas todos nós aqui somos reaccionários. Histórica e fisiologicamente condenados às várias contra-reformas do pensamento. Clericais ou anticlericais, tanto faz – pois ambas as situações são formas degradadas da fé e do ateísmo –, nada mais fizemos em oitocentos anos de vida mental do que ralhar uns com os outros no adro das igrejas. E se nos é sensível o génio de Miguel Ângelo, por ser ainda religioso ou super-religioso – submisso, portanto, a um sistema onde se respira a ordem estabelecida, embora cada símbolo que a exprime seja hipertrofiado –, uma personalidade como a de Leonardo não é compreensível à nossa catolicidade. Na medida em que a sua força calca aos pés a humildade da Idade Média, as suas convenções e superstições – que nos governam ainda –, e lança aos quatro ventos do mundo a heresia de se conceder ao homem o poder de tudo tentar, de tudo realizar, de nada lhe ser defeso, é-nos impossível deixar de lhe fugir apavorados. Tais veleidades são-nos vedadas por serem pecados mortais. E arredamo-nos horrorizados do tentador que pela primeira vez propôs à consciência alarmada do seu tempo o direito a todas as aventuras da inteligência.
Diante dum caderno seu, nós que nunca descobrimos nada (paz aos Descobrimentos!), como poderemos aceitar sem escândalo aquela imaginação exaltada, onde as ideias se atropelam como as chamas duma fogueira? A própria multiplicidade das invenções, e o atraso com que vieram a ter realização, nos confunde. Esquecidos de que é preciso tempo para se esmoer tudo quanto é verdadeiramente novo, ficamos inibidos de compreender que ali o que verdadeiramente tem significado é o puro jogo do espírito, no seu afã de criar, de inventar seja o que for – pára-quedas, tambores automáticos, carros de assalto –, coisas úteis, inúteis, ou até perniciosas. Uma disponibilidade incansável que passe por cima do que é moral ou imoral, da noção de pátria, de família ou de qualquer sentimentalismo limitador.
Leonardo representa na história da humanidade o primeiro individualismo integral, a imposição do génio por si só. Das trevas da negação mística do homem, um sujeito aparece e diz: Eu sei isto, e aquilo, e aqueloutro, faço e aconteço! E começa a impor as suas afirmações sem uma imprensa por detrás a apoiá-lo, sem outros capitais senão os do seu talento.
Divino, agora, não é Deus; é quem seja capaz de pintar A Ceia ou possa escrever o memorando que Leonardo enviou a Ludovico Sforza. Com a orgulhosa consciência do seu poder intelectual, Prometeu vai outra vez tentar o impossível. Pela mão da confiança em si mesmo do novo titã, o esplendor da especulação grega tem finalmente a sua resposta prática. Aos teóricos do passado, opor-se-ão os realizadores do presente.
Claro que é precisamente nesse individualismo militante que reside a falência de Leonardo. Um homem assim tem de ser omnisciente, é obrigado a construir tudo de raiz. E aí vai ele utilizar tintas do seu fabrico, que se dissolvem umas nas outras como se quisessem regressar à confusão do Génesis, ou ensaiar técnicas votadas de antemão ao insucesso.
Mas até dessa falência, de que se apercebeu, pôde tirar Leonardo conclusões subtis e fecundas. Certamente por verificar que a solidão moderna que iniciava, embora criadora, é sempre solidão, a súmula da sua mensagem é de nada propor, a não ser um naturalismo trágico, de porfiada representação e transposição mecânica de toda a actividade vivente. A desolada visão antecipada do pragmatismo que tem hoje o fulgor conhecido: Um avião a voar como os pássaros, um submarino a nadar como os peixes...
E culmina aí a nossa perplexidade. Crentes optimistas, é-nos completamente alheio o primeiro sorriso do cepticismo moderno. Sorriso que tem a mesma finura e melancolia nos lábios da Gioconda, de Santa Ana e de S. João Baptista...
E Leonardo continua diante de nós impenetrável como um mistério. No florido caminho da bem-aventurança analfabeta em que vivemos, o enigma cruciante de uma outra Esfinge, ainda mais terrível e dilemática! O impenitente redutor das ideias ao concreto, a olhar-nos com a ironia irredutível da sua descrença na crença do homem!

