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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

«O ÊXTASE» poema de Paul Éluard (do livro «Le temps déborde»)

Paul Éluard – Foto retirada de cantarapeledelontra.blogspot.com






















Estou diante desta paisagem feminina
Como uma criança diante do fogo
Sorrindo vagamente de lágrimas nos olhos
Perante esta paisagem onde tudo me convulsiona
Onde espelhos se embaciam onde espelhos se iluminam
Reflectindo dois corpos nus estação contra estação

Tenho tantas razões para me perder
Nesta terra sem caminhos e neste céu sem horizonte
Belas razões que ainda ontem ignorava
E nunca mais esquecerei
Belas chaves dos olhares chaves filhas de si-mesmas
Diante desta paisagem cuja natureza é minha

Diante do fogo o primeiro fogo
Boa razão dominante
Estrela identificada
E na terra e sob o céu fora do meu coração e no meu coração
Segundo botão primeira folha verde
Que o mar cobre com as suas asas

E no fim de tudo o sol vindo de nós
Estou diante desta paisagem feminina
Como um ramo mergulhado no fogo.

24 de Novembro de 1946 

In «Poemas de Amor e de Liberdade», de Paul Éluard (escolhidos por Jacques Gaucheron e os seus amigos; tradução de Egito Gonçalves), Campo das Letras, Porto, Maio de 2000 (1.ª edição). 

A quem entrega a sua comunicação?


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

[Que se eleva do deserto], fragmento do «Cântico dos Cânticos»

Tela de Gustav Klimt «O Beijo» (1907-08, Osterreichische Galerie Belvedere, Viena, Áustria).






















Que se eleva do deserto      como colunas de fumo
como os levantados aromas da mirra e do incenso     e toda a perfumaria dos
                                                                                                         mercadores?
eis a sua liteira     a de Salomão
sessenta soldados a escoltam     dos mais briosos de Israel
todos cingidos de espada     conhecedores no combate
cada homem sua arma à cinta     pelo terror que há nas noites.

Uma liteira fez para si o rei     Salomão com madeiras do Líbano
são de prata seus pilares     o encosto é de ouro
seu assento de púrpura     seu interior amavelmente incrustado
pelas mulheres de Jerusalém     saí mulheres de Sião e admirai
o rei Salomão com o diadema     sua mãe lhe colocou
no dia do seu casamento     no dia em que a alegria era seu coração. 

In «Cântico dos Cânticos» (tradução do original hebraico fixado na 3.ª edição da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, de 1987, introdução e notas de José Tolentino Mendonça), Edições Cotovia, Março de 1999 (2.ª edição).

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

NÃO SEI NADAR, excerto do livro «Senso – O caderno secreto da Condessa Lívia», de Camillo Boito

Imagem retirada de http://sauvage27.blogspot.pt
O dia estava esplêndido, com um sol que nos encadeava; à esquerda despontavam no céu azul as altas chaminés de cúpula redonda, as cornijas alvas e os telhados vermelhos, enquanto à direita se erguia o comprido paredão dos Estaleiros, severo e compacto. Os nossos olhos estonteados pousavam em certas sombras profundas, nos pontos em que se ocultava o espaço de uma pérgula ou se entrevia uma ruela apertada; e as águas brilhavam em todos os tons de verde, reflectiam todas as cores, perdiam-se aqui e ali em círculos e riscas de um negro denso. Dez ou doze garotos, num berreiro a plenos pulmões, corriam e saltavam pelo passeio, que para o lado do canal não tinha qualquer protecção. Uns eram pequeninos, outros maiorzinhos. Um dos pequenos, quase nu, gorducho, de caracóis louros que lhe coroavam a carita rosada e rechonchuda, fazia barulho que nem um endemoninhado, dando palmadas ou beliscando os companheiros e fugindo depois como um raio.
Parei a observá-los, enquanto Remigio me contava as suas grandezas passadas. De repente, aquele demónio de miúdo, não conseguindo no meio de uma corrida precipitada controlar os pés à beira do canal, caiu à água. Ouviu-se um grito e um baque, e logo a seguir encheram ares os berros de todos os rapazes e de todas as mulheres que estavam antes a conversar na rua ou às janelas; por entre aquele clamor sobressaía o grito agudo, desesperado, aflitivo, da jovem mãe, que, lançando-se aos pés de Remigio, o único homem presente, berrava: «Salve-mo, por favor salve-mo!» Remigio, frio, gélido, respondeu à mulher: «Não sei nadar.» Entretanto, um dos rapazes mais velhos lançara-se à água, agarrara pelos caracóis louros o pequeno e puxara-o para a margem. Foi um instante. A gritaria transformou-se num aplauso frenético; as mulheres e os rapazes choravam de alegria; acorria gente de todos os lados para assistir, e o miúdo louro mirava tudo à sua volta com os grandes olhos azuis-celestes, admirado com tanta confusão. Remigio, com um puxão violento, arrancou-me do meio da multidão.

