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Miguel Torga – Foto retirada de http://largodamemoria.blogspot.pt
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– Quando qualquer de V. Ex.as,
às quatro horas da manhã, arrancado brutalmente dos braços de Morfeu por uma
guinada do dente do siso, se vir desamparado e desgraçado, dirá então com
amargura: – Razão tinha o amigo Balsemão ao microfone! Comprasse eu um tubo
daqueles famosos comprimidos, e não estaria agora aqui a sofrer como um cão! –
Dores reumáticas ou ciáticas, nevralgias, enxaquecas, cólicas e pontadas – tudo
este maravilhoso remédio alivia instantaneamente, isto é: num abrir e fechar de
olhos.
Falava de cima duma cadeira, em
pé, ao lado da mesa onde colocara um grande baú aberto. Passeava-lhe um rato
branco pelos ombros, e era impossível fugir à magia da enorme cabeleira que lhe
coroava a larga fronte de lutador. Só vinha na feira dos vinte e três. Armava a
tenda logo pela manhã, e daí a nada tinha já freguesia a beber-lhe as palavras.
Da sua voz sugestiva, grave, difundida pelo ampliador, tirava quantas inflexões
eram necessárias para encantar homens de todas as terras e feitios.
– E o mais curioso é que este
tubo, que vale doze escudos na farmácia, não custa nem dez, nem oito, nem sete,
nem mesmo seis, aqui. Custa apenas cinco! Menos de metade, portanto. Barato, e
a última descoberta científica do século! Ácido acetilossalicílico! Façam favor
de ver…
E só mesmo um cego é que não via.
– Produtos Balsemão! Ninguém se
esqueça: Balsemão! E a propósito: vou contar-lhes uma rica piada.
Os que já faziam parte da roda,
arrebitavam a orelha; os que andavam na sua vida, paravam e ficavam
maravilhados a ouvir. No fim todos se riam, que a coisa não era para menos.
– No período aflitivo da guerra,
quando eu seguia muito sossegado da vida na carripana, aparece-me de repente um
polícia da fiscalização. – Que leva o senhor na furgoneta? – perguntou,
carrancudo. – Produtos Balsemão – respondi, na minha inocência. – Abra! Abri, e
mostrei-lhe os meus quatro filhos, que iam dentro, a dormir…
Os tempos corriam mal. Deus sabe
com que vontade quem tinha os precisos para o resto do ano os vinha vender por
qualquer preço. Por isso, depois de duas lágrimas dadas ao balido saudoso duma
ovelha, à mansidão dum porco criado a caldo, ou à brancura duma peça de linho
fiada à luz da candeia em horas roubadas ao sono, era um alívio perder meia
hora ali. Iam-se embora as tristezas, as canseiras, os cuidados, e a feira
passava a ter o ar de festa que o coração de todos pedia.
E não pensasse lá que acreditavam
nas aldrabices que dizia do novo elixir! Quem?! Enfim, como eram só dez
tostões… Às vezes, para um remedeio…
– Vou agora mostrar à digna
assistência, a título de curiosidade, a autêntica víbora da fortuna! A
autêntica, reparem bem. Porque, infelizmente, até nestas coisas sérias e
sagradas há contrafacções, vigários, como se costuma dizer. Mas esta, garanto a
V. Ex.as…
E ele a dar-lhe com a excelência!
Que trampolineiro!
Adivinhava a muda censura, e
sorria. Quem é que não gosta uma vez na vida de ser tratado por excelência?! E
a prova é que um de Almalaguês perdeu a cabeça e comprou por trinta escudos,
sem hesitar, aquele «Talismã da Ventura».
– Bem burro! – não se conteve uma
criada, cheia de pena de não ter sido ela.
– Era única, menina!
Aproveitasse! – dizia, a entregar a cobra enfrascada e a tirar já nova
maravilha das profundezas do baú.
