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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

NÚMERO ANTIGO DUM JORNAL, excerto do conto «Zaqueu e “Polly”, o cozinheiro», de Knut Hamsun

Knut Hamsun - fotografia retirada de revistafinismundi.blogspot.com
(…) O sol implacável flameja a 40 graus centígrados; céu e terra vibram neste ar abrasado que nenhum verdadeiro sopro de vento acode a refrigerar. O Sol parece um brejo de fogo.
Tudo é calmo em volta das edificações; somente vem do grande barracão de madeira, que serve de cozinha e refeitório, um zunzum de vozes e movimentos apressados: o dos três cozinheiros trabalhando na maior azáfama. Queimam erva em enormes fornos e o fumo sai em espirais da chaminé, de envolta com chamazinhas e faúlhas. Os alimentos assim preparados são metidos em tachões de zinco e estes postos sobre carroças, atrelam-se em seguida os burros, e por fim lá vão os três homens pela pradaria fora com as suas vitualhas.
O cozinheiro é um Irlandês, homenzinho atarracado, dos seus quarenta anos, cabelo grisalho e porte militar. Anda meio desnudo; a grande camisa aberta à frente patenteia-lhe o tórax, amplo como mó de moinho. Todos ali o tratam por Polly, por causa do seu rosto, que se assemelha à cabeça de um papagaio.
Polly foi outrora soldado, num dos fortes lá para o Sul; tem o culto das Belas-Letras e sabe ler. Eis o motivo por que conserva consigo uma compilação de canções e também um número antigo dum jornal. Estes tesouros, ninguém mais tem o direito de lhes tocar; guarda-os numa prateleira da cozinha, para os ter sempre à mão durante as horas de ócio; e compulsa-os com assiduidade.
Ora o Zaqueu, seu lastimável compatriota, que é muito curto de vista e usa óculos, apoderou-se um dia do dito jornal. Não vão oferecer ao Zaqueu qualquer livro comum, onde os minúsculos caracteres se baralhariam, inextricáveis, sob o seu olhar; em compensação, experimenta verdadeiro prazer em ter na mão o jornal do cozinheiro para ir lendo, de seu vagar, as belas maiúsculas dos anúncios. Mas o cozinheiro, tendo dado imediatamente pelo roubo do seu tesouro, foi direito ao Zaqueu, que lia estendido sobre o grabato, e apreendeu-lhe com ímpeto o que era propriedade sua. Travou-se então entre os dois homens uma briga veemente e insultuosa. (…)

In «Zaqueu e “Polly”, o cozinheiro», livro de contos de Knut Hamsun (tradução de César de Frias), colecção «Mosaico – Pequena antologia de obras-primas» (n.º 14), com direcção literária de Manuel do Nascimento, Fomento de Publicações, L.da, Lisboa, s/d.

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