In «Diário» (6.º volume), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

quinta-feira, 13 de março de 2014

[O que escrevo tem pelo menos a virtude de ser motivado de dentro], registo diarístico de Miguel Torga

Fotografia encontrada em http://livrespensantes.blogspot.pt/
Coimbra, 21 de Julho de 1952 – Cada vez mais isolado e alheado das tricas literárias, cá vou indo no meu chouto de almocreve. Neguem-me tudo, se quiserem, que tanto se me dá. Nem por isso deixarei de ter, como os meus antepassados, a consciência limpa da honradez do ofício. O que escrevo tem pelo menos a virtude de ser motivado de dentro. Hipócrita comigo mesmo – a verdadeira hipocrisia – não sou. Nem me fica no tinteiro a sinceridade, nem exibo à luz do dia uma coragem que não tenho. Faço o que posso, à sobreposse. E isso me basta para me sentir justificado no plano social e no plano pessoal, e dispensar foguetes e não temer apupos. Um escritor, por modesto que seja, necessita de assentar cada pedra com a probidade, a humildade e a esperança de quem vai enfrentar a erosão dos séculos. Por isso, o seu ouvido deve estar mais atento ao silêncio do futuro do que às palmas do presente.

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

[O poeta é sempre do seu tempo], registo diarístico de Miguel Torga

Foto encontrada em http://www.geocaching.com/
Coimbra, 16 de Abril de 1952 – Resposta a um inquérito do Journal des poètes.
O poeta é sempre do seu tempo, de uma maneira positiva ou negativa. Positiva, se é capaz de intuir o íntimo sentido da sua época e lhe encontra a expressão poética presente e a ressonância poética futura; negativa, se não passa de um doirador obtuso do que nessa mesma época é cisco circunstancial.
Irremediavelmente, todos os poemas são datados. E a posteridade encontra mais perenidade naqueles que simultaneamente testemunham e sugerem. De resto, como poderia o poeta não ser do seu tempo, se ele é sempre a mais alta consciência de um tempo? O poeta não é uma abstracção. É um ser real, que existe no real. Por isso, não poderá evadir-se da vida, que o marca e é marcada por ele. A fundura dessas mútuas cicatrizes é que varia.

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

quarta-feira, 12 de março de 2014

O REGRESSO DE ULISSES, poema de António Pedro Pita

Imagem encontrada em http://noitedemel.blogs.sapo.pt/
Ulisses entra silenciosamente em casa
e encontra Penélope asfixiada
pelos fios
de tantos anos










In «Melancolia dupla», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

ÍCARO, poema de António Pedro Pita

Imagem encontrada em http://www.restonspositifs.com/
Sacudiu o pó
tratou cuidadosamente a ferida do joelho
reuniu os bocadinhos das suas
asas
colou-as com paciência
e pendurou-as na parede da sala
como recordação




In «Melancolia dupla», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

NARCISO E O ESTÁDIO DO ESPELHO, poema de António Pedro Pita

Reprodução de pormenor de «Narciso» (1594-1596), por Caravaggio
Caiu na sua imagem 
e foi o próprio corpo
que perdeu













In «Melancolia dupla», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

PROMETEU OU O ROUBO DO FOGO, poema de António Pedro Pita

Imagem encontrada em http://coringaalacarte.wordpress.com/

Que
esperança extingue a tua
chama













In «Melancolia dupla», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

domingo, 9 de março de 2014

[O jornal é também uma espécie de máquina], considera Tuiavii de Tiavéa

Imagem encontrada em opapalagui.blogspot.com
Os muitos papéis[1] também induzem no Papalagui uma espécie de transe. O que quero dizer com «muitos papéis»? Tentai imaginar uma esteira de tapa, fina, branca e dobrada, dividida ao meio e dobrada de novo, totalmente coberta de uma escrita apertada em todas as faces; é esse o aspecto dos muitos papéis, e o Papalagui chama-lhes «jornais».

