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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

DE VOLTA À CIDADE, por Luigi Pirandello

Imagem encontrada em http://www.olivella.it/
Olhe-me agora para estas árvores em perspectiva deste lado e daquele, ao longo dos passeios deste nosso Corso di Porta Vecchia; que ar confuso, pobres árvores citadinas, tosquiadas e penteadas!
Provavelmente não pensam, as árvores; os animais, provavelmente, não raciocinam. Mas se as árvores pensassem, meu Deus, e pudessem falar, quem sabe o que diriam estas pobrezitas que, para que nos façam sombra, obrigamos a crescer no meio da cidade! Parecem perguntar, ao verem-se reflectidas nestas montras de loja, o que estão a fazer aqui, entre gente atarefada, no meio da ruidosa barafunda da vida citadina. Plantadas há muitos anos, não passam de árvores franzinas e tristes. Ouvidos, não mostram tê-los. Mas quem sabe, talvez as árvores, para crescer, precisem de silêncio.
Já esteve alguma vez na praceta Olivella, fora das muralhas? No antigo conventinho dos Trinitários brancos? Que ar de sonho e de abandono naquela praceta, e que silêncio estranho, quando das telhas negras e musgosas do velho convento assoma, menineiro e intensamente azul, o riso da manhã!
Pois bem, todos os anos a terra, ali, na sua estúpida ingenuidade maternal, tenta aproveitar-se daquele silêncio. Se calhar julga que ali já não é cidade, que os homens abandonaram aquela praceta, e tenta apoderar-se dela, estendendo muito calada, muito devagarinho, por entre o empedrado, uma remessa de pés de erva. Nada mais fresco e tenor que esses delgados e tímidos fios de erva, que em breve fazem verdejar toda  a praceta. Mas infelizmente não duram mais de um mês. Ali é cidade; e não é permitido aos fios de erva despontarem. Todos os anos vêm quarto ou cinco varredores; acocoram-se no chão e arrancam-nos com uns ferrinhos que têm.
No outro ano vi ali dois passarinhos que, ao ouvirem o rangido daqueles ferrinhos nos quadradinhos ásperos e cinzentos do empedrado, voavam da sebe para as goteiras do convento, dali para a sebe de novo, e abanavam a cabecinha e olhavam de través, como se perguntassem, angustiados, o que estavam aqueles homens a fazer.
– Então não vêm, passarinhos? – disse-lhes eu. – Não vêm o que estão a fazer? Estão a fazer a barba a esta velha calçada.
Fugiram dali horrorizados, aqueles dois passarinhos.
Abençoados, que têm asas e podem fugir! Quantos outros bichos não podem, e são apanhados, aprisionados e domesticados nas cidades e também nos campos; e quanto é triste a sua forçada obediência às estranhas necessidades dos homens! Que dizem eles disso? Puxam a carroça, puxam o arado.
Mas talvez eles, os animais, as plantas e todas as coisas, também tenham um sentido e um valor para si, que o homem não é capaz de entender, por estar cingido ao sentido e ao valor que ele próprio dá a uns e a outras, e que a natureza muitas vezes, por seu lado, mostra não reconhecer e ignorar.
Seria bom que houvesse um pouco mais de entendimento entre o homem e a natureza. Muitas vezes a natureza diverte-se a mandar pelos ares todas as nossas engenhosas construções. Ciclones, terremotos… Mas o homem não se dá por vencido. Bichinho perseverante, reconstrói, reconstrói. E tudo para ele é matéria de reconstrução. Porque tem em si aquela tal coisa que não se sabe o que é, que por força o leva a construer, a transformer a seu modo a matéria que lhe oferece a natureza, ignora talvez e, pelo menos quando quer, paciente. Se ele se contentasse apenas com as coisas sobre as quais, até prova em contrário, não se sabe se possuem a faculdade de sentir o suplício causado pelas nossas adaptações e pelas nossas construções! Mas não, senhor. O homem até se toma a si próprio como matéria, e constrói-se, pode crer, como uma casa.
Você acredita que se conhece, se não se construir de alguma maneira? E que eu posso conhecê-lo, se não o construir à minha maneira? E você a mim, se não me construir a seu modo? Só somos capazes de conhecer aquilo a que conseguimos dar forma. Mas que conhecimento pode ser esse? Será essa forma a próprio coisa? Sim, tanto para mim como para si; mas não do mesmo modo para mim que para si; tanto é verdade que eu não me reconheço na forma que você me dá, nem você naquela que eu lhe dou; e a mesma coisa não é igual para todos, e mesmo para cada um de nós pode mudar continuamente, e, de facto, muda continuamente.
Portanto, não há outra realidade a não ser esta, isto é, a não ser na forma momentânea que conseguimos dar a nós próprios, aos outros, às coisas. A realidade que eu tenho para si está na forma que você me dá, mas é realidade para si e não para mim; a realidade que você tem para mim está na forma que eu lhe dou, mas a realidade para mim e não para si; e, para mim, eu não tenho outra realidade senão na forma que consigo dar a mim mesmo. E como? Precisamente construindo-me.
Ah, você julga que só as casas se constroem? Eu construe-me continuamente e construe-o a si, e você faz o mesmo. E a construção dura até que o material dos nossos sentimentos se desfaça e enquanto durar o cimento da nossa vontade. E Porque acha que se lhe recomenda tanto a firmeza da vontade e a constância dos sentimentos? Basta que aquela vacile um pouco e que estes se alterem um nada ou modem minimamente, e adeus nossa realidade! Apercebemo-nos de imediato que não passava de uma ilusão nossa.
Firmeza de vontade, portanto. Constância de sentimentos. Mantenha-se forte, mantenha-se forte para não dar mergulhos destes no vazio, para não dar de caras com estas ingratas surpresas.
Mas que belas construções daí resultam!

In «Um, ninguém e cem mil», romance de Luigi Pirandello (revisão de Cláudia Chaves de Almeida), Cavalo de Ferro, Lisboa, Fevereiro de 2014 (3.ª edição).

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