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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

UTOPIAS PRIVADAS, poema de Ana Hatherly

Imagem encontrada em http://livrespensadores.net/

Utopias privadas
as palavras
são micro-horizontes
revelação
de um deserto-oceano
que nos enche
de um vazio sem fundo

Embalados por palavras
escutamos
em imagens-falas
o atrevimento do amor
que nos move
                 comove
                     estrangula

Enlouquecidos pela dor
cobrimo-nos com o barro das palavras

In «O Pavão Negro», poesia de Ana Hatherly (com prefácio de Ana Hatherly e Paulo Cunha e Silva), colecção «Poesia Inédita Portuguesa», Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2003 (1.ª edição).

AS LÁGRIMAS DO POETA, de Ana Hatherly

Foto encontrada em http://www.aterceiranoite.org/

Um poeta barroco disse:
as palavras são
as línguas dos olhos

Mas o que é um poema
senão
um telescópio do desejo
fixado pela língua?

O voo sinuoso das aves
as altas ondas do mar
a calmaria do vento:
Tudo
tudo cabe dentro das palavras
e o poeta que vê
chora lágrimas de tinta

In «O Pavão Negro», poesia de Ana Hatherly (com prefácio de Ana Hatherly e Paulo Cunha e Silva), colecção «Poesia Inédita Portuguesa», Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2003 (1.ª edição).

[por vezes, excurso pela], poema de valter hugo mãe

Imagem encontrada em http://penssoltos.blogspot.pt/

por vezes, excurso pela
minha fé, deus obedece-me
com dedicação, quando
alimento os parasitas
dos meus sonhos para
sabotar a realidade

acorro aos pássaros
desligados ao vento

não caio, entre os
pássaros bichos irregulares

In «útero», de valter hugo mãe, Biblioteca «Uma Existência de Papel» (volume 36), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).

[as árvores como], poema de valter hugo mãe

Foto encontrada em http://greensavers.sapo.pt/

as árvores como
vento implume ou
lápide de um antigo
ser alado

deus ou voz extensa e eu, no
sopé da montanha somos
espantalhos no terreno da alma

In «útero», de valter hugo mãe, Biblioteca «Uma Existência de Papel» (volume 36), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).

[nenhuma atitude lúdica], poema de valter hugo mãe

Imagem encontrada em https://ewalflor.wordpress.com

nenhuma atitude lúdica
da natureza, só assim
suporto o sol que mantém
as tulipas a arder

bocas de fogo ou
charcos de alma

In «útero», de valter hugo mãe, Biblioteca «Uma Existência de Papel» (volume 36), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).

[estes os dias vermelhos de], poema de valter hugo mãe

Valter Hugo Mãe – foto encontrada em http://revistacult.uol.com.br/

estes os dias vermelhos de
deus, caminhos interiores
do fogo, cozedura

nova era em que se
faz muita luz

na carne do poema
ele está como hemorragia
por sobre a tua leitura, estará
sempre contigo, iluminando-te
lentamente

In «útero», de valter hugo mãe, Biblioteca «Uma Existência de Papel» (volume 36), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2003 (1.ª edição).

terça-feira, 30 de agosto de 2016

[Tudo à minha volta], poema de Manuel António Pina

Manuel António Pina (foto encontrada em http://biblevantemaia.blogspot.pt/)

Tudo à minha volta cumpre
um destino silencioso e incompreensível
a que algum deus fugaz preside.
Fora de mim, nas costas da cadeira,

o casaco, por exemplo, pertence
a uma ordem indistinta e inteira.
Dava bem todo o meu sentido prático
pela sua quieta permanência em si e na cadeira.

A realidade dos livros em cima da mesa
parece tão estritamente real!
As filhas falam, barulhentas e reais,
e eu próprio, em qualquer sítio, sou real.

Sob este rio real
o rio me arrasta, de palavras,
corre dentro de mim ou fora de mim?
O que pensa? Estou lá, ou está lá alguém,

como está neste lugar (qual?),
e como os livros na mesa?
O que fala falta-me
em que coração real?