– Sarna, pruridos, eczemas,
impingens, urticária, lepra, psoríase, furúnculos – tudo quanto uma pele humana
possa conceber –, é um ar que lhe dá. Reparem: pega-se na ulceração, um
bocadinho de pomada em cima, ao de leve e pouca, que é para poupar, cobre-se
com um farrapinho, e não se pensa mais nisso! Cinco tostões apenas! Só a caixa
vale quinze!
Até um soldado estendeu o braço à
pechincha.
– Tu para que é que queres
isso?! – perguntou, espantado, um colega.
– Sei lá!
Não prestava, era a convicção
geral. Mas aqueles olhos a fuzilar o mal e a curá-lo, aquele rato branco de
quando em quando parado e atento às palavras do dono, aquela mão erguida ao
alto como um destino, dobravam a vontade do mais pintado.
Aldrabão!... – gritava o resto do
bom senso de cada um. Pois sim! Viessem ouvi-lo. Esperassem um instantinho, e
então se veria.
– Eu sei que há muitas pessoas
que me chamam charlatão. Coitadas! Onde pode chegar a ignorância humana! Ora
vejamos…
E trapaceiros, daí a nada,
passavam a ser os honrados indivíduos que todos os da roda consideravam pessoas
de bem. Agora ele?! Pelo amor de Deus! Quem é que tinha a coragem de vir assim
honestamente explicar os factos, receber sugestões, pôr-se, numa palavra, em
contacto directo com a massa dos humildes? Charlatão! Sempre a mesmíssima
coisa! Sempre a costumada ingratidão pátria pelos seus valores! Conheciam a
anedota, não é verdade? Numa festa do Minho, cheia de animação, um rapazito
subia a um mastro ensebado. Por acaso, estavam presentes um francês, um inglês
e um português. O francês aplaudia, apenas; o inglês não aplaudia e,
disfarçadamente, ajudava o garoto, se o via desanimar; o português, esse,
berrava como um danado: – Força, força! Mas quando o cachopo ia agarrar a
prenda, puxou-lhe por uma perna! Hã? De topete, o patriciozinho! Ora por essas
e por outras é que ele era charlatão. Queriam-lhe puxar também por uma perna.
Felizmente que não se deixava vencer às primeiras, e tinha a consciência
tranquila. Dava o mundo inteiro por testemunha da sua isenção e da sua
honradez…
– Sim, porque eu sou um cavalheiro
na verdadeira acepção da palavra! Ou duvidam?
O silêncio de todos bastava-lhe
como resposta. Simplesmente, aquele universal acordo quanto à sua dignidade
moral e honestidade profissional tocava-lhe as fibras mais sensíveis do
coração. Era um sentimental. E a esse respeito, até para amenizar a conversa,
ia abrir-se com o seu fiel auditório, com o bom e generoso povo da sua terra.
Ia contar o que nunca contara, nem gostava até de recordar. Mas, enfim, já
agora… Porque, debaixo daquela aparência de pessoa alegre, bem disposta e
saudável, tinha tido também os seus dissabores e as suas aflições… Justamente
por ser um emotivo, um banana!
Um de Vila-Meã, presente,
ouvira-lhe o mesmo palavreado em Pombal. Apesar disso, ficou. Sempre queria ver se
a história a seguir seria a mesma.
– Aqui há vinte anos, acabara de
eu chegar de Paris, quando de repente, numa rua de Lisboa… Quê?! O senhor não
acredita que eu fui a Paris?! Olha, olha, não acredita! Sou um homem muito
viajado, santinho! Está aqui o meu passaporte. Queira examinar… Faça favor.
Tinha de provar tudo. Como um
professor atento à disciplina e às dúvidas da turma, mal alguém se mexia
impaciente ou mostrava nos olhos uma névoa de incredulidade ou de
incompreensão, estendia-lhe o documento elucidativo ou a palavra iluminada, a
ajudá-lo! Só quando todo o auditório respirava entendimento e aceitação,
sossegava e prosseguia.
– Está convencido? Muito bem.