In «Senso – O caderno secreto da Condessa Lívia», de Camillo Boito (tradução e introdução de José Colaço Barreiros), Quetzal Editores, Lisboa, 1988 (1.ª edição).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

MELRO FIEL, poema de Juan Ramón Jimenez

Fotografia retirada de www.informador.com.mx













Quando o melro, no verde novo, um dia
volta, e assobia o seu amor, embriagado,
agitando sua inquietação num fresco de ouro,
abre-nos, negro, com seu bico rubro,
carvão vivificado por sua brasa,
uma alma de valores harmoniosos
maior que todo o nosso ser.

Não cabemos, por ele, plenos, completos,
em nossa fantasia despertada.
(O sol, maior que o sol,
inflama o mar real ou imaginário,
que resplandece entre o frondor azul,
maior que o mar, que o mar.)
As alturas entornam seus últimos tesouros,
preferimos a terra que pisamos,
um momento chegamos,
em vento, em onda, em rocha, em labareda,
ao impossível eterno da vida.

A arquitectura etérea, frente a nós,
com os quatro elementos surpreendidos,
abre-nos total, una,
com perspectivas imanentes,
a realidade solitária dos sonhos,
suas fascinantes galerias.
A flor eleva-se melhor à nossa boca,
a nuvem é de mulher,
a fruta seio responde-nos sensual.

E o melro canta, foge pelo verde,
e sobe, sai pelo verde, e assobia,
recanta pelo verde onde sopra o vento,
livre na claridade e na pureza,
torneado alegremente pelo ar,
dono completo do seu duplo prazer;
entra, vibra assobiando, fala, ri,
canta… E amplia com seu canto
a hora parada da estação viva
e faz nossa vida suficiente.

Eternidade, hora ampliada,
paraíso de fulgor único, aberto
a todos nós, adultos, pensativos,
por um ser diminuto que se amplia!
Primavera, absoluta Primavera,
quando o melro exemplar, uma manhã,
enlouquece de amor entre a verdura!

In «Antologia poética», de Juan Ramón Jiménez (selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento), colecção «Poesia», Relógio D’Água Editores, L.da, Lisboa, 1992 (1.ª edição).

