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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

[as mãos são o futuro e não presente], poema de Joaquim Manuel Pinto Serra

Imagem encontrada em http://wallpaper.ultradownloads.com.br/


as mãos são o futuro e não presente
porque abertas nelas cabe o mundo inteiro

e se a morte antes da morte chegar primeiro
encontrará na velhice o nascimento
de apenas mais um mês que não dezembro
porque os velhos nascem todos em janeiro

In «As Mãos e o Silêncio» (poesia), de Joaquim Manuel Pinto Serra (Prémio Nacional de Poesia de Fânzeres, em 1998).

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Jovem escritor Diogo Lucas Linhares nas «Conversas com Sabor a Canela», em Montemor-o-Velho

As «Conversas com Sabor a Canela» estão de regresso, amanhã à noite (sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2015, pelas 21h00), à Biblioteca Municipal Afonso Duarte, em Montemor-o-Velho, cujo programa conta com as presenças, como convidados, do actor Paulo Azevedo e dos escritores Marta Dutra, Jéssica Neves e Diogo Lucas Linhares (Diogo Xavier) – autor das obras poéticas «Dias de sorte» e «A Mondeguina», ambas editadas pela Mar da Palavra –, aos quais se juntam a cantora Susana Margarida e também o Grupo de Concertinas do Mondego.
Este projecto cultural montemorense, que envolve estórias, música, sabores e saberes partilhados, tem a colaboração atenta e multifacetada da escritora Lurdes Breda, também editada pela Mar da Palavra, com os livros «O misterioso falcão de jalne», «Asas de vento e sal», «Zuleida, a princesa moura» e «A outra face do luar».

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=510401902434276&set=a.132035266937610.26026.100003934126770&type=1&theater

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

[– Então, noutro dia, gostou das casimiras?], excerto de «Singularidades de uma rapariga loura», de Eça de Queirós

Lady Lilith, de Dante Gabriel Rossetti - Imagem encontrada em http://projectoadamastor.org/

E Macário contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as exaltações de então, pediu-lhe como a glória da sua vida «que achasse um meio de o encaixar lá». Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico da Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado, Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, a sr.ª D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco, uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era homem letrado, latinista, e amigo das musas; escrevia num jornal de então, a «Alcofa das Damas»: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, «moço escudeiro de Vénus». Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes – e numa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado «Elmira ou a Vingança do Veneziano»!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas. As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do Oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. – De sorte que a curiosidade era grande – e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão – o sr. Macário é que não teve sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente:
– Então, noutro dia, gostou das casimiras?
– Muito – disse ela baixo.
E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial.

In «Singularidades de uma rapariga loura», de Eça de Queiroz, Centauro (chancela da Babel), Lisboa, 2010 (1.ª edição da Babel).

O IMENSO ADEUS, poema de Niall Mór MacMhuirich, gaélico escocês / irlandês (início do século XVII)

Imagem encontrada em http://algarve-saibamais.blogspot.pt/

Um longo – imenso – adeus à noite passada!

A noite passada não tem despedida
e todavia, agora ou mais tarde, no tempo se esvai.
Ainda que a forca seja o destino
eu tudo daria para que a noite passada venha de novo
e a noite de hoje apenas seja o tempo de ontem.

E então esta noite seríamos dois a morar nesta casa
senhores de um segredo
que os olhos não podem não sabem não querem
       esconder.
Ainda que os lábios os lábios não esmaguem
nos olhos luz tão intensa luz que o segredo oculto
não mais é segredo.

Os olhos despedem furtivos olhares ou demorados,
secretos sinais
que o silêncio consente guarda e entende.
Que importa o silêncio dos lábios cerrados
se olhos dizem revelam e contam
estórias e contos de escondidos segredos?

Aqueles que trocam e vendem segredos e escândalos,
dos lábios meus não hão-de ouvir uma só palavra.
Oh, lânguidos olhos!
E tu que recolhida estás, serena e calma nesse
       discreto canto,
olha os meus olhos, olha e aprende
os segredos meus que escondem e dizem:

«Nesta noite que passa guarda para nós a noite
       passada.
E que o tempo futuro para sempre seja como
       ontem foi.
A manhã não queiras; não a deixes entrar.
Levanta-te e diz-lhe
que o dia não cabe nesta nossa casa, onde só a noite,
a noite passada, tem lugar cativo comigo e contigo.»