Dizia eu então que ia a passar numa rua de Lisboa, quando de repente vejo à
janela dum sexto andar uma linda rapariga. Alto! – gritei, entusiasmado. –
Aquela cachopa convém-me! E como sempre fui um rapaz desembaraçado, pelas
escadas acima parecia um gamo. Cheguei lá com o coração a sair-me pela boca.
Porque, parecendo que não, este meu relógio não é de fiar… Muitas emoções
seguidas. Enfim, misérias do corpo humano. Segue-se que bati à porta, vieram
abrir, e aqui é que foram elas! – Desejava alguma coisa? Os senhores estão a
ver a cena?! Os senhores representam bem na imaginação o meu encravanço?! Há
horas na vida!... Palavra de honra! Bem, mas a gente não deve desistir às
primeiras. Enchi-me de coragem e disse cá para comigo: Balsemão, quem não se
arriscou, nem perdeu nem ganhou! E zás: – Queria falar com a menina. – Diga-me
o nome, faz favor. – Carlos Balsemão Pimentel da Silva, um seu criado. – Tenha
a bondade de entrar e de esperar um instantinho. E que é que o respeitável
público cuida que aconteceu? Que fui corrido a pontapés? Que fui preso? Nada
disso. De alguma coisa me há-de valer a experiência. Um mês depois estava
casado com a tal pequena.
Realmente não se podia deixar de
aprovar com um sorriso tanta ousadia e desfaçatez.
– Entre os presentes há
certamente quem esteja a pensar nos inconvenientes dum casamento assim. E têm
toda a razão… Eu que o diga!...
O de Vila-Meã, pela calada, ia-o
observando. Até ali a história era exactamente a mesma. Quanto à tristeza que
lhe ensombrava o rosto, não podia ser fingida. Certas coisas não se fingem…
Não. Aquilo não podia ser tudo mentira…
– Pois é verdade! Casamentinho
excomungado! Eu a pensar que ia buscar a felicidade ao tal sexto andar, que
tinha tido, ao passar na rua, o palpite da sorte grande, e sai-me um bilhete
branco!
O de Vila-Meã sorriu à imagem.
– Bem, mas um fulano quando
compra a burra não lhe apalpa o fígado. Fia-se na cor dos olhos… E já agora,
que falei em fígado, não me vá depois esquecer…
E começou então a cura universal
da icterícia, com um chá maravilhoso de folhas duma planta secreta, cujo nome
lhe fora revelado por um landim que conhecera numa das suas numerosas viagens à
África…
Desta vez, porém, a assistência
ficou insensível.
– Não?! Não há nenhum hepático,
aqui?! Mas isso é um milagre! Isso é um fenómeno! Nenhum dos presentes tem
dores na barriga, à direita, ou sente enjoos, ou aparece com a língua saburrosa,
de manhã?
O mesmo silêncio desconfiado.
Icterícia! O homem parecia parvo! Chá dos pretos, de mais a mais! Quem é que ia
agora meter porcarias daquelas no corpo?! E logo para o fígado! Livra! A
história, se a queria acabar, e viva o velho! Uma pomadinha para a pele, vá lá
com mil diabos! Mas drogas para o fígado!...
De segundo a segundo a onda de
indignação subterrânea ia crescendo.
Mas o timoneiro daquele barco
humano conhecia o mar.
– Não há?! Pronto, não se fala
mais nisso! Os meus sinceros parabéns, e podem levar uma vela a Santo Ambrósio…
Olhou a muda agitação da seara. O
povinho! O patarata do Zé Pagode a congeminar! Ele tratava-lhe da saúde! Ainda
tinha pulso para o dominar. Para o fazer rir ou chorar consoante lhe desse na
real gana, e para lhe impingir no intervalo quantas porcarias coubessem no baú.
Não queriam agora o chá da icterícia? Gramavam-no para outra vez. Tão certo
como dois e dois serem quatro! Lá isso, santa paciência…
– E vamos então continuar a nossa história. A
minha, afinal de contas. E um grande romance, se eu soubesse escrever!
