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sábado, 30 de janeiro de 2016

COMO A ONDA, poema de João Maia

Imagem encontrada em http://cabodofimdomundo.blogspot.pt/
















Como a onda a um toque de vento,
Principia um poema,
Lá longe,
No mar largo da vida.

Junta as coisas perdidas
À força que o levanta:
– Vozes, acenos, olhares,
As frases sem motivo,
Leves espumas.

Cresce cantando,
Cresce reunindo e caminhando
À Síntese eleita
E morre como a onda, ao encontrar
Outra onda mais pura e mais perfeita.

In «Écloga impossível», de João Maia, colecção «Círculo de Poesia» (n.º 8), Livraria Morais Editora, Lisboa, 1960 (1.ª edição).

ÉCLOGA IMPOSSÍVEL, de João Maia

Imagem encontrada em http://www.luso-poemas.net/

O ar, o céu, o horizonte
E um rebanho imaginário
Que o pensamento a bulir, vário,
Traga à écloga que desponte
Por mim – seu prado solitário.

Balancem os freixos e os olmeiros,
A grande altura, no ar dormente,
A uma brisa de antigamente,
Finos, esguios e verdadeiros:
Quero uma écloga viva e silente.

Assim me sonho, assim me vejo,
Ser rio claro, ser verso puro
Calma e silêncio que conjecturo,
Propício à alma do meu desejo
– Única rosa do chão que é duro.

Assim me sonho, mas não consigo
Ver-te real, ver-te infalível
Prado florido, rio exequível
Por quem fui ontem; mas, se prossigo
Por quem sou hoje – rio impossível.

In «Écloga impossível», de João Maia, colecção «Círculo de Poesia» (n.º 8), Livraria Morais Editora, Lisboa, 1960 (1.ª edição).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A ÁRVORE E A CHUVA, poema de Tomas Tranströmer

Imagem encontrada em http://jcmgestor.blogspot.pt/

Uma árvore passeia-se à chuva,
passa por nós no cinzento refrescante do dia.
Tem um assunto a tratar. Apanha vida da chuva
como um pintassilgo num pomar.

Quando pára de chover, a árvore também pára.
E vislumbra em frente, quieta em noites de luar,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve decorem o céu.

In «50 Poemas», de Tomas Tranströmer (tradução do sueco por Alexandre Pastor, autor da nota introdutória «Uma Voz Diferente» e das restantes notas; revisão de texto: Anabela Prates Carvalho), Relógio D’Água Editores, Julho de 2012 (1.ª edição).

O BARCO – A ALDEIA, poema de Tomas Tranströmer

Imagem encontrada em http://marcadagua-pt.blogspot.pt/

Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas eu estou lá – onde seis homens a bordo não vêem que nós somos sete.
         
Assisti à construção de um barco destes, parecia um alaúde enorme sem cordas
na ravina de pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apupos rufavam contra as chapas do veículo.

In «50 Poemas», de Tomas Tranströmer (tradução do sueco por Alexandre Pastor, autor da nota introdutória «Uma Voz Diferente» e das restantes notas; revisão de texto: Anabela Prates Carvalho), Relógio D’Água Editores, Julho de 2012 (1.ª edição).

LISBOA, poema de Tomas Tranströmer (Nobel da Literatura 2011)

Foto encontrada em http://cheaptrip.livejournal.com/

No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.

“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
com um binóculo a olhar para o mar.

Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas**.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”

** Alusão humorística à censura da PIDE.


In «50 Poemas», de Tomas Tranströmer (tradução do sueco por Alexandre Pastor, autor da nota introdutória «Uma Voz Diferente» e das restantes notas; revisão de texto: Anabela Prates Carvalho), Relógio D’Água Editores, Julho de 2012 (1.ª edição).

