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terça-feira, 18 de novembro de 2014

«Da salvação das almas», de Jorge Luis Borges

Fotografia encontrada em http://www.livrosepessoas.com/tag/jorge-luis-borges/
Num Outono, num dos Outonos do tempo, as divindades do Xinto congregaram-se em Izumo, mas não pela primeira vez. Disse-se que eram oito milhões, mas eu sou um homem muito tímido, e sentir-me-ia um pouco perdido, entre tanta gente. Para mais, não convém manipular cifras inconcebíveis. Digamos que eram oito, já que o oito é, nestas ilhas, de bom agouro.
Estavam tristes, mas não o mostravam, porque os rostos das divindades são kanjis, que se não deixam decifrar. No verde cume de um cerro, em roda se sentaram. Do seu firmamento, ou de uma pedra, ou de um floco de neve, haviam espiado os homens. Uma das divindades disse:
Há muitos dias, ou muitos séculos, reunimo-nos aqui, para criar o Japão e o Mundo. As águas, os peixes, as sete cores do Arco, as reproduções das plantas e dos animais saíram-nos bem. Para que tantas coisas os não oprimissem, demos aos homens a prole, o dia plural e a noite una. Assim mesmo, lhes outorgámos o dom de poder ensaiar algumas variações. A abelha continua a repetir colmeias; o homem imaginou instrumentos: o arado, a chave, o caleidoscópio. Também imaginou a espada e a arte da guerra. Acabou de imaginar uma arma invisível, que pode ser o fim da História. Antes de que ocorra esse insensato feito, apaguemos os homens.
Ficaram a pensar. Sem se atrapalhar, disse outra divindade:
É verdade. Eles imaginaram essa coisa atroz, mas também há esta, que cabe no espaço que abarcam as suas dezassete sílabas…
Entoou-as. Estavam num idioma desconhecido, e não as pude entender.
A divindade maior sentenciou:
Que os homens perdurem.
Assim, por obra de um haiku, se salvou a espécie humana.

In «A memória de Shakespeare», de Jorge Luís Borges (com Prólogo de Luís Alves da Costa e tradução de Luís Manuel Bernardo e Luís Alves da Costa), Colecção «A Biblioteca de Babel» (n.º 7), Vega (editor Assírio Bacelar), Lisboa, 1994 (1.ª edição).
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UM POUCO SOBRE JORGE LUIS BORGES / Vídeo «Buenos Aires: Las calles de Borges»:
http://livingdesign.info/2011/09/11/buenos-aires-las-calles-de-borges/

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