Desgraçadamente, não sei. Conto… Conto, e a maior parte das vezes a sentir que
toda a gente está a duvidar de mim…
O de Vila-Meã continuava atento,
a observá-lo.
– Pois é verdade: o raio da
mulher parecia um anjo! Como tinha os olhos azuis e uma vozinha de rola, ó
senhores, aquilo era como um querubim: – Carlinhos, tu não queres marmelada?
Carlinhos, vamos ao cinema, vamos? Chamava-me Carlinhos, o coirão! – Mas, ó
Maria da Luz, tu não vês que me faz desarranjo?! Que se não durmo não posso ir
amanhã fazer a feira a Setúbal?!! – Deixa lá a feira, filho! Então tu trocas a
tua Mariluz pela feira?! Estão a ver o paleio?! Era de um homem ficar doido. –
Ó mulher dos meus pecados, bem sabes que temos que pensar no futuro, que é
preciso trabalhar!... – Então vai… Vai, meu querido… E no dia seguinte lá ia
eu. – Adeus, meu amor! Adeus… São só três dias… Tem paciência… Dá cá uma
beijoca…
O fiel auditório ria da beijoca.
Mas ele não se queria demorar ali.
– Ficava em soluços ao cimo da escada. Ora,
como sabem, a minha vida é de casa de Caifaz para casa de Pilatos… Estou a
maçá-los?! Vejam lá! Se estou, digam, que eu mudo de assunto.
(O mesmo paleio de Pombal)
– Não? Bem, então, se não
incomodo, continuo. Em que ponto íamos nós? Ah, já sei! Falava das sucessivas
deslocações a que me obriga a profissão. Muito bem! Ora eu morava, como disse, em Lisboa. Não?! Não
disse? Então é que me esqueceu. Mas morava. Na mesma casa. Naquele sexto andar
fatídico!... É claro que quando saía me demorava vários dias por fora. O que
ainda hoje acontece, de resto. A correr o país de lés a lés, tem de ser. De
Trás-os-Montes ao Algarve, parecendo que não, é longe. A minha residência
actual é nas Caldas da Rainha. E como das Caldas da Rainha aqui são apenas
cento e cinquenta e cinco quilómetros, em três horas ponho-me lá. Mas se tenho
de me deslocar a Monção, por exemplo? Felizmente que não viajo de comboio!
Utilizo exclusivamente esta maravilhosa criação do progresso – o automóvel. De
contrário estava desgraçado. Mesmo assim, não posso fazer milagres! E a maior
parte das vezes fico por lá. Durmo sossegado em qualquer pensãozita barata,
aproveito o dia seguinte para visitar novas terras…
Uma das maneiras de tomar o pulso
à assistência era divagar um pouco. Havia sempre alguém mais insofrido que
protestava. E a história, assim reclamada, tinha outro sabor.
– Não interessa? Pronto, já aqui
não está quem falou! Adiante. Dizia eu que na minha profissão sou muitas vezes
obrigado a pernoitar fora de casa. É natural. Ora naquela data, 24 de Novembro,
lembro-me como se fosse hoje, quando em Palmela dava início aos meus trabalhos,
desata a chover, que qual feira nem meia feira! Parecia o dilúvio universal.
Casa, Balsemão! Casinha, até que Deus Nosso Senhor nos traga sol. Eu gosto
muito de sol!
Olhou o céu, como a reforçar a
afirmação. Depois, cheio de dignidade, desceu novamente à terra das suas
atribulações.
– V. Ex.as estão a ver
a minha disposição! Cansado, desanimado, e com os meus ricos bolsinhos vazios…
Mas havia uma estrela a brilhar naquelas trevas. Claro que já toda a gente
adivinhou… Casadinho de fresco, de mais a mais… Bom, não há quem não goste do
seu aconchego… É humano! Cheguei a Lisboa às três da manhã. E que é que os
senhores calculam?
