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O verso
certeiro de Fernando Pessoa que diz «morrer é só não ser visto» ganhou, nos
últimos dias, significados que nos deveriam desassossegar. As notícias que dão
conta dos idosos que vivem e morrem em total solidão mostram-nos como a frase
de Pessoa não é apenas uma alusão simbólica à invisibilidade dos mortos, mas se
tornou uma descrição literal do que, entre nós, acontece aos vivos. Num número
que ninguém ainda consegue bem quantificar, mas que os poucos indicadores dão
como preocupante e crescente, multiplicam-se as situações de isolamento humano,
sobretudo na terceira idade, precisamente quando o cuidado e o acompanhamento
deveriam ser redobrados.
Por vezes,
no cruzamento apressado das horas, deparamos com um rosto idoso que nos olha
por detrás de uma janela, na nesga quase oculta de uma cortina, e fazemos por
não pensar muito nisso. Mas que nos dizem esses olhos? Que nos dizem esses
olhos que nos olham em silêncio, sedentos de proximidade e de palavra; esses
olhos para quem tudo é adiado; esses olhos que se sabem deixados para o fim ou
nem isso; esses olhos impotentes e, ainda assim, tão doces; esses olhos que
tateiam as coisas e já não estão certos de as reconhecer ou de as poder ativar;
esses olhos que desistem um milhão de vezes por dia e nenhuma delas sem dor;
esse olhos que se deixaram sequestrar pela televisão a tempo inteiro; esses
olhos vazios do que não viram, mas que não desistem de esperar; esses olhos
atrapalhados na geografia que alteramos sem aviso; esses olhos que não
conseguem perceber a literatura incluída de um mundo que, sem o merecerem, lhes
é hostil? Sim, que nos dizem os olhos que encontramos regularmente por anos a
fio, ou mesmo só por uns meses, que nos habituamos a reconhecer na nossa
paisagem anónima e distraída e, de repente, deixamos de ver? «Morrer é só não
ser visto.» Deveríamos escrever o verso de Pessoa na Constituição da República e no nosso coração.
In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que
trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de José
Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas
Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).
NOTA: O texto segue o AO90.
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