É duro sonhar e ser o sonho,
falar e ser as palavras.
E, no entanto, alguém fala enquanto fujo,
e falo do que, em mim, foge.

Sem que palavras alguma coisa é real?
As filhas sabem-no não o sabendo
e falam alto fora de mim
sem falarem nem não falarem.

Em mim tudo é em alguém
em qualquer sítio escuro
como se houvesse um muro
entre o que fala (quem?)

In «Poesia, Saudade da Prosa – Uma antologia pessoal», de Manuel António Pina, Colecção «grãos de pólen» (n.º 12), Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011 (1.ª edição).

«A poesia vai», poema de Manuel António Pina

Imagem encontrada em http://filosofiaetecnologia.blogspot.pt/

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –

In «Poesia, Saudade da Prosa – Uma antologia pessoal», de Manuel António Pina, Colecção «grãos de pólen» (n.º 12), Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011 (1.ª edição).

«Esplanada», poema de Manuel António Pina

Imagem encontrada em http://www.oportohomeapartments.com/

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

In «Poesia, Saudade da Prosa – Uma antologia pessoal», de Manuel António Pina, Colecção «grãos de pólen» (n.º 12), Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011 (1.ª edição).

«Na biblioteca», poema de Manuel António Pina

Manuel António Pina – Foto de Alfredo Cunha
(encontrada em https://novaziodaonda.wordpress.com)

O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.

In «Poesia, Saudade da Prosa – Uma antologia pessoal», de Manuel António Pina, Colecção «grãos de pólen» (n.º 12), Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011 (1.ª edição).

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

[A melhor maneira de escrever história], excerto da obra «Eu, Cláudio Imperador», de Robert Graves

