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Miguel Torga – Foto retirada de www.asbeiras.pt
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Desgraçadamente,
cada vez sentia a caneta mais perra. Sabia de há muito, desde que assumira
dramaticamente o acto acordado de existir, que nunca o melhor do meu esforço
beneficiaria do usufruto dos hábitos. Diante de cada trabalho, por mais difícil
e repetido que fosse, ficava atarantado como um principiante a ensaiar, na
confusão e na dúvida, os primeiros passos. A tropeçar constantemente na
originalidade fundamental dos seres e das situações, a exigir para cada experiência
uma voz inédita, sem poder deduzir por analogia qualquer padrão invariável de
conduta, e incapaz de utilizar em benefício próprio os variados expedientes do êxito,
só me restava a dignidade de ser lucidamente um eterno aprendiz. A recusa
sistemática de concessões de qualquer natureza, a impugnação radical de todas
as ortodoxias e a descrença latente nos meus eventuais méritos não me consentiam
outra alternativa na gama apertada das minhas opções. Mas enquanto que, na
profissão, a prática ia sancionando o seu exercício, de livro para livro as
dificuldades redobravam. Ao cabo de alguns anos de tarimba literária,
continuava canhestro, enrodilhado, hesitante, atado como nos primeiros tempos.
Talvez mesmo pior ainda, já que agora nem o deslumbramento de neófito cegava a
evidência. E tinha plena consciência de trazer um escritor tartamudo e aflito
no avesso da pele aparente de um escritor fluente e convicto. O palco varrido
da página branca, onde outros passeavam impantes a facilidade inspirada,
simbolizava para mim um maninho e duro que tinha de arrotear e semear
penosamente. E sorria por fora, rilhado de amargura por dentro, quando ouvia
falar nas alegrias da criação, nos invejáveis contentamentos reservados ao
artista. Publicava um volume, e leitores fiéis, a julgarem-se lisonjeiros,
reclamavam outro no dia seguinte. De boa fé, atribuíam-me a destreza dum
artesão prendado, com a perícia às ordens da vontade. Mal imaginavam que,
depois de escrever aos arrancos um poema, um capítulo ou uma simples frase,
ficava em pânico, crucificado pela incerteza de repetir a façanha. Nunca poderiam
conceber que as tais horas altas de eufórica plenitude se reduziam a longas
agonias, em que, às mil dificuldades oficinais, se vinha juntar o terror
obsessivo de uma súbita mudez irreversível que selasse para sempre as portas do
silêncio.
Nesse
desencanto exacerbado, doía-me como uma familiaridade impertinente qualquer
alusão menos discreta à minha actividade paralela de escritor. Bastava que um
doente se lhe referisse no decorrer da consulta para que tudo ficasse
transtornado. Já nem o diagnóstico saía em termos. Num pudor
insofrido e quase hostil, por força das mais inesperadas agressões, queria ser
respeitado nas razões profundas que me haviam levado a discriminar na própria
identificação o acontecimento íntimo de ser poeta do acto público de ser médico.
O nome exposto na tabuleta correspondia ao cidadão comprometido na honra do
sangue, no grau das habilitações, nos deveres de urbanidade; o outro
indeterminava o campo das minhas virtualidades, situava-me para além de todas
as heranças e de todos os estatutos. Tornava, sobretudo, menos contingente uma
vulnerabilidade tanto mais frágil quanto mais apetecidos eram os declives do
abandono e maior a disponibilidade exigida pela construção dialéctica de uma
obra que se desejava realizada na comunhão universal de todos os semelhantes.
In «A Criação do Mundo – IV» (O Quinto Dia da Criação do Mundo), prosa de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, Abril de 1974 (1.ª edição).
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