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sábado, 10 de janeiro de 2015

[Pusera-se-lhe o onomástico de Dom Beltrán], excerto do romance «Gémeos», de Mário Cláudio

Imagem encontrada em http://www.podengo-mediogrande.com/
Pusera-se-lhe o onomástico de Dom Beltrán, o que ficara a dever-se à vaga memória de um herói de histórias de cordel, uma dessas personagens que trotam pela vida fora, comandadas por uma astúcia especial, revelando todavia graça de convívio que as torna irresistíveis aos olhos de quem primariamente lhes censura as falcatruas. De rabo em perpétuo levantado, colocando as orelhas fitas diante de sinais que só ele percebia, alternava o malandro a doçura com que se botava a lamber as mãos dos que se acercavam, e que perante isso de imediato se sentiam rendidos, com a malevolência que implicava em morder-lhes os dedos, gesto com que ia explorando seus grandes ímpetos de amor.

E nos meus lazeres interrogava-me sobre o que poderia ter sido o passado daquele valdevinos. Produto de uma cadela podenga, abandonada num matagal, presa por um cordel a um castanheiro por se mostrar menos do que medíocre de caça, e de um descendente de sabujos desclassificados, oriundos de além-fronteiras, atrelara-se um dia ao eixo de uma carroça, em consequência da insistente reclamação de um dos catraios do bando, o qual nele projectara uma promessa de divertido companheirismo. Muito faceiro nas atitudes, mas nunca afinal conquistando o direito a um nome, correspondia o perro com digníssima resignação às atenções que, ultrapassado o encanto da infância, iam fatalmente esmorecendo. Comia o que lhe atiravam, afastava-se das zaragatas, procurava na vizinhança dos ciganos recém-nascidos a sorte de vir a deparar com um ou outro dono providencial.

In «Gémeos» (romance), de Mário Cláudio, Colecção «Autores de Língua Portuguesa», Publicações Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 2004 (2.ª edição).

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