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

«A par da “Fabrica” de Vesálio, a obra de Harvey tornava-se um marco basilar da ciência médica», escreve Fernando Namora

Imagem encontrada em http://textosciencia.blogspot.pt/
Harvey escolhe Francoforte, reputado centro editorial, para a publicação da sua obra, que veio a ser lançada, com súbito escândalo, pelo célebre editor Guilherme Fitzer, na Feira do Livro de 1628. Dá-lhe o título de Exercitatio anatómica de motu cordis et sanguinis in animalibus e dedica-a a Carlos I, que se interessar vivamente pelos seus trabalhos: «Vós, que sois a nova luz do nosso tempo e, na realidade, o seu verdadeiro coração; vós, príncipe cheio de virtude e de clemência, ao qual eu, com alegria, atribuo todas as bendições de que goza a Inglaterra e todo o bem-estar das nossas vidas, suplico-vos que aceiteis com a vossa usual generosidade este meu tratado sobre o coração.»
Embora Harvey proclame a circulação, tal como a descreve, uma verdade positiva, deixa perceber os seus receios e sublinha os melindres que teve de superar. No preâmbulo ao capítulo VIII, por exemplo, confidencia: «Mas o que fica por dizer é de natureza tão inaudita e tão nova, que, se o disser, não só desafio a inveja de uma minoria como tremo de pensar que talvez me acarrete a aversão da humanidade inteira, pois têm grande poder a força do hábito e a influência que o respeito pelos antigos e pelas doutrinas profundamente arreigadas exercem em todos os homens. Contudo, a sorte está lançada e confio no meu amor à verdade e na boa-fé inerente aos espíritos cultivados.» E mais adiante, depois de discorrer sobre a disposição e estrutura íntima das válvulas cardíacas: «Comecei a ponderar sobre a quantidade de sangue que se desloca de um sítio para o outro, e logo compreendi que era impossível que tal abundância de sangue pudesse ser produzida somente pelos produtos da digestão, pois nesse caso depressa as veias ficariam exaustas e as artérias rebentariam por não poderem conter a enorme quantidade de sangue que lhe chegava…»
A par da Fabrica de Vesálio, a obra de Harvey tornava-se um marco basilar da ciência médica. Ficava a saber-se que as funções orgânicas dependiam de um fluido circundante, servindo o intercâmbio entre os diferentes órgãos, uma via fluvial que ligasse os diferentes centros produtores de um vasto e complexo império, coordenando-os com surpreendente perfeição. (…)arvey tornoHarvey tornava-se um marco basilar da ciência médica.  

In «Deuses e Demónios da Medicina – biografias romanceadas» (primeiro volume), de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989 (7.ª edição).

Paracelso e os «traços benéficos da influência de Erasmo e de Frobénio», segundo Fernando Namora