Cláudio, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles
Chamava-se Pólio, e conheci-o exactamente uma semana após as minhas núpcias. Trabalhava eu na Biblioteca de Apolo quando vi entrar Tito Lívio acompanhado de um velhinho vestido de senador.
– Creio – dizia Tito Lívio – que seria melhor renunciar a isso, a menos que… Olha, eis ali Sulpício! Se alguém o sabe, deve ser ele. Bom dia, Sulpício. Queres prestar-nos um serviço, a Asínio Pólio e a mim? Queríamos consultar um livro: um comentário das Tácticas Militares de Políbio por um grego de nome Polémocles. Creio tê-lo visto aqui há tempos, mas os catálogos não o mencionam e os bibliotecários não prestam para nada.
Sulpício mastigou a barba um momento e depois respondeu:
– Enganas-te. O autor chama-se na verdade Polemócrates, e, apesar do nome, não é grego, mas judeu. Há quinze anos vi o livro na prateleira do alto, a quarta após a janela, no fundo; a etiqueta dizia simplesmente: Dissertações sobre a Táctica. Espera, vou procurá-lo. Não creio que o tenham mudado de lugar.
De repente, Tito Lívio descobriu-me.
– Como vais, meu amigo? Conheces o famoso Asínio Pólio?
Saudei-o.
– Que lês tu, meu rapaz? – perguntou-me Pólio. – Tolices, estou certo, a julgar pela maneira como o ocultas. Os jovens de hoje só lêem tolices. – E voltando-se para Tito Lívio: – Aposto dez moedas de ouro como é alguma Arte de Amar, ou uma pastoral da Arcádia.
– Aceito a aposta – disse Tito Lívio. – Cláudio não é um rapaz como os outros. Vamos a ver, Cláudio! Quem foi que ganhou?
Gaguejando, disse a Pólio:
– Sinto-me feliz em poder dizer que perdeste.
Ele cerrou as sobrancelhas.
– Como assim? Feliz por eu ter perdido, hem? Então isso é modo de falar a um velho como eu, e a um senador, ainda por cima?
– Eu disse-o com toda a reverência. Sinto-me feliz que tenhas perdido, porque não queria que se chamasse a este livro de «tolices». É a tua própria História das Guerras Civis, uma belíssima obra, se me é permitido uma opinião.
A fisionomia de Pólio iluminou-se. Sorriu, abriu a bolsa e deu, à força, as moedas de ouro a Tito Lívio. Este, com o qual parecia estar num pé de amistosa animosidade – sabeis o que quero dizer –, recusava-as com um ar meio sério, meio brincalhão.
– Meu caro Pólio, é-me impossível receber esse dinheiro. Tu tinhas razão; os rapazes de hoje só lêem tolices. Nem uma palavra mais, peço-te; reconheço que perdi; eis as dez moedas de ouro; pago-as com prazer.
Pólio apelou para mim.
– Vejamos, eu não sei quem és tu, mas pareces um rapaz de bom senso. Já leste as obras do meu amigo Tito Lívio? Não são elas em todo o caso mais fúteis que as minhas?
Sorri:
– São, em todo o caso, mais fáceis de ler.
– Mais fáceis, hem? Como?
– Ele faz falar e agir os antigos romanos como homens de hoje.
Pólio estava encantado.
– Tocou no teu ponto fraco, Tito Lívio! Atribuis aos romanos de há sete séculos ideias e discursos ridiculamente modernos. Lê-se facilmente, vá, mas não é história.
O velho Pólio era o homem mais bem dotado da época, sem exceptuar o próprio Augusto. Próximo dos oitenta anos, estava em plena posse das faculdades mentais e mais vigoroso que muitos homens de sessenta. Atravessara o Rubicão com Júlio César e combatera Pompeu; depois servira sob comando do meu avô Marco António, antes da sua questão com Augusto. Fora cônsul e governador da Espanha e da Lombardia; tinham-lhe concedido um triunfo por uma vitória nos Balcãs. Fora protector de Virgílio e Horácio, e amigo pessoal de Cícero, até ao dia em que este o cansou. Era um distinto orador e autor de tragédias. Mas sobretudo há história é que brilhava, pois o seu amor à verdade absoluta, que chegava ao pedantismo, não se acomodava às convenções dos outros géneros literários. Com o espólio da sua campanha nos Alpes havia fundado uma biblioteca pública – a primeira em Roma. Havia agora duas novas: aquela onde nos encontrávamos e uma outra, que tinha o nome da minha avó Octávia; mas a de Pólio era a mais bem organizada.
Sulpício encontrara o livro e, depois de lhes terem agradecido, Pólio e Tito Lívio continuaram a discussão.
– O mal de Pólio – disse Tito Lívio – é que, escrevendo história, julga-se obrigado a suprimir todos os sentimentos elevados e poéticos: faz as suas personagens agirem da maneira mais trivial e recusa-lhes absolutamente toda a capacidade oratória logo que os põe a falar.
– Sim – disse Pólio. – A poesia é a poesia, a eloquência, a eloquência e a história, a história: não se podem misturar.
– Será? – responde Tito Lívio. – Então eu não devia escolher um assunto épico sob o pretexto de que pertence à poesia, nem pôr na boca dos meus generais proclamações que valham a pena, sob a alegação de que isso faz parte da eloquência?
– Exactamente. A história é um relatório exacto do que aconteceu, do que os homens fizeram e dissera, da maneira como viveram e morreram. Um assunto épico não serve senão para falsear o relatório. As proclamações dos teus generais são admiráveis, mas terrivelmente falsas. Já ouvi mais proclamações na minha vida do que ninguém. Pois bem: César ou António poderiam ser excelentes oradores de comício, mas eram muito bons soldados para ensaiar a sua eloquência nos seus homens. Eles não arengavam; falavam-lhes, apenas. Que género de discursos nos fez César antes da batalha de Farsália? Falou-nos das nossas mulheres, dos nossos filhos, dos templos sagrados de Roma e da glória das nossas últimas campanhas? Oh, não! Trepou para um cepo de pinheiro, com um grande rábano numa das mãos e uma côdea de pão de soldado na outra, e gracejava connosco entre dois bocados. Nada de pilhérias finas, as coisas pelo seu nome, sem rebuscar. Dizia que a vida de Pompeu era casta em comparação com a sua. O que fazia com aquele rábano faria rir um boi. Recordo ainda uma anedota picante sobre a maneira como Pompeu ganhara o seu título de Grande… Oh!, aquele rábano! E uma outra ainda muito pior, historiando as condições em que ele, César, perdera todos os cabelos no bazar de Alexandria. Contar-te-ia as duas, se não fosse este jovem (aliás, estou certo de que não compreenderia nada, pois não foi educado no Campo de César). Nenhuma palavra acerca da batalha que se preparava: «Pobre do velho Pompeu! Que êxito pode ter ele contra Júlio César e os seus homens!»
– Não puseste isso na tua história – disse Tito Lívio.
– Não nas edições públicas – replicou Pólio. – Não sou um imbecil. Se queres que te empreste o suplemento secreto que acabo de terminar, aí o encontrarás. Mas talvez nem te dês ao trabalho de mo pedir. Escuta o fim da história: César, como tu sabes, era um imitador de primeira ordem. Parodiou-lhes Pompeu pronunciando o supremo discurso antes de tombar sob a sua espada… sempre o rábano, semicomido. Em nome de Pompeu, insultava os deuses imortais que permitem sempre ao vício ganhar a virtude. Os homens torciam-se. Enfim exclamou: «E é bem verdade, mesmo que Pompeu o tenha dito! Não hão-de ser vocês que o negarão, seus imundos!» E atirou-lhes o resto do rábano. Que gargalhada aquela! Nunca vi soldados como os de César. Lembras-te do que cantaram no seu desfile, ao regressar das Gálias?