Dentro desses papéis oculta-se a sabedoria do Papalagui. Todas as manhãs e todas as tardes, ele tem de enfiar neles a cabeça para reabastecer, satisfazê-la e certificar-se de que tem muitas coisas no seu interior, para que ele pense bem, tal como um cavalo corre melhor quando lhe damos muitas bananas e o seu corpo fica bem cheio. Quando o alii[2] ainda dorme na sua esteira, já mensageiros percorrem a terra distribuindo os muitos papéis. É a primeira coisa que ele procura quando afugenta a sonolência. Afunda os olhos nas coisas ditas pelos muitos papéis e lê. Todos os Papalagui fazem isso, todos lêem… Lêem o que disseram os grandes chefes e oradores da Europa durante os seus fonos[3]. Tudo isso é cuidadosamente anotado em esteiras, mesmo que sejam disparates. Também são descritas as vestes que envergam e a comida ingerida pelos alii, os nomes dos seus cavalos e se tiverem pensamentos fracos ou elefantíase (uma doença dos músculos que faz com que algumas partes do corpo inchem anormalmente).

As coisas que dizem lá soariam mais ou menos assim na nossa terra: «O pule nuu[4] de Matautu acordou esta manhã depois de uma boa noite de sono. Começou o doa comendo o taro que sobrou do dia anterior. Depois foi pescar e voltou para a sua cabana à tarde. Uma vez lá, deitou-se na esteira e recitou versículos da Bíblia até ao anoitecer. A sua mulher, Sina, começou por amamentar o seu bebé, a seguir tomou banho e, no percurso para casa, encontrou uma linda flor pua que colocou no cabelo, prosseguindo depois o caminho para casa.» E por aí fora.

Tudo o que acontece ou se passa, e as coisas que as pessoas fazem ou deixam de fazer, é tornado público: os seus bons e maus pensamentos, se mataram uma galinha ou um porco, ou se construíram uma canoa. Nada acontece na terra deles que não seja imediatamente repetido pelos muitos papéis. O Papalagui chama a isso «estar bem informado». Quer saber exactamente tudo o que acontece na sua terra. De manhã à noite. Fica zangado quando algo escapa à sua atenção. Absorve tudo, embora seja referido todo o tipo de coisas más e assustadoras, coisas que uma mente sã faria melhor em esquecer rapidamente. Essas cenas em que as pessoas sofrem são precisamente reproduzidas com mais exactidão e pormenor do que as cenas agradáveis, como se não fosse melhor e mais importante contar as coisas boas e não as más.

Quando lemos o jornal, não precisamos de ir a Apolina, Manono ou Savii para saber o que os nossos amigos estão a fazer, o que pensam e que visitas fizeram. Ficamos sossegados na esteira e os jornais contam-nos tudo. Isso pode parecer muito fácil e agradável, mas ainda assim não é a realidade; porque, se encontrarmos o nosso irmão, e ambos tivermos os jornais metidos na cabeça, não teremos nada novo ou interessante para contar um ao outro; porque agora as nossas cabeças contêm as mesmas coisas. Assim, ficamos ambos em silêncio ou repetimos as coisas que o jornal já nos disse. Será sempre mais importante estar pessoalmente, partilhar as alegrias da festa e os desgostos do luto do que estes serem-nos contados por um estranho.

Mas o maior mal que os jornais operam na nossa mente não reside no facto de relatarem, mas nas suas opiniões: opiniões de chefes, sobre os chefes das outras terras, e sobre as acções das outras pessoas e o que lhes acontece. Os jornais tentam moldar todas as cabeças da mesma forma, e isso é contrário às minhas crenças e pensamentos. Eles querem que todos partilhem a sua cabeça e pensamentos. E sabem como conseguir isso. Depois de lermos os jornais da manhã, sabemos tudo o que todos os Papalagui terão na cabeça à tarde e aquilo em que estarão a pensar.

O jornal é também uma espécie de máquina, que fabrica diariamente muitos pensamentos, muito mais do que os que podem ser produzidos por uma cabeça normal. Mas na sua maioria são pensamentos fracos, falta-lhes orgulho e força. Enchem-nos a cabeça com muito alimento, mas não a fazem consistente. Mais valia enchermos a cabeça com areia. O Papalagui enche a sua cabeça até cima com essa comida absurda dos jornais. Mesmo antes de deitar fora o antigo, já está a ler o seguinte. A sua cabeça é como um pântano de mangal sufocado no seu próprio lodo, onde não cresce nada fresco nem verde e se erguem apenas vapores sulfurosos e enxames de mosquitos mordentes zumbem em círculos por cima de nós.