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

SAGRES visto por Miguel Torga

Ver http://www.travel-in-portugal.com/photos/img30.htm
Sagres é hoje um ímpeto parado, a seta indicadora dum rumo perdido, real e simbolicamente. Lugar dum sentido histórico perpetuado pela fatalidade da duração natural, rasgão áspero onde a vida não se resigna a renunciar, ali está, retesado num gesto inútil e pertinaz, envolto num burel de cardos, cilícios com que a si próprio se macera.
Pseudópode ousado dum pequeno corpo retraído, o seu destino ideal seria permanecer eternamente fugidio dentro da carne da nação, como uma protuberância rebelde, de vontade indómita e aventureira. Expurgado de vieirismos sebastiânicos, de saudosismos contemplativos e junqueirismos retóricos, podiam partir dele, já não as caravelas impossíveis do passado, mas os veleiros possíveis do presente. Longe da astúcia minhota, da agressividade transmontana, da mesquinhez beiroa e da arrogância alentejana, nenhum outro sítio tão azado para o português iniciar quotidianamente a grande façanha de renovação interior. Mais do que as terras que os do Infante acharam, o que teve importância nacional verdadeira foi o alargamento da consciência de cada mareante, a sua comparticipação no alvoroço renascentista. Não podíamos dar Erasmos, nem Leonardos, nem Luteros, nem Galileu. Mas podíamos dar esforço, energia, heroicidade, ferocidade, curiosidade e obstinação. A hora exigia todas as formas de superação humana. Ao lado do pensamento livre, a arte inconformada; a par da fé discutida, a ciência objectiva. Faltando a qualquer povo a graça desses dons, havia vago ainda o campo vasto da acção, metade do mundo por arrancar das trevas, o Atlântico e o Pacífico inviolados à espera de navegantes. Foi essa verdade que Sagres nos ensinou, imperativamente a apontar o longe…
Obedientes e sem mais delongas, num mergulho de alcatrazes, atirámo-nos então daquela rocha branca ao abismo azul. E descobrimo-nos. Encontrámo-nos universais em toda a parte do globo, mas, sobretudo, dentro da nossa própria perplexidade. Já não éramos apenas da Vidigueira, de Belmonte ou de Vila Real. Éramos daí e também da certeza de que pisávamos um planeta redondo, onde todos os caminhos iam dar à única maravilha que se podia ver claramente vista: o homem e os seus mil recursos de expressão. Chegado o momento, saíam-lhe das mãos, realizadas, as obras que o génio, o meio e as circunstâncias lhe permitiam: teorias, sistemas, invenções, quadros, estátuas, poemas ou continentes.
Eufóricos, porque justificados, vimo-nos por algum tempo legítimos cidadãos do mundo. Humanistas do nosso específico humanismo, até dos defeitos fizemos virtudes. Até nas andanças do espírito, para que estávamos tão mal apetrechados, conseguimos milagres. Os próprios que se perdiam contavam singularmente a perdição. Cada qual arrancava de si o melhor que tinha na inteligência, no instinto e no coração, e trazia-o à tona da consciência ou em sabedoria, ou em beleza, ou em santidade. Foi um apogeu.
Depois, esquecemos a lição. A intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara, expulsou o judeu e o capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos reais do esforço dispendido iriam fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas riquezas do progresso outros valores igualmente cotados na praça da civilização, que teriam agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso interior… Mas não. Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.
Mas a lenga-lenga não enterneceu o pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários. Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inactividade acumulava, e a que bastaria apenas actualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia colectiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.
E deu-se o inevitável: como aquelas realidades que se desconhecem, embora continuamente presentes a nosso lado, assim o teimoso promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto de nós. E as próprias ondas, cansadas de tão estranho absurdo, escavam nas ilhargas do rochedo e minam-lhe os fundamentos. Indignado, o «mar português» quer destruir o pesadelo, ou, pelo menos, transformá-lo numa ilha onde não possam chegar peregrinos da impotência. Quer destruí-lo, ou separá-lo de Portugal.

In «Portugal» (prosa), de Miguel Torga, edição do autor, Coimbra, Dezembro de 1980 (4.ª edição revista).

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

sábado, 9 de fevereiro de 2013

ENCONTREI O MEU PEQUENO VANIA! – excerto do livro «O destino dum homem», de Mikhail Cholokhov