Está de volta, está de volta
   O Conquistador!
Quem tem mulher não a solta:
Está de volta, está de volta
O careca conquistador!

– Pólio, meu caro – disse Tito Lívio –, nós não discutíamos os costumes de César, mas a melhor maneira de escrever história.
– Tens razão. O nosso jovem e inteligente amigo criticava o teu método, sob o respeitoso pretexto de louvar a tua facilidade. Meu rapaz, tens outras acusações contra Tito Lívio?
– Não me faças corar – respondi-lhe. – Admiro muito a obra de Tito Lívio.
– Diz-me a verdade: nunca notaste nele inexactidões históricas? Tens o aspecto de quem lê muito.
– Eu preferia não me arriscar…
– Vamos, vamos. Deve haver qualquer coisa.
– Confesso que há um ponto que me intriga. É a história de Porsena. Segundo Tito Lívio, Lars Porsena não tomou Roma, foi impedido a princípio pela conduta heróica de Horácio na ponte, depois pela surpreendente audácia de Cévola, que, feito prisioneiro ao tentar assassiná-lo, mergulhou a mão na chama do altar e jurou que trezentos romanos tinham feito, como ele, o juramento de executar aquele assassínio. Em vista disso, Porsena firmou a paz. Mas eu vi o seu túmulo em Closium; o friso representa os romanos saindo, sob o jugo, das portas da cidade. Vê-se um sacerdote etrusco cortar à tesoura as barbas dos pais. E o próprio Dionísio de Halicarnaso, embora sempre favorável a nós, conta que o Senado votou, para Porsena, um trono de marfim, um ceptro, uma coroa de ouro e uma toga triunfal, o que significa evidentemente que lhes prestaram as honras soberanas. Pode bem ser que, a despeito de Horácio e de Cévola, Lars Porsena tenha mesmo tomado Roma.
Tito Lívio incomodou-se:
– Espantas-me, Cláudio. Tens tão pouco respeito à tradição romana que dás crédito às mentiras inventadas por antigos inimigos para diminuir a nossa glória?
– Eu trato apenas de saber – disse com humildade – o que realmente se passou.
– Vamos, Tito Lívio – disse Pólio –, responde ao jovem. O que foi que se passou?
– Fica para outra vez – respondeu Tito Lívio. – Não nos afastemos do nosso assunto; a melhor maneira de escrever a história. Cláudio, meu amigo: tu, que tens ambições nesse género, qual de nós escolherás por modelo?
– Embaraças esse pobre rapaz com as tuas ciumeiras – interveio Sulpício. – Que queres que ele responda?
– A verdade não poderá ofender nenhum de nós – retrucou Pólio.
Olhei para ambos:
– Creio que escolherei Pólio. Não podendo esperar atingir a elegância literária de Tito Lívio, farei o possível para imitar a exactidão e o cuidado de Pólio.
Tito Lívio resmungou e ia retirar-se, mas Pólio, que mal dissimulava a sua alegria, impediu-o.
– Vamos, Tito Lívio, não me queiras mal por um novo discípulo, quando tu te4ns regimentos no mundo inteiro. Meu filho, já ouviste falar da história do velho de Cádis? Não, não é uma história alegre, chega a ser mesmo muito triste. O velho de Cádis veio a pé até Roma. Que queria ele ver? Nem os templos, nem os teatros, nem as estátuas, nem a multidão, nem as lojas, nem o Senado, mas um homem. Que homem? Aquele que se vê nas moedas? Não, não, mais do que isso. Ele queria ver Tito Lívio, cujas obras, parece, sabia de cor. Viu-o, cumprimentou-o e voltou direito para Cádis, onde morreu em seguida. Fora tão longo o caminho e sobretudo tão grande a desilusão que o pobre velho não os pudera suportar. (…)

