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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

[Que farei hoje? Irei à taberna?], ruba’i de Omar Khayyam

Imagem encontrada em http://www.academia-vinhaevinho.com/

Que farei hoje? Irei à taberna?
Irei sentar-me num jardim ou debruçar-me sobre um livro?
Um pássaro voa. Para onde vai?
Perdi-o de vista. Embriaguez de um pássaro no azul tórrido!
Melancolia de um homem, na fresca sombra de uma mesquita!

In «Rubaiyat – Odes ao vinho», de Omar Khayyam (com prefácio de E. M. de Melo e Castro e tradução de Fernando Castro), colecção «Clássicos de Bolso» (n.º 62), Editorial Estampa, Junho de 1999 (3.ª edição).

[Esta abóbada celeste, sob a qual nós vagueamos], ruba’i de Omar Khayyam

Imagem encontrada em telescopionarua.spaceblog.com.br 


Esta abóbada celeste, sob a qual nós vagueamos,
comparo-a a uma lanterna mágica
de que o sol é a lâmpada.
E o mundo é a tela onde passam as nossas imagens.

In «Rubaiyat – Odes ao vinho», de Omar Khayyam (com prefácio de E. M. de Melo e Castro e tradução de Fernando Castro), colecção «Clássicos de Bolso» (n.º 62), Editorial Estampa, Junho de 1999 (3.ª edição).

[Adivinhas o que pode acontecer-te amanhã?], ruba’i (pequena composição em verso) de Omar Khayyam

Omar Khayyam – Imagem encontrada em http://www.famous-mathematicians.com/

Adivinhas o que pode acontecer-te amanhã?
Sê confiante, senão o infortúnio não deixará de justificar os teus receios.
Não te prendas a nada, não interrogues nem os livros nem as pessoas,
porque o nosso destino é insondável.

In «Rubaiyat – Odes ao vinho», de Omar Khayyam (com prefácio de E. M. de Melo e Castro e tradução de Fernando Castro), colecção «Clássicos de Bolso» (n.º 62), Editorial Estampa, Junho de 1999 (3.ª edição).

sábado, 22 de fevereiro de 2014

«ESCREVER», soneto de Lina Céu

Lina Céu no Palácio Galveias, em Lisboa
(Foto encontrada em http://mariaivonevairinho_na_app.blogs.sapo.pt/)



















É preciso plantar, gerar, escrever
Uma árvore, um filho, uma edição
De quê, de autor? Anónima e sozinha,
Como uma flor humilde, pobrezinha

E que ninguém vai querer cheirar, colher,
Por não ter a chancela ou o brasão?
Um livro, para quê? Se a forma pura
E mais genuína de arte e de loucura

É o acto de escrever e de criar
Em si, por si, sem vício de outra gente
A procurar sentir o que não sente,

A adulterar o caule e a semente
A pôr e a dispor ritmo diferente
A corromper a obra em vez de a amar…

In «Terra Rasgada», de Lina Céu (com prefácio da autora), Papiro Editora, Porto, Abril de 2008 (1.ª edição).

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

[sem esquecer o seu aviário à Edgar Poe]: a imaginação de Carlos de Oliveira segundo Eduardo Lourenço

Imagem retirada de http://docecomoachuva.blogspot.pt/

Sem insistir em paralelos ou aproximações que são sempre excessivos, há um lado goyesco na imaginação de Carlos de Oliveira, mas de um goyesco sem sátira, nem verdadeiro grotesco. Não é temerário afirmar que o lado orgânico da existência, sobretudo o das formas tradicionalmente repulsivas, digamos o lado pré-histórico da vida, apavora o poeta aparentemente racionalista e optimista de Terra de Harmonia.
Carlos de Oliveira escreveu, no interior do horizonte neo-realista, a poesia mais embebida do horror físico e metafísico da morte que aí se encontra. Mas superior a esse horror (e fascinação) é o que se liga às «asas de morcego», às «toupeiras», aos «fetos», sem esquecer o seu aviário à Edgar Poe de mochos, de corvos, de águias fatais, arsenal mítico dos seus pavores infantis transfigurados em lobisomens, em bruxas, a que muito neo-romanticamente dá emprego e força na sua poesia e nos seus romances.

