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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

[gosto de escrever e escrever, mesmo que apenas para passar o tempo], excerto de «Diário de um velho louco», de Junichirō Tanizaki

Junichirō Tanizaki – Imagem retirada de http://www.beholdmyswarthyface.com
23 de Julho – Mantenho um diário apenas porque gosto de escrever; não tenciono mostrá-lo a ninguém. A minha vista está a falhar de tal maneira que não posso ler tanto como quero e, visto que não tenho outra forma de me divertir, gosto de escrever e escrever, mesmo que apenas para passar o tempo. Escrevo em caracteres grandes, com um pincel, de forma que a minha letra seja fácil de ler. Para evitar embaraços, fecho o diário num pequeno cofre. Neste momento, tenho cinco cofres desses. Suponho que, realmente, devia queimar isto tudo um dia, mas poderá haver uma vantagem em preservá-lo. Quando o olho para um dos meus velhos diários, fico espantado ao descobrir como me tornei esquecido. Os acontecimentos de um ano atrás parecem-me inteiramente novos, o meu interesse nunca esmorece.
No Verão passado, enquanto estávamos em Karuizawa, mandei remodelar o quarto, a casa de banho e o lavabo. Apesar de estar tão esquecido, recordo-me disso muito bem. Mas, ao rever o diário do ano passado, vejo que omiti pormenores. Surgiu agora algo que torna necessário acrescentar alguns.
Até ao Verão passado, a minha mulher e eu dormíamos lado a lado num quarto de estilo japonês mas, no ano passado, substituímos os tapetes por um pavimento de madeira e colocámos duas camas. Uma é para mim e a outra ficou para a enfermeira Sasaki. Mesmo antes disso, a minha mulher costumava, de vez em quando, dormir sozinha na sala de estar e, desde a remodelação, temos dormido sempre separados. Levanto-me e deito-me cedo, mas minha mulher dorme até tarde e gosta de ficar levantada também até tarde. Embora eu prefira uma casa de banho de estilo ocidental, ela diz que tem dificuldades se não for de estilo japonês baixo. E houve várias outras razões para a remodelação, como a conveniência do médico e da enfermeira. Assim, o nosso lavabo, a divisão a seguir no corredor à direita, foi equipado com uma sanita tipo cadeira e reservado para meu uso, tendo aberto uma porta na parede entre o lavabo e o meu quarto. Também fizemos mudanças substanciais na casa de banho, que se encontra do outro lado do quarto: a nova é toda revestida de azulejo, incluindo a banheira, tendo até instalado um chuveiro. Isto foi feito a pedido de Satsuko. Colocámos também uma porta entre a casa de banho e o quarto mas, se necessário, pode fechar-se a casa de banho por dentro.
Devo acrescentar que o quarto para lá do lavabo é o meu escritório (abrimos também uma porta entre estas divisões) e o outro a seguir é o quarto da enfermeira. Esta dorme na cama junto à minha de noite mas, durante o dia, está geralmente no seu próprio quarto. Tanto de dia como de noite, a minha mulher fica na sala de estar ao fundo do corredor e passa a maior parte do tempo a ver televisão ou a ouvir rádio. Raramente sai, a não ser que tenha algo específico para fazer. Jokichi, a mulher e Keisuke ocupam o segundo andar, que inclui um quarto de hóspedes mobilado ao estilo ocidental. Parece que o jovem casal decorou a sua sala de estar com bastante luxo mas, como estou tão pouco seguro das pernas, raras vezes ma aventuro a subir pela escada em espiral.
Houve alguma discussão quando remodelámos a casa de banho. A minha mulher insistiu numa banheira de madeira, argumentando que a água não se manteria quente durante tanto tempo numa de azulejos e que estes seriam desconfortavelmente frios no Inverno. Mas eu aceitei a sugestão de Satsuko (sem mencionar o seu capricho à minha mulher) e mandei fazer tudo de azulejo. Mesmo assim, foi um fracasso – talvez devesse dizer um sucesso – porque se verificou que os azulejos molhados são perigosamente escorregadios para uma pessoa idosa. Uma vez, a minha mulher patinou no novo pavimento e deu uma bela queda. E outra vez, quando me agarrei à borda da banheira para sair, a minha mão escorregou e não consegui pôr-me de pé. Como só posso usar uma mão, a situação foi bastante complicada. Mandei colocar escorredouros sobre o chão, mas não pude fazer nada quanto à banheira.