In «Eu, Cláudio Imperador», de Robert Graves (a partir da autobiografia de Tibério Cláudio, com tradução de Rogério Petinga), Livraria Bertrand, Amadora, Fevereiro de 1979 (1.ª edição).

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

[Uma pedra, o barro seco, a cal], poema de Júlio Pomar

Fotografia encontrada em http://permanentereencontro.blogspot.pt/

Uma pedra, o barro seco, a cal.
A pedra, usada. Um gume de ternura, a unha rente.

As coisas, fora das palavras.
As palavras, roídas por dentro.

(Parar o riso, eco sem poço.)

O negro, o áspero, a estria.
A consistência do plano, a mão pesada, o passo enleado
no que solta.

Contra a parede, a língua.

O chão gretado, a pele.

In «Alguns eventos», poesia de Júlio Pomar (com um desenho do autor), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1992 (1.ª edição).

[No limiar], poema de Júlio Pomar

Imagem encontrada em http://www.cm-porto.pt/ – «No limiar da visibilidade» é o título 
de uma exposição de Wolfgang Tillmans, fotógrafo que exibe o seu trabalho em Serralves 

No limiar
ficavas. Foi-se o calendário.
Não houve festas. Um ou outro aviso.

Apenas um
murmúrio. Ou elo
aberto. O que tu não
dizias.

Alguma pena, talvez saudades, outros vagares.

In «Alguns eventos», poesia de Júlio Pomar (com um desenho do autor), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1992 (1.ª edição).

[Não te direi a palavra não farei o sinal], poema de Júlio Pomar
















Não te direi a palavra não farei o sinal
guardarei o gesto a chave o entendimento
haverá um espaço branco um som contínuo
em que nada habitará (quem habita as pontes?)

In «Alguns eventos», poesia de Júlio Pomar (com um desenho do autor), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1992 (1.ª edição).