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

[O tempo é um velho corvo], a poesia de Carlos de Oliveira sob o olhar de Eduardo Lourenço

Carlos de Oliveira – Fotografia encontrada em http://www.avante.pt/

A verdade é que a meditação essencial na poesia de Carlos de Oliveira não se processa no horizonte-limite da morte, mas com insistência no círculo do Tempo, com maiúscula, pois é assim que ele comparece e «assombra» a sua poesia. O Tempo é ocasião de uma vivência mais rica que a sua abolição e Carlos de Oliveira encontrará nela a ocasião das suas imagens mais pessoais e bizarras:

O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias num sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos!
[...]

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

[Quantos moinhos de vento há por Portugal adiante a pedir a mesma investida que nos de Espanha praticou o Cavaleiro da Triste Figura!], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em www.vivaviver.com.br    

La Carolina, Hotel Cervantes, 20 de Abril de 1951Quis o acaso que fosse debaixo da sombra tutelar do grande nome de D. Miguel de Saavedra que eu passasse esta noite, antes de penetrar nas planuras que foram, por assim dizer, o pergaminho telúrico onde escreveu a sua história imortal. Uma espécie de velada literária, que humildemente agradeço aos deuses.
A avaliar pelo que já se adivinha, não vou certamente encontrar nada que se pareça com um ambiente inteiramente característico, inconfundível, específico, daquela desmedida aventura. Estradas intermináveis, solidão e secura, são o pão-nosso de cada dia nesta Ibéria de Deus. O génio é que tem o dom de tornar flagrantes os cenários das suas criações, iluminando-lhes de tal maneira o exterior com a luz interior da acção, que a obra acaba por nos parecer uma realidade apenas possível no palco onde nos foi mostrada.
No céu que seja, um odre de vinho, furado, é um odre de vinho a esguichar. Mas se for a estocada do sublime louco que o atravesse numa hora de cegueira combativa, então estamos numa taberna concreta descrita a páginas tantas. Quantos moinhos de vento há por Portugal adiante a pedir a mesma investida que nos de Espanha praticou o Cavaleiro da Triste Figura! Tivesse o nosso Frei de Luís de Sousa, em vez de gramática, imaginação, e a força alada destas velas remendadas pertenceria às que em Santarém empurram penosamente a dura mó dum pão quotidiano.
O destino, porém, determinou que fosse a dois passos de aqui que a pena inspirada e fantasista dum homem fizesse a maior sinalização geodésica de que há memória. «En un lugar de la Mancha...» Não conheço livro nenhum tão nitidamente plantado. Só a Bíblia tem um princípio com igual marcação. Mas o verbo do Génesis é Terra no D. Quixote. Terra de Castela a Nova, seca, calcinada, onde as patas do Rocinante ainda gora erguem poeira.
Quando se pensa no pano de fundo das grandes criações da humanidade, não é positivamente a sua cor local que nos convence. Embora referenciadas, a verdade é que qualquer paisagem lhes serve. Cervantes, esse, com medo talvez de que o grande duelo do espírito que ia fazer travar entre o fidalgo e o seu escudeiro pudesse transformar-se numa justa por demais abstracta, teve o cuidado de assinalar devidamente no mapa do mundo o terreiro preciso onde os comparsas haviam de se movimentar. E, pelos séculos dos séculos, peregrinos como eu virão encaixilhar na desolação dos horizontes intermináveis que eu ainda mal descortino o perfil do magro sonhador. A nascer dum chão inóspito e a rasgar com a ponta o cetim do céu vazio, a sua lança entende-se melhor. É uma espécie de açucena de ferro e pau, alucinada entre a maldade dos homens e a indiferença de Deus.