Ah! Maria, Mãe e Senhora de Todas as Graças!
Tu és a Mestra, a Fonte e a Água dos Poetas do
       Mundo!
Toma a minha mão, na Tua a enleia e dá-me o Teu
       consolo!
Sê o meu amparo!
Vem e ajuda-me e ensina-me a dizer

Um longo – imenso – adeus à noite passada.

In «O Imenso Adeus – Poemas Celtas do Amor», vários autores (tradução e prefácio de José Domingos Morais), Colecção «Gato Maltês», Assírio & Alvim, Lisboa, Fevereiro de 2004 (1.ª edição).

ASSIM A BÉTULA, poema galês, tradição oral (século XVII)

Fotografia encontrada em http://hrasti.eu/

Esbelta e delgada como a esguia bétula,
de suave ondular como o leve trevo,
da doirada cor da manhã de verão,
do mundo inteiro é ela a glória.

In «O Imenso Adeus – Poemas Celtas do Amor», vários autores (tradução e prefácio de José Domingos Morais), Colecção «Gato Maltês», Assírio & Alvim, Lisboa, Fevereiro de 2004 (1.ª edição).

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

«A vindima», conto de Miguel Torga

 Fotografia encontrada em http://patriapequena.blogspot.pt/

Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. E à noite, na cardenha, o Vitorino, com a namorada ali quase à mão de semear, não parava sobre a palha centeia, o colchão de todos. Era um rolar sem tino para um lado e para o outro, que metia aflição.
– Tu que tens? – perguntava-lhe o Rasga, farto de conhecer a causa do formigueiro.
– Nada… - e continuava a mexer-se, cada vez mais insofrido.
Como troncos derrubados, os restantes homens da roga jaziam estendidos e adormecidos no chão. Apenas os dois amigos velavam, a vigiar-se mutuamente.
– Vou até lá fora – disse por fim o Vitorino, sem poder mais. – Não me apetece dormir…
E saiu.
Pé ante pé, o Rasga foi-lhe no encalço. E o que havia de ver?... Um noivado ao luar, com a terra empapada de doçura a servir de lençol.
Passou a mão pelo restolho da barba, numa melancolia de faminto sem pão, e deixou os felizardos na paz do Senhor. Quando de madrugada o outro voltou à cama, só lhe disse:
– Valha-te Deus, homem! E agora?
– Agora caso com ela, pois então! Isto nem tira nem põe. O que se há-de fazer ao tarde…
Pela manhã a vindima continuou. Orvalhados, os bardos de moscatel eram polipeiros de olhos irónicos e coniventes. E a Lúcia, sumida no entrançado de vides e de folhas, enquanto cegava aquelas pupilas abelhudas, parecia um rouxinol:

Eu já vi a Tiraninha
A beber numa cabaça,
Olha a raça da Tirana
Que até no beber tem graça.

Ninguém lhe levava a palma. Desde a saída de Lamares que não se calara mais. À frente da estúrdia, de xaile à cabeça e cesta no braço, atirava com a voz bonita pelos montes a cabo, que nem o pai, no Maio, a semear milhão. O harmónio repenicava-se todo em redor dela. Os ferrinhos a dizerem que sim, que sim. E o bombo, apesar da tristeza a que a pele de cabra o condenava, a fazer quanto podia para dar também um ar da sua graça.
A lama de cinco meses de inverno, que a primavera apenas endurecera, era agora uma camada de poeira fofa pelo caminho além, a escaldar. O sol, depois de empassar as uvas, queria empassar a terra. Invulnerável, porém, o raio da rapariga rompia por ali adiante, com asas nos pés. E, mal o Doiro apareceu lá em baixo, ao fundo, como uma veia aberta a escoar-se morosamente do corpo ciclópico dos montes, atirou logo:

Foi no Pinhão…
Ia a vindimar um cacho,
Vindimei-te o coração.

Tinham findado de todo os horizontes largos do planalto, onde a alma corre de fraga em fraga, sempre à vista do céu. Encostas negras, em escada, cobertas de estevas ou eriçadas de zimbro, faziam tudo para entristecer quem lhes passava ao pé. À esquerda, um despenhadeiro de meter medo; à direita, uma penedia por ali acima, que só de vê-la faltava a respiração; ao longe, mortórios escalvados e desiludidos. Mas o grande rio doirado, que a luz da tarde transformar numa barra cintilante, chamava a si toda a atenção dos olhos, e a paisagem emergia do abismo engrandecida e transfigurada.
Ou porque trazia dentro o fogo da paixão a aquecê-la, ou inspirada pela beleza do cenário, a Lúcia punha o coração a voar:

À oliveira da serra
O vento leva a flor…

Só mesmo por alturas de S. Cristóvão é que esmoreceu. Ao passar diante do cemitério aproado como uma galera de morte no mar verde dos vinhedos, uma tristeza súbita calou-a. Obra dum suspiro, apenas. Daí a nada arrebitou outra vez, e, ao chegar à Arrueda, levava tudo adiante.

