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sábado, 8 de março de 2014

[Conhecimento significa termos uma coisa tão perto dos olhos que podemos furá-la com o nariz], explica Tuiavii de Tiavéa

Imagem encontrada em http://papalaguiatec.blogspot.pt/

E há ainda mais maneiras de pensar e muito mais alvos para as setas do seu espírito. É triste o destino dos pensadores que vão longe nos seus pensamentos. O que vai acontecer da próxima vez que o Sol nascer? O que terá o Grande Espírito em mente para mim quando eu chegar ao Salefe’s[1]? Onde estava eu quando os Tagalao[2] me deram a minha Agaga[3]? Este pensar é tão fútil como tentar ver o Sol de olhos fechados. Não resulta. Não é possível pensar até ao início e até ao fim das coisas, como descobrem as pessoas que o tentam. Ficam acocoradas no mesmo lugar como um guarda-rios, desde a juventude até à velhice. Já não vêem o Sol, nem o grande mar, nem as raparigas bonitas, nem a alegria, nem nada, nada de nada. Nem o kava tem sabor para eles e, nos bailes da aldeia, põem-se de lado e olham para o chão. Não vivem, embora não estejam mortas. Foram destruídas pela grave doença do pensar.
Este pensar devia tornar a mente grande e elevada. Quando alguém pensa muito e depressa, na Europa diz-se que tem uma grande cabeça. Em vez de terem pena destas grandes cabeças, admiram-nas muito. As aldeias elegem-nos para chefes e, sempre que surge uma grande cabeça, esta tem de pensar publicamente, o que dá a todos grande prazer e admiração. Quando morre uma grande cabeça, há luto por toda a terra, e grandes choros pelo que se perdeu. Fazem uma imagem de pedra dessa grande cabeça e colocam-na à vista de toda a gente no mercado. Na verdade, estas cabeças de pedra são muito maiores do que eram em vida, para que as pessoas possam admirá-las e lembrar-se da pequenez da sua própria cabeça.

Se alguém perguntar a um Papalagui por que pensa tanto, ele responde: «Porque não quero nem posso ser estúpido.» Todo o Papalagui que não quer pensar é estúpido; embora, na verdade, as pessoas que não pensam sejam sábias e acabem por se orientar.

No entanto, penso que isso não passa de um pretexto e que o Papalagui está apenas a seguir o seu impulso maldoso. Parece-me que o verdadeiro fim do seu pensar é descobrir onde o Grande Espírito obtém o seu poder, algo a que ele chama, com palavras sonantes, «conhecimento». Conhecimento significa termos uma coisa tão perto dos olhos que podemos furá-la com o nariz. Isto de furar e saquear é um desejo vulgar e desprezível do Papalagui. Ele pega numa centopeia, fura-a com uma pequena lança e arranca-lhe uma perna. Qual o aspecto dessa perna separada do corpo? Como estava fixada ao corpo? Ele parte a perna a fim de medir a sua espessura. Isso é importante, isso é essencial. Ele retira da perna um pedaço de carne do tamanho de um grão de areia e coloca-o sob um tubo comprido cuja força secreta permite aos olhos uma visão muito mais aguda. Com este olho grande e poderoso, ele vê o interior de tudo, lágrimas, uma tira de pele, um cabelo, absolutamente tudo. Corta todas essas coisas até chegar a um ponto em que não pode cortá-las ou dividi-las mais. Embora este seja o ponto mais pequeno de todos, é o essencial, porque é a entrada para o conhecimento supremo que só o Grande Espírito possui. Essa entrada é negada ao Papalagui, e nem os seus melhores olhos mágicos conseguiram ver para dentro dela. O Grande Espírito não permite que lhe levem os segredos. Nunca. Nunca ninguém trepou uma palmeira mais alta do que a palmeira em redor de cujo tronco ele enrolou as pernas, e na copa tem de voltar para trás, porque não há tronco para trepar mais alto. O Grande Espírito não ama a curiosidade do ser humano, e por isso pendurou grandes lianas em tudo, lianas sem princípio nem fim. Assim, quem tentar seguir pensamentos até ao fim supremo, acabará por descobrir que ficará sempre estúpido e terá de deixar para o Grande Espírito as respostas que não sabe dar. Mesmo o mais inteligente e corajoso dos Papalagui reconhece isto.

In «Papalagui», de Tuiavii de Tiavéa [este livro resulta de uma colectânea de textos escritos por Tuiavii, chefe da tribo samoana de Tiavéa, e dados a conhecer ao Ocidente, em 1920, por Erich Scheurmann, que com ele conviveu naquela ilha do Pacífico Sul] (com nota do editor, tradução de Ana Saragoça e revisão de Silvina de Sousa), Marcador Editora (Editorial Presença), Queluz de Baixo, Janeiro de 2012 (1.ª edição).



[1] Submundo
[2] Mensageiros do Espírito Maior
[3] Alma

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