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segunda-feira, 7 de março de 2016

«Eis-nos perante a verdadeira fábula de O Velho, o Rapaz e o Burro», observa José Régio

José Régio – foto encontrada em http://macroscopio.blogspot.pt
Se alguma coisa, desde o seu primeiro livro de versos, singulariza a poesia do autor em questão, é pois a inclinação prosaica para a análise, o pensamento, a observação desapaixonada, a ironia crítica, o desdobramento do novelista, coexistindo com muito diversas inclinações. De envolta com os versos delirantes ou oratórios, – saídos, os primeiros, a verdadeira alta tensão; gerados, os segundos, mais numa embriaguez do momento, ou no abandono ao verbalismo, que no fervor da alma – um, outro e outro aparecem que, se me permitem a vulgaridade da imagem, são baldes de água fria…
Foi talvez o que em parte sentiram, embora nem sempre nitidamente, várias pessoas que a poesia do nosso autor começou por chocar. De muito boa fé o aconselharam, então, a escrever prosa, «pois não era poeta». Ainda hoje o não têm por poeta alguns experimentalistas para quem parece consistir a poesia nos seus, deles, jogos e experiências verbais.
Já se vê que lhes não recuso toda a razão. Mas, por outro lado, não só vários caracteres dos mais tidos por poéticos transpareciam nos versos do autor, como – agora o confessarei – hesito eu ainda sobre os limites substanciais entre poesia e prosa. Convincente distinção entre poesia e prosa, (se a há substancial, isto é: não redutível a modalidades formais) só por um longo estudo comparativo e minucioso, tão diligente como delicado, tão desinteressado de quaisquer preconceitos ou convenções como filosoficamente interessado na aproximação da realidade, – poderá ser estabelecida. Mais não consegue, aliás, toda a evolução da poesia moderna que dificultar essa distinção. Talvez os seguintes pequenos factos ajudem a ver o que nela há de hesitante e vago: Certas das mesmas pessoas que, de princípio, aconselharam o autor a «deixar-se de versos» - o aconselhavam, depois, a não trocar a poesia pela prosa, pois «poeta é que ele era». Mas não só, quando principiou a publicar versos, acharam alguns ser-lhe preferível tentar a prosa, (de prosador é que eram as suas principais características) e, tendo principiado a publicar livros de prosa, lhe declararam que «poeta é que ela era», (os seus livros de prosa não valiam os de versos) como ainda outras curiosas experiências idênticas se lhe proporcionaram. Assim é que, arriscando-se a alguns pequenos ensaios de crítica, muitos lhe aconselharam que se não dispersasse com tal; pois o que era, era criador. Mas os que mediocremente apreciavam os seus livros de criação – com sincero júbilo lhe fizeram sentir que estava no bom caminho: O que ele era, era um crítico; e à crítica se deveria consagrar. Tendo-se abandonado à fantasia no Jacob e o Anjo ou nO Princípe com Orelhas de Burro, vários se recusaram a conceder àquele foros de teatro, ou a este foros de romance, (em Portugal, quase toda a gente sabe muitíssimo bem o que é o romance ou teatro) precisamente porque se desenvolviam nesse ar de fantasia e licença poéticas. Evidenciando, porém, nas Histórias de Mulheres ou nA Velha Casa disposições realistas que também lhe são naturais, e que até naquelas criações fantasistas eram visíveis, (além dum estilo consequente com tais disposições) quase violentamente se viu empurrado o confuso autor para as aventuras do capricho poético, «onde era o seu verdadeiro lugar».
A coisa foi mais longe, desceu a minudências: Apreciadores a quem está muito grato aplaudiram os seus sonetos e oitavas, ou propalavam como excelente metade das suas opiniões. Em compensação, repeliam as suas composições soltas, (como se nestas se manifestara um espírito poético inteiramente oposto) e achavam doutrina péssima as suas opiniões da metade restante. Pelo contrário, a outros pareciam «de almanaque» grande maioria dos seus sonetos, e (expressão textual dum colega) um «pastelão» as suas oitavas da Sarça Ardente. Nem por isso deixavam de amavelmente se mostrarem inclinados a favor doutras produções do infeliz autor dessas. Só lamentavam que, mesmo então, não fosse ele mais adiante, – e não chegasse a parecer-se com o Fernando Pessoa. Prefeririam outros que se parecesse com o Pascoaes. Paralelamente, houve depois os que, para aceitarem a licenciosidade verbal de Jacob e o Anjo, forçosamente haviam de condenar a disciplina e concisão de Benilde; ou vice-versa; e os que não reconheceriam direitos de existência a El-Rei Sebastião sem os recusarem a seus parentes das peças anteriores; ou, para terem por humana a heroína de O Vestido Cor de Fogo, negavam toda a humanidade à pobre Maria do Ahú…
Eis-nos perante a verdadeira fábula de O Velho, o Rapaz e o Burro. Como aguentar-se o nosso autor neste embate ou rodopio de opiniões? A sua perplexidade era tanto mais grave, porquanto provinham várias delas não de leitores quaisquer, antes de críticos tidos por bons. Já se prevê que seguiu a filosofia do Velho. Assim decidiu nunca deixar de exprimir o quer que nele pedisse expressão, – e da forma como a pedisse. Reconhecendo-se um complexo de tendências, por que mutilar, ao gosto dos outros, o seu complexo? Não é a literatura a expressão mais livre, mais variada, mais completa, que de si dá o homem? Jovens artistas que me ledes, e a quem já recusei conselhos! Deixai que me contradiga: Não façais caso de críticos e suas críticas (a não ser que sejam compreensivos, ou simplesmente para os conhecerdes) quando vos reconheçais no vosso caminho próprio.

