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A
dada altura passamos a aceitar o invisível em nós e nos outros. Isto é, damos
por nós a aceitar serenamente que a vida tem camadas geológicas como a Terra,
que a vida se expande por tempos de formação ocultos à superfície, e que em
todas as existências há uma crosta terrestre e metros e metros de filamentos,
mergulhados em silêncio. Ao contrário dos juízos, apressadamente rasos, nos
quais todos caímos, é preciso dizer que somos inacessíveis. E que os
instrumentos que temos para chegar ao coração uns dos outros são inquietantemente
limitados. Basta reconhecer como o nosso olhar, este olhar que tão amiúde
absolutizamos, está prisioneiro do presente: aquilo que o olhar anota é sempre
e só o presente histórico nas suas configurações. Enquanto que no interior de
cada um, o passado e o futuro têm uma força insuspeitável, um impacto a perder
de vista.
Por
isso, se nos perguntam, «a vida pertence mais ao domínio do visível ou do
audível»», parece-me mais sensato optar pelo segundo. Na verdade, enquanto que
o silêncio de uma vida nem sempre se consegue detetar com os olhos, a
invisibilidade da vida pode sempre ser escutada. A escuta talvez seja o sentido
de verificação mais adequado para acolher a complexidade que uma vida é.
Contudo, nós escutamo-nos tão pouco e, dentre as competências que
desenvolvemos, raramente está a arte de escutar.
Na
Regra de São Bento há uma expressão essencial, se queremos perceber como se
ativa uma escuta autêntica: «Abre o ouvido do teu coração.» Quer dizer: a
escuta não se faz com o ouvido exterior, mas com o sentido do coração. A escuta
não é apenas a recolha do discurso verbal. Antes de tudo, é atitude, é
inclinar-se para o outro, é confiar-lhe a nossa atenção, é disponibilidade para
acolher o dito e o não dito, o entusiasmo da história ou a sua dor mais ou
menos ciciada, o sentimento de plenitude ou de frustração. E fazer isto sem paternalismos
e sem cair na tentação de se substituir ao outro. Ouvir é oferecer um ombro,
onde o outro possa colocar a mão, para rapidamente se levantar. Ouvir é colocar
amigavelmente num processo de discernimento cuja palavra derradeira cabe sempre
à liberdade do próprio. Mas podermos ser escutados, até ao fundo e até ao fim,
abre, só por si, horizontes mais amplos do que aqueles que sozinhos
conseguiríamos avistar e relança-nos no caminho da confiança.
Um
dos textos mais impressionantes sobre o valor da escuta é o conto Tristeza, de Tchekhov. Conta a história
de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos,
ninguém disponível para o amparar. «Precisa de contar como o filho adoeceu,
como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… Precisa de descrever o
enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a
filha Aníssia… Precisa de falar sobre ela também…», mas ninguém o ouve. O
cocheiro volta-se então para o seu cavalo e enquanto lhe dá aveia começa a
expor-lhe, num longo e dorido monólogo, tudo o que viveu. E as últimas palavras
do conto são estas: «O cavalo foi mastigando, enquanto parecia escutar, pois
soprava na mão do seu dono… Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe
tudo.»
In «O
Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as
respostas provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção
Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de
2013 (3.ª edição).
NOTA: O
texto segue o AO90.
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