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

[Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em http://www.guiadacidade.pt/
Coimbra, 11 de Março de 1951 – Resposta a um inquérito do Journal des Poètes:
Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo: todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses tempos, esquecer que o animal de quatro, duas e três patas do enigma (na meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado ao bordão na velhice) não era apenas um Sócrates de eleição mas também seu escravo, quer o confesse, quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. E a liberdade da sua existência não terá sentido e dignidade se em vez de conquistada for uma concessão recebida. Só quando insubmissos, e por isso dignos do seu nome, os poetas serão capazes de cumprir a sua missão divinatória por conta de todo o sofrimento humano. Somente da fortaleza da sua independência poderão oferecer à angústia universal a chave de um futuro melhor, construído sobre a denúncia dos crimes e das injustiças de que são testemunhas. O seu desejo de serem exemplares será a única arma do seu combate e a única esperança do seu triunfo. Corvos fugidos da arca onde navegava o medo e a passividade, terão de enfrentar a fúria do dilúvio e descobrir o rochedo onde não cheguem as vagas de nenhuma tirania. Antes de trair, os poetas têm obrigação de sucumbir. Só assim poderão espalhar a boa nova de uma verdade em perpétua renovação, pólen imponderável e alado que atravessa as fronteiras sem passaporte e fecunda do mesmo sonho todos os corações.
O que fez da Poesia um dos picos imaculados da cultura europeia, e ao mesmo tempo um factor decisivo da consciência universal, foi o seu heroísmo e a sua fidelidade a tudo o que é eterno. E para que continue entre os povos europeus essa missão purificadora e unificadora, é necessário que ele seja a expressão dos mais puros anseios de cada um e de todos. É preciso que abrace não apenas um indivíduo ou uma classe, mas o Homem. O Homem que as religiões salvaram para o céu nas catacumbas e no martírio, e que a Poesia deve salvar para a terra, à clara e alegre luz da beleza. Porque só a beleza nos arranca à solidão e nos une na mesma comunhão fraternal. Sorriso do mundo, só ela é capaz de nos oferecer aqui um ideal isento de armadilhas e contradições. Mais do que refocilar no lodo, é urgente que a Poesia arranque dele os que ali caíram desesperados, e lhes transmita a alegria de viver na descoberta sempre renovada e virginal dos seres e das coisas. Nem caridade, nem humanitarismo. Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

sábado, 15 de fevereiro de 2014

[recapitulação do itinerário poético] de Joaquim Namorado, por Eduardo Lourenço

Imagem retirada de olamtagv.wordpress.com

Embora em 1966 a liberdade formal que reina em Poesia Necessária não seja uma novidade em relação ao itinerário geral da nossa poesia, todos os seus poemas, e em particular os desta série, relevam uma indiferença rara entre os poetas neo-realistas em relação às formas costumadas e na melhor das tradições modernistas de apagamento da fronteira «poética» e «prosaica». É o que ressalta de uma poesia como Poeta, singular desse ponto de vista e igualmente quanto ao fundo, pois constitui, como nenhuma outra, uma recapitulação do itinerário poético (e da poética) do autor. É uma profissão de fé que ultrapassa o seu caso pessoal e lhe confere foros de símbolo – programa de toda uma corrente poética:

A poesia é uma máquina
                de produzir entusiasmo
é preciso que os versos sejam verdadeiros
na vida dos poetas
                 como a tua erguida
                 sobre os anos futuros
quando o próprio bronze das estátuas se cobrir
do verdete do esquecimento
                 e das ortigas
entre as ruínas de um passado morto
e as pequenas plaquetas dos sentimentos pobres
dos lírios delírios
das doidas metáforas sem sentido
louvadas pela crítica
só tenham o arqueológico encanto
de um cabelo de Ofélia… 

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

[Tombam os dias inúteis], excerto sobre a poesia de Joaquim Namorado, num ensaio de Eduardo Lourenço

Joaquim Namorado







A desistência, o medo, o «sonambulismo» encontrava no poeta pouca complacência. Mas a nítida consciência de uma fragilidade inerente à situação histórica combativa empresta a esses poemas uma ressonância que a pura apóstrofe «heróica», sem sombras, de Aviso à Navegação não comportava:

Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
................................................
Sonâmbula a vida decorre
– nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
– mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras
os gestos vazios,
a vida sem sentido
– sonambulismo apenas.