In «Introdução a uma Obra», posfácio de José Régio ao seu livro «Poemas de Deus e do Diabo» (com oito desenhos do Autor), Obras Completas de José Régio, Brasília Editora, Porto, Julho de 1972 (8.ª edição).

«Nada do humano é alheio à literatura», afirma José Régio

Imagem encontrada em http://bttviladoconde.cm-viladoconde.pt
(…) nada do humano é alheio à literatura. O homem individual e o homem social, o homem moral e o homem metafísico, o homem religioso e o homem político, o homem da razão e o homem obscuro, o homem animal e o homem angélico – todos os homens, revelados ou a revelar, são objecto da literatura. Assim, de certo ponto de vista, é a literatura a mais impura das artes, aquela em que mais se intrometem todos os interesses do homem; o que não impede que uma obra de arte literária possa ser encarada do seu mero ponto de vista específico, – o estético. Por tudo isto exige a literatura um grande à-vontade de movimentos. Todas as janelas abertas, todas as portas francas, e a cada artista a liberdade de abrir novas janelas, portas, postigos! Eis o que desde a extrema juventude sempre tenho defendido, exigindo para mim próprio e para os outros uma independência que evidentemente desagrada a todos os partidos. Claro que certas épocas preferem o homem-indivíduo e outras o homem social; certas o homem religioso e outras o homem dos sentidos; etc., etc. Depende isto das épocas – é coisa do tempo – e até as preferências dependentes das épocas se podem ainda corromper em modas. Livre seja o artista de obedecer às tendências da sua época, se por determinação da sua própria natureza o faz. Livre seja de alegremente lhes desobedecer, se a sua natureza sobretudo o atrai a outros aspectos e regiões do humano. Ao fim e ao cabo, alguma vez poderá estar fora do seu tempo, onde sempre coexistem muito diversas tendências? O erro está em se pretender impor assuntos, posições, até estilos, até maneirismos epocais, onde, em razão da fundamental espontaneidade da arte, só a insubmissão do artista pode imperar. Submisso, não tanto o é ele às resoluções conscientes da sua vontade clara como, principalmente, às solicitações obscuras da sua mais funda intimidade. Pelo caminho desta subjectividade se aproxima ele da objectividade da obra de arte – da sua universalidade e da sua intemporalidade. Pois como toda a obra de pensamento, como toda a obra de ciência, ou transcende a obra de arte as limitações do seu lugar e tempo (o que não quer dizer que não possa manter com eles estreitas relações) ou fica reduzida a mero documento histórico.

