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sábado, 17 de novembro de 2012

Excerto de «Pássaros», de Saint-John Perse

Retirado de http://www.espritsnomades.com





















O pássaro, que entre os nossos consanguíneos é mais ardente a viver, leva um singular destino aos confins do dia. Migrante e obcecado por inflação solar, viaja de noite porque os dias não bastam à sua actividade. Em tempo de lua parda, da cor do visco das Gálias, com o seu espectro povoa a profecia das noites. E o piar nocturno é verdadeiro grito do alvorecer: grito de guerra santa com arma branca.

Na trave da asa o balanceio imenso de uma estação dupla; e a própria curvatura da terra sob a curva do voo… A alternância é sua lei, a ambiguidade o seu reino. No espaço e no tempo incubados pelo mesmo voo, tem a heresia de uma estivação única. Também é o escândalo do pintor e do poeta, coleccionadores de estações nos mais altos cimos da intersecção.

Ascetismo do voo!... O pássaro, entre os nossos comensais o mais ávido de ser, para alimentar a paixão é quem leva secreta, em si, a mais alta febre do sangue. Tem a sua graça na labareda. Sem simbolismo nenhum: simples facto biológico. É-nos tão leve a matéria-pássaro, que a contra-fogo diurno parece elevar-se à incandescência. No mar, quando pressente o meio-dia, um homem levanta a cabeça com este escândalo: aberta no céu como a mão de uma mulher contra a chama do candeeiro, uma gaivota branca eleva no dia a transparência rósea de uma brancura de hóstia…

Asa curvejante do sonho, esta noite vais encontrar-nos por outras paragens!

 In «Pássaros», de Saint-John Perse, Hiena Editora, Lisboa, Abril de 1994

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