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Fotografia retirada de www.portalalentejano.com |
Quando voltar ao
Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a
luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela
certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a
terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as
veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte
onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em
Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento,
o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a
minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser
lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como
duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo
menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos
friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela
obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar
os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as
entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham
por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas
pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, regam as sardinheiras,
depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe
pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim
velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas.
Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase
solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do
homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de
sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com
restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como
encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha
visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando
pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que
elas, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro,
ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a
migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas
represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e
mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos
enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam
das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um
punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as
horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de
cabrito montês – e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as Mães,
ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.
In «Chuva sobre o rosto» (poesia), de Eugénio de Andrade (com um desenho de José Rodrigues), colecção «Pequeno Formato» (n.º 2), Edições ASA, Porto, Abril de 2002 (5.ª edição).
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