Acorda!
...............
Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente. 

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Joaquim Namorado e a poesia neo-realista, na visão de Eduardo Lourenço

Joaquim Namorado 
(Foto encontrada em voarforadaasa.blogspot.com)
É com o poema Judas, embora nitidamente inferior, o segundo momento significativo do itinerário adolescente de Joaquim Namorado. Sob a roupagem torguiana, antevê-se a passagem da revolta subjectiva, cujos termos e mitologia permaneceram invariáveis entre nós desde os fins do século XIX e seu idealismo anarquista, para uma revolta de contornos mais concretos na qual ela se despirá dos últimos resíduos dessa mitologia e passará de forma de consciência acusada a consciência acusadora. O sentimento de injustiça e em particular de uma injustiça social que se cobre com a respeitável máscara da referência religiosa, embora sem expressão poética digna de registo, apresenta-se já com Joaquim Namorado. Em nenhum outro poeta neo-realista – salvo Álvaro Feijó – se entrevê com tanta nitidez o processo de contestação de um mundo e uma sociedade como religado à falência objectiva desse mundo, em particular a sua falência religiosa. Para quem suponha que o «neo-realismo» é simples eco de uma ideologia alheia caída no céu português mercê de circunstâncias fortuitas, esta juvenil Invenção do Poeta (leia-se, invenção do poeta social futuro...) é inexplicável. A sua forma, demasiado dependente da dos grandes poetas contemporâneos, sem poder comparar-se-lhe, não contribui par emprestar a um tal combate espiritual, moral e ideológico o relevo que se poderia esperar. Mas isso não impede que o tomemos a sério e vejamos nele a representativa «transmutação» de toda uma geração do círculo do «presencismo» para outra coisa ainda indefinida que no último poema de Invenção do Poeta se evoca como

a claridade de um dia maior.

É já com a consciência perfeita de se situar nesta «claridade de um dia maior» que o poeta publica Aviso à Navegação (1941) na colecção «Novo Cancioneiro» de que constituirá uma das obras mais típicas. País de navegadores por antonomásia pareceria que o tema da navegação enquanto símbolo da nossa experiência histórica e metafísica ou vital nos fosse habitual. Tal não é o caso, o que prova sem dúvida que a mitologia navegadora é, sobretudo, referência ideológica. Na poesia moderna, a navegação como aventura da alma e do espírito (mais do que do corpo) é, na essência, obra de Pessoa-Álvaro de Campos – cuja presença em Aviso à Navegação é fundamental. Sem as implicações metafísicas ou ocultistas de Pessoa o mesmo tema havia encontrado na própria Presença, na poesia de Branquinho da Fonseca ou em poetas afins um testamento admirável, a tal ponto que o tópico marítimo e viajante se tornará um dos mais vivos da poesia portuguesa posterior.

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

A poesia de Joaquim Namorado vista por Eduardo Lourenço

Joaquim Namorado






Que diferença entre essa Noite calma dos portos e o poema que dá o título ao livro, Aviso à Navegação, homenagem, aceno sentimental ao amigo Álvaro Feijó que primeiro que ele se lançara nessa simbologia marítimo-ideológica:

Alto lá!
Aviso à navegação!
Eu não morri:
estou aqui
na ilha sem nome
sem latitude nem longitude
perdida nos mapas
perdida no mar Tenebroso!

