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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

[Não tem descanso Guilhermina, na imobilidade em que procura casar-se com a suite de Bach], escreve Mário Cláudio


Uma certa fase lembraremos, em que a natureza se lhe debate na tormentosa exigência de se acertar. À sua semelhança padece o pintor Augustus John, no vastíssimo atelier de Mallord Street, do cavalete se aproximando e se distraindo, na espécie de broto de camélia em que a boca comprime na avaliação do modelo. Não tem descanso Guilhermina, na imobilidade em que procura casar-se com a suite de Bach, que vai executando sem fim. E um vacilante compromisso celebra com a imagem de si, que a todo o instante ameaça estilhaçar-se, no que pouco a auxilia o homem que a retrata. A cada passo, parece ele saído de uma moita de heras, dando-lhe ordens e ordens de se calar, o botão manobrando da telefonia, que ejacula o noticiário ou um shimmy sincopado. Ao arbítrio do pincel irá definindo a violoncelista, sem que em absoluto a possua, na tenacidade com que o trabalho reapura que já deu por findo. Fica a via, defronte do atelier, congestionada de Chevrolets, puxando os freios num guincho dilacerado, despejando essas mulheres que à volta do artista se entrechocam, na espera de um filho ou de um madrigal. Logo a violoncelista catalogam como mais uma amante, que ele umas vezes recebe com a afirmação de ser a mais bela, outras a mais feia criatura deste mundo. Despedem-se os valdevinos, abandonando um campo de destroços onde um cálice voga quebrado, uma tarte de damascos meio consumida. Passa John, enfim, numa dança de pontas, em busca de outrem que não a ibérica de imponente violoncelo, clamando a fêmea que o salve, essa a que o real não recuse aderir.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote). 

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