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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

[o passo de chumbo da soldadesca chafurdando na lama], excerto do romance «Guilhermina», de Mário Cláudio

Foto encontrada em http://topicos-historia.blogspot.pt
Na guerra acesa está em Brive, foragida, entre arcas de porão e móveis enfardados, com a mãe, a irmã, o cunhado Léon. Uma outra se quer perante os homens, perante esse marido de Virgínia, que a entusiasma, inabalável mas fraco, opção para o macho tenaz, que durante tantos anos a trouxera oprimida. De Paris a reminiscência a acompanha dos aeroplanos, descendo a pique, parindo uma bomba, voltando logo a seguir, ante a inconsciência dos transeuntes, que a tudo assistem como a um festival. Brive é melancólica e só, com essa Rue Gambetta, onde o pequeno grupo se alberga acomodado por um certo Fey, terminando num aterro de arrabalde. E, a cada instante, no horizonte de choupos que o Outono esgalha, a rubra deflagração se adivinha das granadas, o passo de chumbo da soldadesca chafurdando na lama. Num desalento de cinzas mortas, andará contemplando, então, as mãos do cunhado. Tinham dedos macilentos e afuselados, estacas que delimitassem um território onde nevara. Habituados que estavam, os dedos, ao comando do diletante a quem pertenciam, ao grão do marroquim e ao toque do Vergé, também eles se consideravam destituídos de toda a serventia. Numa paixão irada os inspeccionava Guilhermina, à suposta brandura de suas falanges se prometendo, enquanto se lamentava «há dois meses que minha irmã e eu não fazemos uma nota de música». Descarregavam-se os feridos, franceses e belgas, ingleses, até mesmo alemães, que em seus argumentos insistiam, enquanto lhes ajustavam a ligadura, a resolução professando de, a breve trecho, ir embora. Na noite, enfim, altíssimas brilhavam as constelações, inexoráveis, sorridentes quase. E uma velhota trôpega, desproporcionada, com seu bordão tacteava o terreno, o esburacado manto desfraldando pelas planícies de França.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote).

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