Sim, eu,
o perigo para a navegação!
o dos saques e das abordagens,
o capitão da fragata
cem vezes torpedeada
cem vezes afundada
mas sempre ressuscitada!
.............................................................
Aviso à navegação:
não espereis de mim a paz!
.............................................................
Que na guerra
só conheço dois destinos:
ou vencer – ai dos vencidos –
ou morrer sob os escombros
da luta que alevantei!
.............................................................
Não espereis de mim a paz
que vos não sei perdoar!

Uma das notas paradoxais deste «poema-epígrafe» é o de se servir da forma «presencista» e mesmo do seu tom (pelo menos do de Torga) para um fim militante oposto ao da poesia anterior. A hipérbole do «eu» já nossa conhecida está ao serviço de uma «guerra» que o ultrapassa. Mas o mais interessante é o aparecimento do tema da intransigência ideológica, embora envolto em velhas roupagens. É uma intransigência correlativa do combate implacável que não se escolheu tanto, como ele nos escolheu. O poema que termina a primeira parte de Aviso à Navegação reafirmá-lo-á num veemente e amplo movimento retórico de desafio:

Viemos ao mundo sós e nus, nada temos a perder
Se nos pedirem preço, o preço é a vida!

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

[e já se aperram as pistolas], registo diarístico de Miguel Torga

Charles Baudelaire, 1863 (por Étienne Carjat)
Coimbra, 11 de Dezembro – Não há dúvida: – A poesia portuguesa dividiu-se. A um grande rio barrento veio desembocar um corgo cristalino. No mar do esquecimento que espera todas as realizações humanas, talvez se juntem e desapareçam. Mas até lá, vê-se nitidamente a fronteira das duas águas. Foi uma graça formal, uma economia de meios, uma modernidade de imagens e de sensações que vieram arejar uma retórica de comício, um sentimentalismo piegas, um bombeirismo arcádico, que desgraçadamente têm fundas raízes no nosso temperamento.
Embora tardiamente, também ao luso Parnaso chegou um pouco do gosto, do arrojo e da força renovadora que são a glória de Baudelaire.
A marca literária dos tempos presentes é o desejo incansável de uma originalidade a todo o preço. E sendo certo que é melhor possuir a originalidade do que procurá-la, em última análise o que importa é encontrá-la nas obras. O que felizmente vai acontecendo por cá.
Caudalosa, porém, a velha corrente recusa-se a considerar sequer a transparência que a margina. Fiéis ao passado, teimosamente antediluvianos, certos nomes com prestígio insistem na sua impetuosa cegueira, ou porque realmente não podem, ou porque verdadeiramente não querem ver a perdição. Um refluir incansável e trágico do mau gosto ancestral apoia-os, de resto, com pertinácia. É ver o que se passa neste momento: – Ainda a aura benéfica de Fernando Pessoa está a crescer, e já se aperram as pistolas contra ela.
Seja como for, os dados estão na mesa; digam o que disserem, não há despeitos impotentes que apaguem na pedra a marca de certas presenças. O rio barrento tem à perna um espelho de claridade...

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).

[Sísifo, como toda a gente], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em www.portalsaofrancisco.com.br
Coimbra, 7 de Novembro – Mais um livro. Mais um teimoso esforço para romper caminho nesta noite absurda que rodeia tudo. Azarento como sou, em vez duma época luminosa e fecunda coube-me a escuridão dum poço de onde tento sair a todo o pano. Sísifo, como toda a gente, mas convencido de que há-de ser transitória a actual condenação do homem, empurro a pedra sem acreditar no mito. Pode lá ser verdade este neo-romantismo sem esperança, só tédio e angústia, agónico na forma e no conteúdo!
Não! Embora marcado pelo meu tempo, e solidário com as suas dores, creio firmemente que o futuro há-de sanear esta podridão. E cá ando com todas as minhas forças à espera do dia de amanhã.

In «Diário (5.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1974 (3.ª edição, revista).