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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

[E lá vai Joseph Haydn, fungando rapé], excerto do romance «Guilhermina», de Mário Cláudio

Foto encontrada em http://en.wikipedia.org/
Entre Londres e Heathfield infindas horas despende, esquadrinhando recitais, congeminando contratos, a um guiché se plantando, onde é necessário munir-se de inquebrantável paciência. Minuto a minuto, pelo toque entrecortado de um klaxon, atravessando o Strand, numa quadra acanhada onde as xícaras tinem, é o rondó do Concerto em Ré, de Haydn, andarilho e folgazão, que a possui. E o espírito se lhe insurge contra a memória insistente, que em tudo se engasta, arrogando-se direitos, como central a utilizando onde vozes e ecos, ecos e vozes se imbricam. Perpassa o comboio por estações onde se aprumam os esperantes, sob lâmpadas que se atarraxam a um quebra-luz de esmalte branco. Do alto dos taludes uma tribo de crianças espreita, filhas da viúva indigente e corajosa que um livro escreveu de muita celebridade. E ao fundo os detritos se amontoam, bidões e farrapos, por entre cascalho e carris arrancados. Num espaço se pára, por fim, de viadutos, atira-se com a porta da carruagem, onde ficam uma bolsa e um jornal. O cansaço vence os que reentram, um odor aflige a suor e a giz, descaem uns quantos sobre os comparsas ao lado, com o fio da saliva a correr-lhes pelo queixo. Persiste o rondó, embalando os que vão, os sentidos revolvendo de Guilhermina. Num estrépito, porém, de rodados e cabos, a um ramal se acede, apodera-se a orquestra da integral melodia. E lá vai Joseph Haydn, fungando rapé, a luz soprando de um astro, alumiando outro, numa pressa transitando pela Via Láctea.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote).

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