Johann Froben, impressor e editor suíço 
(imagem encontrada em https://fr.wikipedia.org)
Com a Renascença nasce uma nobre profissão: a de impressor. As obras, até aí raras e inacessíveis, cuja expansão, forçosamente minguada, dependia dos copistas, que, além de morosos, algumas vezes as abastardavam, passam a difundir-se a baixo preço, escapando ao privilégio de certas classes, estabelecendo um traço de união entre os que se isolam para esconder a sua indocilidade aos severos preconceitos. Os escritos dos mestres gregos propagam-se, finalmente, no seu texto original, numa pureza que, com frequência, havia sido viciada pelos comentadores, a crítica afirma-se, a discussão é favorecida. Em Veneza, Basileia, Lião, Francoforte e Paris, enquanto as artes se libertam das convenções místicas, restaurando o culto da beleza corporal, e os navegadores, apoiados numa nova concepção da arte náutica e do desenho dos navios, desvendam regiões ignoradas, alargando os domínios da inteligência, e os intelectuais universalizam as suas ideias, nessas cidades abrem-se oficinas de impressão, fundadas e orientadas por espíritos esclarecidos, que fazem ressuscitar Platão, traduzir Aristóteles e Teofrasto, que levam a todo o mundo os escritos clássicos e dos que preparam uma fulgurosa jornada da história da humanidade. O poder deste instrumento de convívio e disseminação da cultura pode medir-se pela resistência que lhe é oposta, pelo rancor dos esbirros que queimam as obras impressas em fogueiras de intolerância e de pânico.
Um desses construtores do novo mundo que quer conhecer-se e emancipar-se através do livro é Frobénio, célebre editor de Basileia, divulgador do humanista Erasmo. Ele é um dos que sentem a necessidade de mudança e de pensamento inconformista, de expansão de ideias novas e de libertação das faculdades criadoras do homem, amodorradas durante a Idade Média, ao mesmo tempo que se revaloriza o saber clássico, esteio dessa mesma inquietude.
Mas Frobénio adoece gravemente, com uma ferida infectada do pé, que depressa lhe inflama todo o membro e lhe envenena o organismo. Os médicos terão de amputar-lhe a perna, embora se receie que essa mutilação não baste para travar a marcha da terrível gangrena. No povo, entretanto, fala-se de um homem estranho, chamado Paracelso, meio demónio, meio louco, que serena os atormentados, cura os sifilíticos e profere violentos anátemas contra os médicos estiolados numa ciência escolástica, nos erros dos mestres do passado, esquecidos das luminosas lições da natureza. É um homem truculento e imprevisto, boémio, de hábitos grosseiros, curtindo bebedeiras em cima de uma enxerga, para a qual se atira, a desoras, mesmo vestido, embora pouco depois, alucinado, se levante brandindo uma espada contra imaginários opositores, um homem que abençoado pelos humildes, a quem alivia das moléstias, e escarnecido pelos doutores, percorre aldeias e cidades apregoando uma revolucionária medicina. Apóstolo ou herege, lunático ou predestinado, os seus dotes de médico são invulgares.
Erasmo, desorientado com a doença do amigo, decide confiar nesse discutido reformador da arte médica, e roga-lhe que visite Frobénio. Paracelso observa a perna em decomposição, os indecisos médicos que se agrupam em redor do enfermo, e grita-lhes:
– Sois vós, caçadores de piolhos, que permitis que este organismo apodreça?
Erasmo, aturdido, ainda procura sofrear o indecoroso aventureiro, mas baldadamente. As convenções, o bom senso, a cortesia hipócrita, não servem a Paracelso. Os seus arrebatamentos vão sempre até ao fim. Por isso, insiste:
– Haveis deixado gangrenar esta perna e, para vergonha vossa, já não sabeis propor outra coisa do que o cutelo do açougueiro? Curo-te eu, Frobénio. Expulsa estes farsantes de tua casa?
E Frobénio, na verdade, curou-se. Paracelso, mercê deste êxito, conquista dois firmes partidários, que logo procuram persuadir os magistrados a acolherem o insubmisso médico e a nomearem-no, apesar dos seus duvidosos títulos e verdura de anos, prelector da Universidade. Frobénio, além disso, publica-lhe algumas obras e tanto ele como Erasmo tentam impô-lo à consideração da gente ilustrada, embora reconheçam os riscos a que se expõem. Paracelso é um irreverente, um áspero antagonista, e para todos se mostra agressivo. Uma nova doutrina, para florescer, não pode contemporizar com os que pretendem refreá-la, necessita do fogo da luta da exaltação. Paracelso não chega a Basileia para cortejar uma situação rendosa e confortável, mas sim para demolir. Que não lhe exigissem, pois, boas maneiras. Os seus dois amigos compreendiam estas verdades, também eles pertenciam ao movimento que se propunha desembaraçar a cultura dos ídolos e dos dogmas, e, consequentemente, não se amofinavam com as bizarrias de Paracelso. Em certas obras deste, assinalam-se traços benéficos da influência de Erasmo e de Frobénio. (…)

In «Deuses e Demónios da Medicina – biografias romanceadas» (primeiro volume), de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989 (7.ª edição).