Ó Rita, arredonda a saia,
Ó Rita, arredonda-a bem…

Nem a cara seca e vermelha do Sr. Berkeley, o patrão, lhe meteu medo. Enquanto os mais, num respeito de escravos, se descobriam ou cumprimentavam aquele símbolo do trabalho e dos ganhos da Ribeira, continuou a cantar como se nada fosse, e à noite, ao deitar, ainda trauteava uma moda.
Foi a Guilhermina, já enfastiada, que a mandou calar.
– Não estás farta, mulher?!
Riu-se e continuou na dela. E agora, ao cabo de quatro dias de azáfama, tinha ainda a voz fresca como uma alface. E com segundas…

Eu hei-de te amar, Tirana.
Eu hei-de te amar, eu hei…
Eu hei-de te amar, Tirana,
Duma maneira que eu sei…

Os dois rapazes riram-se, num mútuo entendimento da significação oculta da cantiga. Depois, maldoso, o Rasga comentou:
– O que vala é que a Tirana tem as costas largas…
Ergueu o vindimeiro, ajeitou-o na troixa e foi juntar-se aos outros companheiros, enquanto o Vitorino ficou a olhar com ternura a rapariga, bem feita, desembaraçada, certamente fecundada já pelo seu amor.
Dispersa pela encosta, a roga mais parecia festejar um deus generoso e pagão do que trabalhar. Os geios eram degraus do Olimpo onde crescia e se colhia o espírito celeste. Cada canção – um hino de louvor. E os cestos acogulados, que desciam a escadaria de xisto aos ombros dos fiéis devotos, numa fila indiana, sonora e ritual – a dádiva desse amantíssimo Senhor, que só pedia contentamento em troca dos seus frutos.
Dir-se-ia que tudo naquele paraíso suspenso se movimentava lúdica e religiosamente. Nenhuma mágoa, nenhum ódio, nenhuma desconfiança do futuro. Alegre, a alma de cada romeiro entregava-se pressurosamente ao esquecimento colectivo que alijar do mundo as misérias e os desenganos. O tear mágico urdia desumanização. E só quando um dos fios da meada emperrava, e havia um solavanco no ritmo do cerimonial, é que se via que uma vontade prática subjazia ali, vigilante e profana. Ainda o Vitorino não acabar de sair da sua contemplação, já o Seara, o feitor lhe berrava aos ouvidos:
– Tu andas parvo ou quê? Mexe-te! Ergue e espera-me no armazém, que tens de preparar uma vasilha.

Chora videira,
Ó videirinha;
Chora videira,
Ó vida minha…

Cantavam todos. E o bombo, com a sua voz pesada, como que dava forma à incorpórea harmonia que, descuidada, descia em cascata pelos socalcos.

Chora videira,
Ó videirão;
Chora videira,
Ó meu coração.

Não havia tristeza que entrasse naquelas almas. Principalmente na de Lúcia, cada vez mais agradecida ao céu pela sua redenção terrena.
Entretanto, porque o deus da abundância não se cansava de multiplicar o mosto no lagar, para arranjar onde o meter, o Vitorino deslizava submisso pela portinhola dum tonel, tal as vítimas dos sacrifícios antigos pela boca do dragão.
Lá fora continuava o coro.
E o Seara, por causa daquele barulho e do ouvido duro do Sr. Berkeley, quando daí a bocado chegou congestionado à vinha e deu a notícia do desastre, quase teve de berrar.
Foi então que a voz de Lúcia estacou de vez. Garroteada como a do namorado, a garganta fechou-se-lhe num espasmo de perpétua agonia.
Transida e comandada por tão grave silencia, a roga emudeceu também.
Só a Casimira velha, desgarrada numa valeira solitária, que não ouvira nada da morte do Vitorino, asfixiado dentro do bojo da cuba, continuou a agoirar a tarde com o seu lamento fanhoso:

A mulher é desgraçada
Até no despir da saia;
Não há desgraça na vida
Que aos pés da mulher não caia…

In «Contos da Montanha», de Miguel Torga, Biblioteca de Bolso Dom Quixote – Literatura (BBL n.º 4), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2003 (4.ª edição na Dom Quixote).