In «Introdução a uma Obra», posfácio de José Régio ao seu livro «Poemas de Deus e do Diabo» (com oito desenhos do Autor), Obras Completas de José Régio, Brasília Editora, Porto, Julho de 1972 (8.ª edição).

terça-feira, 1 de março de 2016

Joaquim Namorado: por uma «outra humanidade»

Joaquim Namorado – foto encontrada em http://gtbib-amrs.blogspot.pt

Joaquim Namorado poeta neo-realista, ou abencerragem romântico?
Encarnação de poeta maldito, quando, na sua juvenil «Invenção do Poeta», evoca ou se identifica com Judas e Caim?
Ou antes poeta revolucionário quando se assume qual Prometeu moderno, em que o seu sangue é bandeira, como no poema de «A Guerra e a Paz» que passo a ler:

Abafai meus gritos com mordaças,
maior será minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
– isto é vencer ou morrer –
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

Talvez seja este o poema-grito que melhor revela o poeta militante – o portador de nova chama, para uma «outra humanidade» - a socialista.
Poeta de diversos registos, foi, entre os neo-realistas, tal como o precursor Dias Lourenço, atento ao mundo do operariado, designadamente, fabril. Leia-se, a confirmá-lo, incluída em «Aviso à Navegação», a parte intitulada «Arquitectura», onde o poeta matemático, epigrafando Cesário Verde, «Só sei desenho de compasso e esquadro», inclui fábricas, máquinas, andaimes, sirenes, motores, condutores, operários de ganga, numa intencionalidade não futurista mas realista, como que em contraponto ao registo desse outro poeta neo-realista, como ele alentejano, o Manuel da Fonseca, este vivenciando o campesinato e a vida provinciana, Joaquim Namorado já exaltando, idealmente, o mundo do proletariado operário.

In «Testemunho de neo-realismos», de Arquimedes da Silva Santos, Livros Horizonte, Lisboa, Abril de 2001 (1.ª edição).

Sobre o poema A VOZ QUE ME DITA OS VERSOS, de Joaquim Namorado

Joaquim Namorado, por Mário Dionísio, óleo sobre tela

Parece-me que encontro na serôdia «Poesia Necessária» talvez o seu mais sincero desabafo poético, no poema «A voz que me dita os versos»:

Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos e tudo diz e cala
……………………………………………….

é a tua amiga a quem não vejo há tanto
e cuja presença me não esquece.
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é do povo o canto e o choro que vem
do fundo desespero em que se move
……………………………………………….

– É a tua voz, coração do mundo,
a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante,
a tua voz desesperada, a tua voz confiante.
Sejam meus versos a vogal precisa,
Bata no meu pulso o coração do mundo.

Talvez seja este o supremo poema do seu percurso, que de «Aviso à Navegação», pela «Incomodidade» sempre achou a «Poesia Necessária».
Militantemente, tal um poeta-estandarte, e não seria acaso o pseudónimo de Bandeira, aliás palavra frequente em muitos poetas, foi alferes de uma nova luta, de algum modo para o futuro (futurista, como o seu outro pseudónimo Álvaro, não de Campos, mas no versilibrismo informal como meio de expressão do novo conteúdo).
Mas, não desdenhando a tradição de «cantigas de escárnio e maldizer», atira assim sarcasticamente arremedos, numa algo surrealizante «Viagem ao país dos nefelibatas».

In «Testemunho de neo-realismos», de Arquimedes da Silva Santos, Livros Horizonte, Lisboa, Abril de 2001 (1.ª edição).