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

PALAVRAS, na poesia de António Pedro Pita

Imagem encontrada em http://www.licaodevida.com/


















Palavras:
destroços de mar

In «Quem da sombra nada sabe», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

NOCTURNO DE BUARCOS, poema de António Pedro Pita

António Pedro Pita – foto encontrada em http://leduardolourenco.blogspot.pt/

De tanto mar
de tanta luz

do vento   das gaivotas
da pegada da maresia

guardar um pouco de dia

E no fim da praia
esperam o autocarro
sobem um a um três
degraus
compram bilhete
descansam no lugar, se
possível junto da janela
e a areia extingue-se
o mar seca
o sol
cai

In «Quem da sombra nada sabe», de António Pedro Pita, Pé de Página Editores, Coimbra, Janeiro de 2007 (1.ª edição).

QUE MÁGOA TENHO! QUE MÁGOA TENHO! – poema de Arquimedes da Silva Santos


Que mágoa tenho! Que mágoa tenho!
Em minha pátria estranho.

(E a medo e em segredo
Ver o voo de aves
Remar a outro lar)

Em minha pátria estranho
Que mágoa tenho? Que mágoa tenho?

In «Cantos cativos – Poemas coligidos: 1938-58», de Arquimedes da Silva Santos, Colecção Campo da Poesia (n.º 51), Campo das Letras, Porto, Maio de 2003 (1.ª edição).

HÁ TRÊS DIAS NÃO MANJARA, poema de Arquimedes da Silva Santos

Imagem encontrada em http://clubearlivre.org/
















Ao Manuel da Fonseca

Há três dias não manjara
Mais que laranjas roubadas
Em laranjeiras de estradas.

Sozinho pelo caminho
E desfiando lembranças
Que é da mãe que é da mulher
Que é dos filhos que sonhara.

Ó senhor cá destes sítios
Com celeiros com herdades
Um pobre maltês sem ninho
Pedindo pão e pousada.
Nem cama para dormires
Nem ceia para ceares
Isto aqui não é asilo
De vagabundos de estradas.

E para a fome calar
Lá pela noite calada
Larápio fora furtar
Laranjas dum laranjal
À beira estrada.

In «Cantos cativos – Poemas coligidos: 1938-58», de Arquimedes da Silva Santos, Colecção Campo da Poesia (n.º 51), Campo das Letras, Porto, Maio de 2003 (1.ª edição).

FRAGMENTOS DE “RAPSÓDIA DA GUERRA”, poema de Arquimedes da Silva Santos

 

Imagem encontrada em https://aultimaprofecia.wordpress.com/














(Ao Fernando Piteira Santos
Ao Jorge Borges de Macedo)

1

Em todos os portos do mundo
há sempre um velho marinheiro olhando olhando
íris esbranquiçada do sal do mar.
Em todos os portos há sempre um velho marinheiro olhando
e perscrutando o que as ondas segredam.
Que sobre as ondas do largo mar não há mais Paz
porque as tinge o sangue de corpos estilhaçados
corpos por minas despedaçados
retesados e hirtos e inchados
boiando sobre as ondas num sonho de Paz…

E velhos marinheiros ouvem águas murmurar
a elegia dos gemidos de jovens marinheiros…

2

Velhos marinheiros da Holanda
inda que abrísseis todos os diques aos inimigos
passariam porque estais traídos.

Velhos marinheiros da Holanda
fumando o cachimbo da Paz
olhando olhando com olhos pisados
sentindo a elegia e a morte dos vossos filhos
fora melhor morrer também
a ver as águas do mar da Guerra
onde bóiam corpos dos vossos filhos
cuja elegia tristemente as ondas levam…

In «Cantos cativos – Poemas coligidos: 1938-58», de Arquimedes da Silva Santos, Colecção Campo da Poesia (n.º 51), Campo das Letras, Porto, Maio de 2003 (1.ª edição).

