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Lembro-me de um
filme de Nanni Moretti, acho que é O
quarto do filho, em que uma personagem, estando a viver um duro luto, se
coloca a arrumar no armário as chávenas de chá. Percebe então que uma tem um
lado partido. Tenta disfarçar o facto, colocando visível apenas o lado intacto.
Mas ela sabe que àquela chávena falta alguma coisa. Aquela chávena é o símbolo
da sua vida, da nossa vida, que ela e nós temos de aceitar e redescobrir
continuamente. Acolher isso é uma condição necessária no amor e na amizade, no
viver comum e na maturação pessoal que nos cabe fazer.
Há aquele mote de
Samuel Beckett que, se o soubermos ouvir, derrama sobre os nossos embaraços grande
luz. Diz assim: «Errar, errar de novo, errar melhor.» O que é errar melhor? É
saber que, no fundo, erramos sempre. Isto é: a perfeição encontrámo-la nos
catálogos, mas não nos nossos gestos ou em nós próprios. O mais sensato é mesmo
adotar a humilde sabedoria de quem procura conscientemente o melhor, mas sabe
que o seu melhor ficará ainda aquém. O que podemos aprender é, pois, a semear,
num trabalho de confiança, de desprendimento e simplicidade cada vez maiores.
Jung escrevia: «O importante não é ser perfeito, mas sim inteiro.» E para nós,
o que é realmente importante?
Durante anos tive em
casa um cartaz de uma peça de teatro infantil, de um grande autor italiano.
Para saber falar às crianças como ele o faz, a gente percebe que se tem de
apetrechar não apenas de uma enorme habilidade, mas de uma afectuosa esperança.
Os miúdos sabem distinguir bem quem lhes fala para entreter ou quem realmente
lhes quer comunicar uma verdade de coração. Este autor, chamado Gianni Rodari,
é assim. Durante anos tive um cartaz seu com esta frase: «Errando também se
inventa.» Olhar para aquela frase transmitia-me o ânimo e a leveza de que
precisava.
A perfeição
coloca-nos perante a realidade como se de um facto consumado se tratasse: se
formos mexer, intervir, retocar ou alterar, sentimos isso como uma perturbação.
Essa perfeição é estática. Existe só para ser admirada… à distância. A
imperfeição, porém (e penso também naquelas que identificamos na nossa vida
interior), é uma história ainda em aberto, que conta ativamente connosco. Na
imperfeição é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição permite-nos
compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do
tempo, o traço dos seus vestígios. A imperfeição humaniza-nos.
In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas
que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de
José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM),
Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).
NOTA: O
texto segue o AO90.
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