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Marguerite
Yourcenar – Foto retirada de http://frases.globo.com
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Um punhado de
soldados resistia ainda no celeiro de feno situado no alto duma granja. A longa
galeria sobre estacaria, vacilando sob a pressão das águas, ruiu finalmente com
alguns homens agarrados a uma longa trave. Colocados na contingência de ter de
escolher entre o afogamento e a execução, os sobreviventes renderam-se sem
alimentar ilusões quanto à sorte que os esperava. De uma, e outra parte, já se
não fazia prisioneiros – e como arrastar prisioneiros atrás de si naquela
devastação? Um a um, seis ou sete homens extenuados desceram com passo incerto
a íngreme escada de mão que conduzia do celeiro de feno ao barracão, a abarrotar
de pequenos fardos de linho bolorento e que dantes servira de armazém. O
primeiro, um jovem gigante loiro ferido na anca, vacilou, falhou um degrau e
estatelou-se no solo, onde alguém o acabou. De súbito, reconheci no alto dos
degraus uma cabeleira resplandecente e em desalinho, idêntica à que vira
desaparecer debaixo da terra três semanas antes. O velho jardineiro Miguel, que
me tinha vagamente acompanhado à maneira duma ordenança, levantou a cabeça
entontecida por tantos acontecimentos e fadigas, e exclamou estupidamente:
– Menina…
Era efectivamente
Sofia, que me fez de longe o aceno de cabeça indiferente e distraído duma
mulher que reconhece alguém, mas que não tem empenho em ser abordada. Vestida,
calçada como os outros, dir-se-ia um soldado muito jovem. Atravessou com passo
longo e flexível o pequeno grupo hesitante reunido na poeira e na fraca luminosidade
da alva, aproximou-se do jovem gigante louro estendido junto da escada, lançou
sobre ele o mesmo olhar duro e terno que tinha concedido ao cão Texas numa tarde de Novembro, e ajoelhou-se
para lhe fechar os olhos. Quando se levantou, o rosto retomara a expressão ausente,
monótona e tranquila como a dos campos lavrados sob um céu de Outono. Obrigámos
os prisioneiros a ajudarem no transporte das reservas de munições e de víveres
até à estação de Kovo. Sofia fechava a marcha; as mãos pendentes, tinha o ar
desenvolto dum rapaz que acaba de ser dispensado dum trabalho penoso, e
assobiava Tipperary.
Chopin e eu
caminhávamos no mesmo passo a alguma distância, e as nossas fisionomias
carregadas dir-se-iam de familiares num enterro. Mantínhamo-nos calados, e cada
um de nós, desejando nesse momento salvar a jovem, suspeitava o outro de se
opor ao seu projecto. Quanto a Chopin, pelo menos, essa crise de indulgência
não tardou a passar, pois daí a algumas horas já ele se mostrava tão decidido
ao extremo rigor como teria procedido Conrad, se estivesse no lugar dele. Para
ganhar tempo, dispus-me a interrogar os prisioneiros. Encerraram-nos num
furgão, para gado abandonado na via, e trouxeram-mos um por um até ao gabinete
do chefe da estação.
In «O golpe de misericórdia», de
Marguerite Yourcenar (com introdução/prefácio de Agustina Bessa-Luís; e
tradução de Rafael Gomes Filipe), colecção Biblioteca de Bolso [Literatura] (n.º
52), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2003 (2.ª edição de bolso).
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