AO VAGAR D’ÁGUAS DO TEJO, poema de Arquimedes da Silva Santos


Arquimedes da Silva Santos - foto encontrada em http://voarforadaasa.blogspot.pt/

Ao Garcez da Silva
Ao Emílio Lopes

Ao vagar d’águas do Tejo
Ó minha bateira corre
Mãos calejadas nos remos
Ligeira que nem gaivota.

Águas do rio
Levai mágoas e ais
Ide repetir baixinho
Nessa carreira pró mar
Canções avieiras
Que o balanço de bateiras
Cantam vozes magoadas
De quem tem levado a vida
Ora abaixo ora arriba
Ao vagar d’águas do Tejo.

Ao vagar d’águas do Tejo
Minha bateira desliza
Ó minha bateira corre

Ao vagar d’águas do Tejo
Corre corre como a brisa.

In «Cantos cativos – Poemas coligidos: 1938-58», de Arquimedes da Silva Santos, Colecção Campo da Poesia (n.º 51), Campo das Letras, Porto, Maio de 2003 (1.ª edição).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

«Notas de viagens - Ritmos e mitos» (poesia), de Fernando Miguel Bernardes

Um poema, uma espada!...


Não. Breves embora, passíveis de plantação em rego seguido sem a cesura do verso, os poemas de Fernando Miguel Bernardes são poesia mesmo e não prosa! Que eu declaro «poesia» essa forma incisiva de, mesmo em vestes ralas, se querer abrigar o Mundo, desvendar as almas, rasgar horizontes – qual fulgente espada!
«Notas de viagens» sugeriria, como título, apontamento de etnógrafo, impressões de viajante mui deslumbrado com as aparências do típico, obediente ao que ao guia lhe apetecesse mostrar: Torre Eiffel, pirâmides de Gizé, oloroso casbá de Marraquexe, o Nilo, o Douro e o Sena… Não há guia aqui, porém, a não ser a águia de olhar bem perspicaz, Homem inteiro de visão bem funda, Irmão que sente e que pensa!
«Ritmos e mitos».
O ritmo é o que cada qual lhe quiser dar – que o Poeta é livre e quer libertar também. Preferirá, sem dúvida, um caminhar sereno, a saborear palavras, a degustar sentimentos…
Os mitos são os de sempre: por labirintos de Creta nos levam; de Cérbero, o cão, há que libertar-nos; por Fénix renascida suspiramos…
Viagem esta pelo mundo e pelo tempo, inebriada de pinceladas prenhes de uma Cultura sabiamente adquirida e mui oportunamente revisitada. Eterno convite!
Que mais se aprecia? Não é nada fácil a escolha. «Tudo!» – resposta certa seria; mas ninguém acreditava, ainda que seja essa a verdade. Há, todavia, sementeira plena de reflexões maduras, com paragens onde a palavra é mais espada e mais célere, por isso, o sangue depressa ao coração aflui, num rompante.
Tudo, afinal, é convocado por Fernando Miguel Bernardes. Os homens de antanho, sim; os homens de agora também. Filósofos, operários, crianças, o colibri, a codorniz, a andorinha, o melro, urubus (!), a flor do alecrim, a poderosa formiga que ousou passear-se por sobre a mesa em Havana, a banda e o coreto, moinhos de D. Quixote, o diamante e as minas, o Nero antigo das Twin Towers de agora… Tudo!... E da mais ínfima partícula jorram a inspiração e a voz. Sim, que versos destes são para ler com os olhos mas muito mais apetece gritá-los, atirá-los ao vento madrugada afora, gota feliz na pétala rubra da rosa! «Nasceu fulva a manhã nos teus cabelos…». Em bailia: «Abril bonito / Abril das rosas / pares no jardim / tardes formosas!...». «Passa lá um rio / Bate lá o mar»!
      A cereja: quem a tirou do cesto é dela merecedor? Assim venha por bem quem a semente quis regar na frescura do suor. Horror de mãos ocultas a colher doutrem as frutas!...
A perdiz: mil tombaram na caçada! «Onde o frumento não nasce, a perdiz não pasce» – e o clangor ecoa «pela seca vasta planura alentejana». Tem de ecoar!
Lapidar a legenda «para um portal no Bairro Alto»: «O mar ao luar tem cabelos de prata… Saudade doce mal… com absinto se trata!». Vês? Não há jeito assim – que não respiras a dizer e vai tudo de carreirinha! E não é!... São oito os versos e nem quadra querem ser. Ora vê:

O mar
ao luar
tem cabelos
de prata…

Saudade
doce mal…
com absinto
se trata!

Tem outro condão, está claro. E desta sorte, com vagar, se vai sorvendo o absinto – que isso é a saudade nossa, lenta, doce e amarga, como outro Poeta falou…
E é lindo o diamante em teu regaço; vertiginoso, o bólide leva ao rubro a multidão – já pensaste? Vê mais longe – que de tísica morreu o garimpeiro e de silicose o mineiro feneceu!...
Abraçamos o mundo. Sentimo-nos gente no meio da multidão. Gente com nome. Pessoas!
Por isso voluntariamente me deixei ferir, imolado, por esta espada fulgente!

Cascais, 19 de Dezembro de 2013
José d’Encarnação
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O AUTOR:

Fernando MIguel Bernardes  – Nasceu em Gândara dos Olivais, Leiria. Estudou nas Universidades de Coimbra e Clássica de Lisboa, onde se licenciou.
Como engenheiro geógrafo, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo nessa qualidade feito uma pós-graduação em Cálculo Científico.
Docente de Informática no ensino superior particular, exerceu também funções de técnico superior de Sistemas Informáticos numa empresa de construção naval.
Foi ainda director de departamento de uma câmara municipal da Área Metropolitana de Lisboa.
Poemas de que é autor foram musicados e cantados, ou declamados, alguns com gravação em disco ou DVD (Digital Versatile Disc), por artistas como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Manuel Freire, Daniel, José Jorge Letria, Samuel e José Carlos Ary dos Santos.
Antes da Revolução de Abril, devido à sua ideologia e posições tomadas como resistente ao regime, foi várias vezes detido, julgado e condenado nos chamados Tribunais Plenários, tendo cumprido as sucessivas penas em prisões políticas de Coimbra, Porto, Lisboa e Caxias. Mais tarde, foi-lhe reconhecido, pelos órgãos competentes da República, o «mérito excepcional da contribuição dada à defesa da Liberdade e da Democracia».
No seguimento da publicação dos seus livros para a infância e juventude, vem visitando escolas do ensino básico por todo o País, para, com as crianças, os pais e os professores, ler e comentar e dramatizar alguns dos seus textos, previamente explorados nas respectivas turmas.
Co-fundador da Organização dos Trabalhadores Científicos, é sócio activo de instituições científicas e culturais como a Sociedade de Geografia de Lisboa, na qual foi inserido como vogal da Secção de Geografia Matemática e Cartografia, ou como a Associação Portuguesa de Escritores, sendo nesta membro efectivo da Direcção.
Integra e coordena habitualmente júris de prémios literários de âmbito nacional e internacional.
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FICHA TÉCNICA
Livro: Notas de viagens - Ritmos e mitos
Autor: Fernando Miguel Bernardes (com texto introdutório de José d'Encarnação)
Ilustração da capa: Síria (fotografia da autoria de Fernando Miguel Bernardes, com tratamento de imagem de João Nuno).
Editora: Mar da Palavra - Edições, L.da
PVP: 15,90 €
N.º de páginas: 116
Formato: 14,5 x 21,0 cm
ISBN: 972-8910-71-6 (EAN: 978-972-8910-71-6)
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