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terça-feira, 30 de agosto de 2016

[Tudo à minha volta], poema de Manuel António Pina

Manuel António Pina (foto encontrada em http://biblevantemaia.blogspot.pt/)

Tudo à minha volta cumpre
um destino silencioso e incompreensível
a que algum deus fugaz preside.
Fora de mim, nas costas da cadeira,

o casaco, por exemplo, pertence
a uma ordem indistinta e inteira.
Dava bem todo o meu sentido prático
pela sua quieta permanência em si e na cadeira.

A realidade dos livros em cima da mesa
parece tão estritamente real!
As filhas falam, barulhentas e reais,
e eu próprio, em qualquer sítio, sou real.

Sob este rio real
o rio me arrasta, de palavras,
corre dentro de mim ou fora de mim?
O que pensa? Estou lá, ou está lá alguém,

como está neste lugar (qual?),
e como os livros na mesa?
O que fala falta-me
em que coração real?

É duro sonhar e ser o sonho,
falar e ser as palavras.
E, no entanto, alguém fala enquanto fujo,
e falo do que, em mim, foge.

Sem que palavras alguma coisa é real?
As filhas sabem-no não o sabendo
e falam alto fora de mim
sem falarem nem não falarem.

Em mim tudo é em alguém
em qualquer sítio escuro
como se houvesse um muro
entre o que fala (quem?)

In «Poesia, Saudade da Prosa – Uma antologia pessoal», de Manuel António Pina, Colecção «grãos de pólen» (n.º 12), Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011 (1.ª edição).

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