Os lugares de pseudovida e os muitos papéis transformaram o Papalagui no que ele é hoje, um ser humano fraco e perdido, que ama o que é irreal, que já não consegue fazer a distinção entre fantasia e realidade, que pensa que o reflexo da Lua é a própria Lua e que os jornais impressos em letra miudinha são a própria vida.

In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).



[1] Jornais
[2] Cavalheiro
[3] Festividades; saudações
[4] Juiz

sábado, 8 de março de 2014

[viver na Europa sem os lugares de pseudovida e os muitos papéis é tão impensável como um mar não ter água], diz Tuiavii de Tiavéa

Imagem encontrada em sandrabraunerpianista.blogspot.com

Oh, meus amados irmãos do grande mar, se eu, vosso humilde servo, relatasse de facto tudo o que vi na Europa, teria de falar durante horas. As minhas palavras teriam de ser como um ribeiro incessante, fluindo de manhã à noite, e mesmo assim a verdade ainda não ficaria completa; porque a vida do Papalagui é como o oceano, do qual também não descobrimos nem início nem fim. Tem muitas vagas como as grandes águas, revolta-se, agita-se, ri e sonha. Tão impossível como é esvaziar o mar com a concha da nossa mão, assim me é impossível trazer na minha cabeça até vós esse grande volume chamado Europa.

Mas há algo que não me esquecerei de vos dizer: viver na Europa sem os lugares de pseudovida e os muitos papéis é tão impensável como um mar não ter água. Se tirássemos essas coisas ao Papalagui, ele ficaria como o peixe que é atirado para a praia por uma onda, capaz de agitar as barbatanas mas não de nadar e mexer-se como está habituado a fazer.

Os lugares da pseudovida! Não é fácil descrever-lhes um lugar assim, o tipo de lugar a que o homem branco chama cinema; descrevê-lo de modo a dar-vos uma imagem clara. Em todas as comunidades e aldeias, por toda a Europa, existe esse lugar misterioso, um lugar que faz as crianças sonhar e lhes enche a cabeça com um anseio apaixonado.

O cinema é uma grande cabana, maior do que a maior cabana de um chefe de Polo, sim, muito maior. Lá dentro está escuro, mesmo durante o dia, tão escuro que ninguém reconhece o seu vizinho. Quando entramos ficamos cegos, e quando saímos mais cegos ficamos. As pessoas entram em bicos de pés, tacteando o caminho ao longo da parede, até se aproximar uma donzela com um facho de luz na mão, que as conduz a um lugar ainda desocupado. Lá, os Papalagui sentam-se ao lado uns dos outros sem se verem; uma sala às escuras cheia de gente silenciosa. Os presentes sentam-se em tábuas estreitas, e todas as tábuas estão viradas para uma parede.

Da parte inferior da parede ergue-se um som forte e berrante, como que vindo de uma ravina profunda, e, quando os nossos olhos se habituam à escuridão, vemos um Papalagui a debater-se com uma caixa. Bate com as mãos abertas nas numerosas línguas brancas e pretas que gritam ao ser atingidas, cada uma com a sua voz, o que resulta nos ruídos selvagens e desordenados de uma briga de aldeia.

Essa barulheira tem de drogar e enganar os nossos sentidos, para que acreditemos nas coisas que vemos e não duvidemos da realidade do que acontece. Mesmo à nossa frente, um feixe de luz atinge a parede como se a lua cheia brilhasse sobre ela, e no clarão aparecem pessoas, pessoas verdadeiras, com a aparência e as vestes dos Papalagui normais. Mexem-se, andam, riem e saltam tal como fazem por toda a Europa. É como a Lua a espelhar-se na lagoa: vemos a Lua, mas na verdade ela não está ali. O mesmo se passa com estas imagens. As pessoas mexem os lábios e juraríamos que estão a falar, mas não ouvimos uma sílaba, por muito que esforcemos os ouvidos: eis como tudo aquilo é horrível. Não ouvimos nada. Deve ser por essa razão que aquele Papalagui espanca a caixa daquela maneira. Quer dar a impressão de que não ouvimos as pessoas devido à barulheira que faz. E é por isso que, de tempos a tempos, aparecem letras no ecrã, letras que mostram o que o Papalagui disse ou está prestes a dizer.

