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Pormenor de pintura na Capela Sistina – Imagem encontrada em thesoftmanias.blogspot.pt |
Tem-se
tornado justamente famosa a anotação que pertence ao poeta William Blake: as
Escrituras judaico-cristãs são um grande código da arte e do Homem. O que é um
modo de dizer que a atividade cultural do Ocidente foi ininterruptamente
fecundada pelo texto e pela simbólica bíblicas. De facto, sem a chave bíblica,
o recheio pictórico da Capela Sistina, diariamente frequentado por milhares de
pessoas, seria mais intrigante e impenetrável que as misteriosas estátuas da
ilha de Páscoa. Mas também os grandes museus nacionais, pelo menos os da
Europa, tornar-se-iam num arsenal de objetos sem razão e nexo.
A
Bíblia representa uma espécie de «atlas iconográfico», um «estaleiro de
símbolos». É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um
teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens.
Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso: é
também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma
parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. Por isso, o
escritor italiano Sergio Quinzio, recentemente, defendia: «A Bíblia deveria ser
estudada na escola, e por todos, como se estuda a Ilíada...» Compreender a
Bíblia é compreender-se, já que a Bíblia participa de modo determinante no
circuito das relações que ligam experiência religiosa e consciência civil na
Europa Moderna, a ponto de poder iluminar a própria identidade europeia.
A
Bíblia aparece-nos disseminada pelo pensamento, imaginação e quotidiano. Ela
continua a ser um texto, claro. Mas também, e de um modo irrecusável, a Bíblia
constitui hoje um metatexto, uma espécie de chave indispensável à decifração do
real. Da filosofia às ciências políticas, da psicanálise à literatura, da
arquitetura explícita das cidades ao desenho implícito dos afetos, da arte dita
sacra às formas de expressão que enchem, por toda a parte, galerias, museus,
escaparates: a Bíblia é um parceiro, voluntário ou involuntário, nessa
comunicação global. O mundo constrói-se na intertextualidade. Como outrora se
falava do palimpsesto, temos hoje o zapping,
o link, o corta e cola. O texto
bíblico participa na construção do mundo, ao mesmo tempo que viabiliza a sua
legibilidade.
In «O Hipopótamo
de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas
provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do
Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª
edição).
NOTA: O texto segue o
AO90.
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