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

[Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto], excerto de «A metamorfose», de Franz Kafka

Imagem encontrada em https://livroarbitriodotco.wordpress.com

Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em rijos segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a pontos de resvalar completamente. As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo, agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.
«Que me aconteceu?», pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, sobre a qual se estendia, desembrulhada e em desordem, uma série de amostras de roupas – Samsa era caixeiro-viajante –, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, dentro do qual todo o antebraço se lhe sumia!
Gregor desviou então a vista para a janela e o céu nublado – ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela – fê-lo sentir-se bastante melancólico. «Que tal, se dormisse mais um bocado e esquecesse todo este disparate?», pensou. Mas era impossível, porque estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais violentamente que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.
«Oh, meu Deus», pensou, «que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há a maçada de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos comboios, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto!» Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contacto, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.
Voltou a deixar-se escorregar para a posição primitiva. «Isto de levantar cedo», pensou, «estupidifica uma pessoa […]»

In «A metamorfose» (volume que inclui também «O Novo Advogado» e «Um Médico de Aldeia»), de Franz Kafka (tradução de J. A. Teixeira Aguilar, do título original «Die Verwandlung»), Colecção “Livros de Bolso Europa-América” – n.º 114, Publicações Europa-América, Mem Martins, Julho de 1975.

CORAÇÃO DO DIA, memória de António Lobo Antunes

Foto encontrada em https://pt.pinterest.com
(*)
O poeta Eugénio de Andrade está muito doente. É meu amigo e não tenho coragem de o visitar. Quando ia à sua casa, no Passeio Alegre, um espaço de cuidadosa brancura diante das palmeiras e do mar, recebia-me com vinho fino, biscoitos, livros, pequenas atenções que me tocavam, conforme me tocava a sua delicadeza, a sua fidalguia. A mesa de mármore para escrever. Nunca me disse mal de ninguém e a vaidade que o habitava, tão ingénua, comovia-me. Em certo sentido conservou-se sempre um camponês da Beira Baixa natal, feito de puerilidade e manha, gerindo ciosamente a sua obra a fingir-se desinteressado, distantíssimo e, no entanto, alerta como um coelho bravo. Escrevemo-nos durante anos, falávamos ao telefone com frequência, a sua ternura com as minhas filhas comovia-me. E, periodicamente, vinham versos, livros, retratos dedicados, o seu rosto a carvão pelo escultor José Rodrigues que, como dizia, «sabe a minha cara de cor». Pediu-me para fazer uma sessão de fotografias com ele: e Dario Gonçalves, pessoa muito querida sua, veio com a máquina. O Eugénio pediu-lhe um momento, desapareceu, e regressou, todo pinoca, para os bonecos. Ele mesmo escolheu os ângulos, as posições: e lá fiquei, sentado, com o Eugénio de pé atrás de mim, a mão espalmada no meu ombro, naquela pose para o Futuro que gostava de assumir. Normalmente falávamos de poesia, pedia-me que lhe lesse o que compunha, discutíamos as correcções que ele encaixava a cada edição nova e que, por vezes, me não agradavam: aceitava as críticas numa humildade de criança apanhada em falta, experimentávamos outras palavras, repetíamos tudo. A sua solicitude e a sua ternura em relação a mim eram infinitas. Já doente e estando eu em Roma para um prémio, o padre e poeta José Tolentino Mendonça, que ele apreciava grandemente e é um dos poucos homens que admiro e respeito, contava-me que o Eugénio o chamava, preocupado que eu estivesse bem. Punha, na camaradagem, um desvelo fraterno, ainda que fosse um homem rugoso, cheio de caprichos, capaz de uma violência fria, insuportável para quem não estimava, e de uma coragem física que, em geral, se não lhe adivinhava. Dele recebi durante anos e anos inúmeras provas de estima. Censuro-me não o visitar agora: é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezava a beleza e a sua própria beleza