Mikhail Cholokhov – fotografia retirada de http://upload.wikimedia.org
«Deixei o meu filho enterrado entre os alemães, numa terra que não é a nossa. Lá ficou a minha última alegria, a minha última esperança…
A bateria deu uma descarga como a dizer adeus ao seu capitão, que partia em longa viagem, e o estrondo quebrou qualquer coisa dentro de mim. Voltei à minha unidade, semi-louco. Pouco depois, fui desmobilizado. Mas não sabia para onde devia ir. Em todo o caso, não queria voltar a Voroneje. Isso de modo nenhum. Lembrei-me de um bom camarada, reformado por ferimentos no ano anterior e que vivia em Ourupinsk. Tinha recebido dele um convite. Passei por casa dele para o visitar.
O meu camarada e sua mulher, sem filhos, tinham a sua própria casinha nos arrabaldes. Apesar de ter uma pensão, continuava num serviço de camionagem. Arranjei também ali o mesmo trabalho. Fiz a princípio camionagem de todos os tipos pelas aldeias e, por fim, no Outono, passei a transportar as colheitas. Foi nestas andanças que travei conhecimento com o meu novo filho, aquele garoto que vês a brincar na areia.
Depois de uma viagem, quando entramos numa terra, a primeira coisa a fazer é, naturalmente, ir tasquinhar na taberna, regar a comida com uma canecada, de forma a passar a fadiga. É preciso dizer que, por estes tempos, tinha criado o meu hábito de beber uma caneca de qualquer coisa prejudicial… Foi numa ocasião dessas que eu vi este garoto diante da taberna; no dia seguinte, voltei a vê-lo. Esfarrapado, lambuzado com sumo de melancia e poeira, porco por ter andado entre os canaviais, desgrenhado, mas com uns olhos… que pareciam estrelas depois da chuva. Naquele aspecto gostava tanto dele – é esquisito, não é? – que tinha pressa de regressar com ganas de voltar a vê-lo. O pobre alimentava-se do que as pessoas lhe davam, ali à roda da taberna.
No quarto dia, voltei directamente à taberna vindo da granja com o camião carregado de cereal. Sentado nos degraus superiores, o garoto balançava os seus pezinhos e via-se bem que tinha o estômago vazio. Meti a cabeça na portinhola do carro e gritei-lhe: «Sobe cá, meu pequeno Vania! Vamos até ao silo, voltarás comigo e iremos almoçar juntos». Ele, ao ouvir o meu grito, teve um sobressalto, desceu dos degraus, subiu para o estribo e perguntou-me, baixinho: «Como sabe você que me chamo Vania?» Olhava para mim com os seus olhinhos muito abertos à espera da resposta. Então respondi-lhe que eu era um freguês da velha que sabe tudo.
Passou à direita. Abri-lhe a portinhola, fi-lo sentar-se ao pé de mim e acelerei. Ele era muito remexido. Pois bem! não se mexia e ficou com ar pensativo, sempre a olhar-me por baixo das suas pestanas reviradas; por fim, deu um suspiro. Aquele pobre pardalito já sabia suspirar! Naquela idade, já teria desgostos? Perguntei-lhe: «Onde está o teu paizinho, Vania?» Murmurou: «Morreu na guerra». – «E a tua mãezinha?» – «Foi morta por uma bomba no comboio quando estava dentro dele». – «Donde vieste tu?» – «Não sei. Não me lembro». – «Não tens família?» – «Não». – «Onde é que dormes?» – «Onde calha».
Uma lágrima deslizava dentro de mim. Decidi-me logo: «Não se há-de dizer que se abandona um ser à sua mísera sorte. Vou tomá-lo comigo para me servir de família». De repente senti-me leve e o meu coração iluminou-se. Inclinei-me para o pequeno e perguntei-lhe muito docemente: «Vania, sabes quem eu sou?» – «Quem é você?» perguntou ele, sustendo a respiração. «Sou o teu paizinho».
«Bom Deus, o que não fez ele! Saltou-me ao pescoço, beijou-me as faces, a testa, a boca e depois chilreava como um tentilhão, tão alto, tão agudamente, que só ele se ouvia dentro da cabina: «Querido paizinho, eu bem sabia que tu havias de me encontrar, que tu me encontrarias de certeza! Mas sabes, esperei por ti tanto tempo!»
Chegava-se para mim e estremecia como um talo de erva agitado pelo vento. Eu tinha nevoeiro nos olhos. Pus-me também a tiritar e até as mãos me tremiam! Como me foi possível segurar o volante, é coisa de admirar; meti por uma cova cheia de água onde mergulhei o motor. Com medo de atropelar alguém, não quis continuar enquanto o nevoeiro não se levantasse dos meus olhos. Nos cinco minutos que para ali ficámos, o meu pobre garoto enroscava-se contra mim com todas as suas forçazinhas e nada dizia; só sabia tremer! Mantinha-o sob o meu braço direito, apertando-o um pouco. Com o esquerdo fiz dar ao camião meia volta para seguir para casa. Que me importava a mim o silo… Estava nas tintas para o silo…
Parei o camião à porta, tomei o meu novo filho nos braços e levei-o para casa. Se tu visses como ele me segurava com as suas mãozinhas; não havia maneira de o obrigar a largar-me; e depois a sua carinha estava colada à minha barba de dois dias e nada podia descolá-la. Foi assim que o meti em casa. O meu camarada e sua mulher estavam em casa. Entrei e pisquei-lhes os olhos, dizendo: «Encontrei o meu pequeno Vania! Temos a honra de vos cumprimentar, meus bons amigos!» Os dois, sem filhos, compreenderam do que se tratava e puseram-se logo em acção. Mas o meu filho é que não me largava. Tive de lho suplicar. Deixou-me lavar-lhe as mãos com sabão e sentá-lo numa cadeira. A minha hospedeira encheu-lhe um prato de sopa de couves. Era vê-la a olhar para ele enquanto devorava! Enterneceu-se e começou a limpar as lágrimas no avental, diante da marmita. O meu Vania viu-a a chorar, correu a puxar-lhe a saia e a dizer-lhe: «Porque chora? O paizinho encontrou-me na taberna; estamos muito contentes; não vale a pena chorar». De repente, meu Deus, a boa mulher rompeu em soluços, uma autêntica inundação.