Mas estas pessoas são sempre pseudopessoas, não são verdadeiras. Se tentarmos agarrá-las, descobrimos que são inteiramente feitas de luz e que é impossível tocar-lhes. A única razão para a sua existência reside no facto de mostrarem ao Papalagui as suas alegrias e tristezas, as suas loucuras e fraquezas. Deste modo, ele pode ver de perto os mais belos homens e mulheres. Podem estar em silêncio, mas mesmo assim ele vê-lhes os movimentos e a luz dos seus olhares. Pode imaginar que o olham e falam com ele.

In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).

[Conhecimento significa termos uma coisa tão perto dos olhos que podemos furá-la com o nariz], explica Tuiavii de Tiavéa

Imagem encontrada em http://papalaguiatec.blogspot.pt/

E há ainda mais maneiras de pensar e muito mais alvos para as setas do seu espírito. É triste o destino dos pensadores que vão longe nos seus pensamentos. O que vai acontecer da próxima vez que o Sol nascer? O que terá o Grande Espírito em mente para mim quando eu chegar ao Salefe’s[1]? Onde estava eu quando os Tagalao[2] me deram a minha Agaga[3]? Este pensar é tão fútil como tentar ver o Sol de olhos fechados. Não resulta. Não é possível pensar até ao início e até ao fim das coisas, como descobrem as pessoas que o tentam. Ficam acocoradas no mesmo lugar como um guarda-rios, desde a juventude até à velhice. Já não vêem o Sol, nem o grande mar, nem as raparigas bonitas, nem a alegria, nem nada, nada de nada. Nem o kava tem sabor para eles e, nos bailes da aldeia, põem-se de lado e olham para o chão. Não vivem, embora não estejam mortas. Foram destruídas pela grave doença do pensar.
Este pensar devia tornar a mente grande e elevada. Quando alguém pensa muito e depressa, na Europa diz-se que tem uma grande cabeça. Em vez de terem pena destas grandes cabeças, admiram-nas muito. As aldeias elegem-nos para chefes e, sempre que surge uma grande cabeça, esta tem de pensar publicamente, o que dá a todos grande prazer e admiração. Quando morre uma grande cabeça, há luto por toda a terra, e grandes choros pelo que se perdeu. Fazem uma imagem de pedra dessa grande cabeça e colocam-na à vista de toda a gente no mercado. Na verdade, estas cabeças de pedra são muito maiores do que eram em vida, para que as pessoas possam admirá-las e lembrar-se da pequenez da sua própria cabeça.

Se alguém perguntar a um Papalagui por que pensa tanto, ele responde: «Porque não quero nem posso ser estúpido.» Todo o Papalagui que não quer pensar é estúpido; embora, na verdade, as pessoas que não pensam sejam sábias e acabem por se orientar.

No entanto, penso que isso não passa de um pretexto e que o Papalagui está apenas a seguir o seu impulso maldoso. Parece-me que o verdadeiro fim do seu pensar é descobrir onde o Grande Espírito obtém o seu poder, algo a que ele chama, com palavras sonantes, «conhecimento». Conhecimento significa termos uma coisa tão perto dos olhos que podemos furá-la com o nariz. Isto de furar e saquear é um desejo vulgar e desprezível do Papalagui. Ele pega numa centopeia, fura-a com uma pequena lança e arranca-lhe uma perna. Qual o aspecto dessa perna separada do corpo? Como estava fixada ao corpo? Ele parte a perna a fim de medir a sua espessura. Isso é importante, isso é essencial. Ele retira da perna um pedaço de carne do tamanho de um grão de areia e coloca-o sob um tubo comprido cuja força secreta permite aos olhos uma visão muito mais aguda. Com este olho grande e poderoso, ele vê o interior de tudo, lágrimas, uma tira de pele, um cabelo, absolutamente tudo. Corta todas essas coisas até chegar a um ponto em que não pode cortá-las ou dividi-las mais. Embora este seja o ponto mais pequeno de todos, é o essencial, porque é a entrada para o conhecimento supremo que só o Grande Espírito possui. Essa entrada é negada ao Papalagui, e nem os seus melhores olhos mágicos conseguiram ver para dentro dela. O Grande Espírito não permite que lhe levem os segredos. Nunca. Nunca ninguém trepou uma palmeira mais alta do que a palmeira em redor de cujo tronco ele enrolou as pernas, e na copa tem de voltar para trás, porque não há tronco para trepar mais alto. O Grande Espírito não ama a curiosidade do ser humano, e por isso pendurou grandes lianas em tudo, lianas sem princípio nem fim. Assim, quem tentar seguir pensamentos até ao fim supremo, acabará por descobrir que ficará sempre estúpido e terá de deixar para o Grande Espírito as respostas que não sabe dar. Mesmo o mais inteligente e corajoso dos Papalagui reconhece isto.