   (o Eduardo Lourenço, amigo de ambos
   – E então chegou-nos a Coimbra aquele Rimbaud)
  a doença resolveu destruí-lo no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico, o «cesto roto» que Cesário Verde, uma das suas paixões, evocava a respeito de si mesmo, enquanto a tuberculose o «escangalhava»: «Entra-me a chuva, entra-me o vento no corpo escangalhado». Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando
   (e era verdade)
  o «repouso no coração do lume». E, depois, havia pequenos actos que o definiam inteiro: uma das ocasiões em que fui ao Porto encontrei um livro de Jorge de Sena, um livro póstumo, horrível, em que Sena atacava companheiros de viagem (Cesariny e Vitorino Nemésio, por exemplo, muito melhores artistas do que ele) de um modo tão vil que me indignou. Referi o livro ao Eugénio. Ele ficou longamente em silêncio e depois tirou o seu exemplar debaixo de um móvel e pouso-o no sofá. Segredou
   – Tinha-o aqui escondido, sabe, porque não queria que pensasse mal do Jorge.
Eu nunca conheci Jorge de Sena e no entanto na boca do Eugénio era sempre o Jorge, tal como, para o Zé Cardoso Pires, Alves Redol era sempre o António, Carlos de Oliveira o Carlos, e tão-pouco conheci Redol ou Oliveira. Mas este acto do Eugénio define-o bem: a defesa intransigente daqueles que amava, a sua preocupação em cuidar-lhes do perfil com um carinho idêntico ao que punha no cuidar do seu. Tinha a paixão da amizade, que poucos lhe mereciam, aliás, e uma rara, permanente fidelidade a ela. Reparo agora que estou a relatar tudo isto no passado, como se o Eugénio tivesse morrido. Talvez porque o homem que continua vivo não é ele. Talvez por pudor meu. Talvez porque o fim de um amigo me seja difícil. Talvez porque me custa não vir abrir-me a porta se tocar à campainha, subir as escadas e dar, nas paredes, com múltiplas representações suas por múltiplos pintores, dúzias de Eugénios de todas as idades, aparências, feitios, de qualidade variável, bons, maus, assim-assim, as dúzias de Eugénios, obsessivamente repetidos de que o encantava rodear-se. No meio de tanto Eugénio imóvel só ele se mexia. Deixava escapar para um, para outro, um soslaiozinho satisfeito, contente de ser vinte, de ser trinta, de ser quarenta, de ser uma multidão de criaturas que formavam uma espécie de guarda de honra à sua volta, à medida que desrolhava o vinho fino, me servia um cálice
Eugénio de Andrade visto por Emerenciano (1988)
   – Não posso beber
 me chegava um guardanapo de linho ofuscante, um prato de biscoitos, taças de bombons, anunciava
   – Comprei-os para si
   ocupava a poltrona puxando a manta sobre os joelhos
   – Este frio
   relanceava as árvores, as ondas, gaivotas cinzentas que gritavam, sacudia a mão num gestozinho precioso de prestidigitador e adiantava o peão do rei do início de uma frase. Duas ou três horas depois acompanhava-me à saída como se avançássemos em corredores de palácio. E de certo modo aquele edifício pequeno era de facto um palácio. O seu palácio e ele um velho conde entre cortejos de glórias inventadas e reais. Quanto mais inventadas mais reais. Da rua, as janelas acesas pareciam mostrar uma casa vazia. Antes assim: se topasse alguém nas cortinas não saberia distinguir se era o Eugénio ou uma das suas representações encaixilhadas quem me acenava de cima. Ou então ele só existia quando estávamos juntos. Se não estávamos suponho que não passava de uma das palmeiras do Passeio Alegre, dobrando-se para a direita e para [a] esquerda consoante o vento e os borrifos do mar.

(*) Texto publicado na revista «Visão», em 6 de Maio de 2000, e posteriormente incluído no «Terceiro Livro de Crónicas» [de António Lobo Antunes], Publicações Dom Quixote, 2005.
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In «Eugénio de Andrade – Primeiros poemas. As mãos e os frutos. Os amantes sem dinheiro», colectânea com poemas de Eugénio de Andrade (incluindo o texto «Coração do dia», memória de António Lobo Antunes; «Paratextos», com prefácio de Jorge de Sena à Obra de Eugénio de Andrade/1 e textos incluídos nas badanas da mesma obra, por Vitorino Nemésio, António Ramos Rosa e Eduardo Lourenço; além de nota bibliográfica), Biblioteca «Obra de Eugénio de Andrade», Quasi Edições/Fundação Eugénio de Andrade, Vila Nova de Famalicão, Novembro de 2006.