In «O destino dum homem», de Mikhail Cholokhov (tradução de A. Dias Gomes), Colecção «Uma hora de leitura» (n.º 11), Edições Delfos, Lisboa, s/d [1957?].

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

«Os melhores romances têm passagens aborrecidas», diz Bertrand Russell

Retrato de Bertrand Russell, por Norman Rockwell, para a revista Ramparts
Todos os grandes livros contêm passagens aborrecidas e em todas as grandes vidas houve períodos pouco interessantes. Imaginai um moderno editor americano a quem lhe levassem o Velho Testamento como um manuscrito novo para ser publicado pela primeira vez. Não é difícil adivinhar quais seriam os seus comentários a respeito, por exemplo, das genealogias: «Meu caro senhor, diria, a este capítulo falta animação; não pode esperar que os leitores se interessem por uma simples lista de nomes próprios de pessoas sobre as quais lhes diz tão pouco. Reconheço que começou a sua história num belo estilo e no princípio eu estava muito favoravelmente impressionado, mas verifiquei que tem um desejo excessivo de dizer tudo. Escolha as passagens mais claras e importantes, elimine as supérfluas e volte a trazer-me o manuscrito quando tiver reduzido a uma extensão razoável.» Assim falaria um editor moderno que conhecesse o medo que os leitores têm de se aborrecer. Diria o mesmo a respeito das obras clássicas de Confúcio, do Alcorão, do Capital de Marx e de todos os outros livros consagrados que provaram ser best-sellers. E isto não se aplica somente a esses livros. Todos os melhores romances têm passagens aborrecidas. Um romance brilhante da primeira até à última página é quase certo que não será um bom livro. A vida dos grandes homens não foi também emocionante, a não ser em raros momentos. Sócrates gostava de assistir de vez em quando a um banquete e decerto sentiu grande prazer na conversação enquanto a cicuta produzia os seus efeitos, mas a maior parte da sua vida passou-a calmamente com Xantipo, dando à tarde o seu passeio higiénico e acaso reunindo-se com alguns amigos no caminho. Diz-se que Kant, em toda a sua vida, nunca se afastou mais de dez milhas de Conisberga. Darwin, depois de ter dado a volta ao mundo, passou o resto da vida dentro de casa. Marx, depois de ter fomentado algumas revoluções, decidiu consumir o resto dos seus dias no British Museum. Por conseguinte, pode verificar-se que uma vida calma foi a característica da vida dos grandes homens e que os seus prazeres não foram do género dos considerados apaixonantes aos olhos do mundo. Nenhuma grande obra é possível sem trabalho persistente, tão absorvente e tão penoso, que poucas energias deixa para os divertimentos mais esgotantes, a não ser os que servem, durante as férias, para recuperar a energia física e dos quais o alpinismo é o melhor exemplo.

In «A conquista da felicidade», de Bertrand Russell (tradução de José António Machado), Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Janeiro de 2001 (9.ª edição).