In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).



[1] Submundo
[2] Mensageiros do Espírito Maior
[3] Alma

sexta-feira, 7 de março de 2014

[Devoram estas esteiras de pensamentos como se fossem bananas doces], observa Tuiavii de Tiavéa

Imagem encontrada em http://papalaguiatec.blogspot.pt/

É ainda mais grave e desastroso que todos os pensamentos, bons ou maus, sejam de imediato atirados para as esteiras brancas. «São impressos», diz o Papalagui. Isto significa que o que aqueles doentes pensam é escrito por uma máquina misteriosa e milagrosa que tem mil mãos e a obstinação de muitos chefes. Escrito não uma ou duas vezes, mas muitas, muitas vezes, um número infinito de vezes, escritos continuamente os mesmos pensamentos. Então muitas destas esteiras de pensamentos são atadas em molhos, prensadas («livros», chama-lhes o Papalagui) e enviadas para todos os cantos daquela grande terra. Em muito pouco tempos, todos os que absorvem estes pensamentos ficam infectados. Devoram estas esteiras de pensamentos como se fossem bananas doces, e estas encontram-se em todas as cabanas, com pilhas de caixas cheias delas, e jovens e velhos abocanham-nas como as ratazanas fazem à cana-de-açúcar. É por essa razão que há tão poucos que ainda conseguem ter pensamentos razoáveis e naturais, como aqueles que tem todo o samoano honesto.

Do mesmo modo, enfiam todos os pensamentos que podem na cabeça das crianças. Todos os dias estas são obrigadas a engolir uma certa quantidade de esteiras de pensamentos. Só as mais sãs rejeitam esses pensamentos ou deixam-nos cair pelo espírito como por uma rede. Mas quase todas enchem as cabeças com tantos pensamentos que não resta espaço para entrar luz. A isto chama-se «instruir o espírito», e é uma condição comum.

«Instrução» significa encher a cabeça até cima com conhecimento. Uma pessoa instruída sabe o comprimento de uma palmeira, o peso de um coco, os nomes de todos os seus chefes e quando foram para a guerra. Sabe o tamanho da Lua, das estrelas e de todos os países. Conhece todos os rios pelo nome, todos os animais e plantas. Sabe absolutamente tudo. Fazei uma pergunta a um instruído e ele dispara a resposta antes de vós fechardes a boca. A sua cabeça está sempre carregada de munições, sempre pronta a disparar. Cada europeu dedica os mais belos anos da sua vida a transformar a cabeça na arma mais rápida possível. Quem não o quiser fazer é obrigado. Todo o Papalagui tem de saber, tem de pensar.

In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).

sábado, 1 de março de 2014

[Mudem de sistema!], observação diarística de Miguel Torga

Imagem encontrada em http://lounge.obviousmag.org/

Coimbra, 27 de Maio de 1952 – Um juiz meu cliente desanimado da vida. Quanto mais julga e condena, mais crimes lhe aparecem. E eu só lhe disse:
– Mudem de sistema! Em vez de construírem hospitais e tribunais, e ficarem à espera do homem quando ele ali chega tuberculoso ou criminoso, vão ao encontro dele no caminho da vida, e dêem-lhe o pão que lhe falta e a cultura que não tem…

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

[Alaúdes, perfumes e taças], ruba’i de Omar Khayyam

Imagem encontrada em http://literaturapersa.blogspot.pt/

Alaúdes, perfumes e taças,
lábios, cabeleiras e olhos profundos –
brinquedos que o Tempo destrói, brinquedos!
Austeridade, solidão e trabalho,
meditação, prece e renúncia –
cinzas que o Tempo esmaga, cinzas!

In «Rubaiyat – Odes ao vinho», de Omar Khayyam (com prefácio de E. M. de Melo e Castro e tradução de Fernando Castro), colecção «Clássicos de Bolso» (n.º 62), Editorial Estampa, Junho de 1999 (3.ª edição).