(Ria-se. Em Pombal também se
rira. Mas era um riso amarelo… Sabe Deus o que iria lá por dentro…)
– A luz do meu quarto acesa
àquela hora! Subi os seis lanços da escada dum fôlego, e mais tenho o coração
fraco, como já disse! Ia doido! – Ai, Balsemão, se é verdade! Ó desgraçado!
Toquei a campainha, e a luz apagou-se imediatamente. – Pronto, Balsemão, não há
que ver! O ombro à porta, e foi o fim do mundo!...
Olhou o efeito das suas palavras,
bebeu um gole de água, e levou ao rubro, numa só frase, o calor da multidão.
– Para encurtar razões: meti três
balas no corpo daquela miserável!
Fosse aldrabice, fosse o que
fosse, estavam todos sem ar.
Mas ele era generoso. Limpou o
suor da testa, olhou por alguns momentos a emoção colectiva, e atirou a seguir
um piedoso balde de água fria na fogueira.
– Não morreu, sosseguem! Era da
pele do diabo!
– E ele? – não se conteve a
criada do talismã.
– Um covardola! Enquanto eu
arrombava a porta, fugiu pelas traseiras…
(Exactamente o que respondera em Pombal. E não… O suor
que lhe escorria da testa não era do calor… A tarde até estava a refrescar…)
– Fui julgado e condenado em
cinco anos de cadeia… Cadeiinha, pois então! Que cuidam? Cinco anos… Foi quanto
me custou aquela olhadela para o tal andar!
Passado o calafrio do desfecho
inesperado, começou a fazer-se dentro de cada um a crítica lógica da história.
E alguns sorrisos incrédulos afloraram à tona de alguns rostos.
– O respeitável público não
acreditou em patavina do que acabo de dizer! Está no seu direito, e faz bem. Eu
cá também não acreditava, se me contassem… Mas infelizmente é verdade… Cinco
anos numa penitenciária! Cuidei que nunca mais deixava de ver o sol aos
quadradinhos… Ainda por cima ferra-se-me uma constipação! Ah! rapazes, que se
não tenho lá este maravilhoso xarope, não sei o que havia de ser de mim!
Cheguei a filosofar: – Bem, Carlos Balsemão Pimentel da Silva, coração ao
largo, e tira daí o sentido. Desta vez morres mesmo. Escusas de alimentar
ilusões: nunca mais voltas a fazer bem à humanidade! E se não fosse o xarope…
Não havia dúvida nenhuma que a
atenção do público descera com o fim da narrativa. Aquele homem, porém, era um
prodígio de tenacidade.
– É claro que os meus desânimos
não tinham razão de ser! Com vinte e cinco anos estava ainda uma criança. Por
isso tratei de comer e beber, cumpri a pena, divorciei-me, casei de novo, e já
vou em quatro filhos… Os tais produtos Balsemão da piada que lhes contei…
Tempo perdido. O lume apagara-se
na lareira. Contudo, fez ainda um derradeiro esforço.
– Asma?! O senhor?! Ó homem de
Deus, e então não dizia nada?!! Se eu não reparo… Ora valha-o Nosso Senhor!
À voz de asma, instintivamente,
os sãos foram-se retirando discretamente, com aquela meia hora desfeita num
zum-zum inútil de cigarra.
Mas lá conseguiu vender aos que
ficaram dez frascos de xarope, justamente os que restavam.
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Depois deram as seis, a feira
desfez-se, e a vida retomou a crua realidade habitual. Na sua carrinha o
Balsemão deixou então o Largo Velho e meteu apressado pela estrada da Figueira
da Foz. A buzinar, ia ultrapassando rapidamente os fregueses, já esquecidos
dele e de quantas aldrabices lhes dissera.
Só na curva da morte, à Portela,
é que o de Vila-Meã, ao vê-lo passar, o reconheceu, lhe tirou o chapéu, e
juntou à poalha do sol que caía a ternura duma palavra:
– Coitado!
In «Rua», contos de Miguel Torga, edição do autor, Coimbra, 1985
(5.ª edição).