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Miguel
Torga – Fotografia retirada de http://erhos.cadernovirtual.net
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Entre
essas horas afanosas e precavidas do ofício e as fugas vadias através de montes
e vales, a dar largas ao pendor andarilho e à curiosidade impenitente, ficavam
os surtos de tensão criadora, os mais difíceis de levar a cabo.
Para
cada voz há um tempo e um lugar. Seguro de que também a minha cabia naquele
espaço privilegiado pelo eco de tantas outras, ia lavrando o papel.
Não
se tratava agora de elaborar um tratado de cortesania provinciana ou urdir uma
demorada intriga devota. Os tempos eram outros e outra a coincidência social do
escritor, cada vez mais empossado na sua responsabilidade ética pelo andamento
do mundo. Embora na mesma língua, que ali conhecera nova graça e flexibilidade,
e emoldurado na mesma paisagem que a inspirara – de quantas conhecia, a mais
convidativa a devaneios estético-aristocráticos e enredos erótico-sentimentais,
a ponto de sentir não sei que constrangimento ao lançar nela certas violências –,
falava em nome de valores diferentes. Ainda encadeado pelo clarão revelador da
viagem que me escancarava as portas de uma Europa convulsionada e me devolvera à
pátria em carne viva, antevisão infernal do mundo apocalíptico de que os
jornais davam diariamente notícia – a Espanha republicana vencida e exilada, os
totalitarismos enfáticos e triunfantes por toda a parte, o velho continente ou
esfarrapado já ou ameaçado de morte –, tentava traduzir o mais fielmente
possível o abalo que sentira naqueles dias decisivos de ávida e dilacerante
digressão. Seria um depoimento sincero e desassombrado, sem transigências de
nenhuma ordem – políticas, religiosas, sentimentais ou outras. A intensidade da
experiência não consentia meias medidas. Exigia que as feridas rasgadas no corpo
inocente das nações ficassem a sangrar em cada página, ao lado dos regimes
messiânicos denunciados e de todas as hipocrisias desmascaradas. E, ainda, que
desse leal conta das minhas opções nos momentos cruciais, para que a chancela
do risco autenticasse o relato. Muito embora fechado em si, de possível leitura
autónoma, o livro constituiria apenas um novo e longo capítulo de uma obra mais
vasta, concebida como o roteiro significativo de um caminhante inquieto e sensível,
a criar lenta e progressivamente o mundo na consciência. Roteiro em que a
imaginação ia alargando os horizontes peregrinos, nos volumes até ali publicados
somente o penhor da inocência infantil e o arrebatamento juvenil davam corpo e
sentido à narrativa. Pasmada e perplexa diante de agressões da realidade, a
criança enchia o saco da memória de sensações e reflexos, sem suspeição para os
discriminar e critério para os julgar. Por sua vez, o jovem, a mover-se já
noutros paralelos geográficos e sociais – primeiro a esbracejar no seio quente
de uma natureza tropical, depois a deambular nas alamedas do lirismo e do
estudo, por último a dar os primeiros passos responsáveis – actuava também sem
muito reflectir, escravo dos rigores da necessidade, do jogo das paixões e das
leis do dever. E ambos chegavam ao termo das suas aventuras de testemunho passado
e com trâmites da caminhada tatuados na alma, inequivocamente abismada de dor e
teimosamente possessa de esperança.
Mas tudo mudara numa curva da estrada. Arrastado pela mão do tempo e levado pela curiosidade, quando deu por si, o herói transpusera as fronteiras do verosímil e, debruçado sobre um vulcão, observava ao vivo a maré ígnea e crescente das lavas fundidas nos abismos humanos. E era o espanto dessa visão sinistra que procurava agora pintar com a tinta acesa das palavras.
Mas tudo mudara numa curva da estrada. Arrastado pela mão do tempo e levado pela curiosidade, quando deu por si, o herói transpusera as fronteiras do verosímil e, debruçado sobre um vulcão, observava ao vivo a maré ígnea e crescente das lavas fundidas nos abismos humanos. E era o espanto dessa visão sinistra que procurava agora pintar com a tinta acesa das palavras.
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