De qualquer forma, houve um novo desenvolvimento ontem à noite.
A menina Sasaki passa a noite com a família uma ou duas vezes por mês; parte à noite e volta antes do meio-dia do dia seguinte. Nas noites em que está ausente, a minha mulher toma o seu lugar na cama junto à minha. Estou habituado a deitar-me às dez, logo a seguir ao banho. Desde que caiu, a minha mulher não me ajuda a tomar banho, por isso fazem-no Satsuko ou a empregada, mas nenhuma é tão hábil ou competente como a menina Sasaki. Satsuko é bastante diligente a preparar as coisas mas, depois, fica a observar sem propriamente ajudar. Na prática, tudo o que faz é passar-me a esponja pelas costas. Quando saio da água, seca-me com uma toalha por detrás, polvilha-me com talco e liga a ventoinha eléctrica. Seja por modéstia ou repulsa, nunca dá a volta pela frente. Finalmente, ajuda-me a vestir o roupão de banho e leva-me para o quarto, após o que se afasta, apressada, pelo corredor fora. Só falta dizer-me que o resto é dever da minha mulher e que ela não é responsável por isso. Não posso impedir-me de desejar que ela também passasse, de vez em quando, a noite no meu quarto mas, talvez porque a minha mulher a mantém debaixo de olho, Satsuko é deliberadamente esquiva.
A minha mulher não gosta de dormir na cama de outra pessoa. Muda todos os lençóis e cobertores e deita-se constrangida. Devido à sua idade, tem de fazer duas ou três deslocações por noite para se aliviar, mas diz que uma casa de banho de estilo ocidental não serve, pelo que utiliza a japonesa. Resmunga que isso a impede de ter uma boa noite de sono. Secretamente, tenho desejado que em breve seja pedido a Satsuko que tome o lugar dela numa noite em que a menina Sasaki esteja ausente.
Ontem à noite, por acaso, foi o que aconteceu. A menina Sasaki pedira folga para essa noite e partira às seis da tarde. Depois do jantar, a minha mulher começou a sentir-se mal e foi deitar-se no seu quarto. É claro que Satsuko teve de ficar comigo, além de me ajudar a tomar banho. De início, usava calças pelo joelho à toureiro e uma blusa desportiva com um desenho da Torre Eiffel azul-vivo. Parecia maravilhosamente fresca e elegante. Talvez fosse apenas a minha imaginação, mas parecia esfregar-me com cuidado invulgar. Conseguia sentir o toque das suas mãos aqui e ali, no pescoço, nos ombros, nos braços.
Depois de me levar para o quarto, disse:
– Venho já, espere só um minuto, está bem? Também quero tomar duche.
A seguir, entrou de novo na casa de banho. Tive de aguardar cerca de meia hora. Ao sentar-me na beira da cama, esperando, senti-me estranhamente nervoso. Por fim, ela reapareceu à porta da casa de banho mas, desta vez, com um roupão de linho cor de salmão e chinelos de seda semelhantes aos chineses bordados com peónias.
– Desculpe ter demorado tanto.
Ao atravessar o quarto, a porta para o corredor abriu-se e Oshizu entrou com uma cadeira de rota dobrada. – Pai, ainda não foi para a cama? – perguntou Satsuko.
– Ia mesmo agora, minha querida. Mas para que queres uma coisa dessas?
Quando a minha mulher não está presente, tenho tendência a falar com Satsuko de forma mais íntima do que é habitual. Com frequência, faço-o propositadamente, embora pareça muito natural quando estamos sós. A própria Satsuko, se estamos sós, fala comigo de uma maneira curiosamente impudente. Está bem consciente da forma de me agradar.
– Vai para a cama demasiado cedo para mim; por isso, vou sentar-me aqui a ler.
Desdobrou a cadeira de rota numa espécie de chaise longue, estendeu-se nela e abriu um livro que trouxera. Parecia um texto em língua francesa. Cobrira o candeeiro com um pano para afastar a luz dos meus olhos. Sem dúvida, também não gosta da cama da menina Sasaki e decidiu, por certo, dormir na cadeira.
Estava ali estendida e, por isso, deitei-me também. Tenho ar condicionado no meu quarto, mas mantenho-o muito reduzido, para evitar o frio no braço. Durante os últimos dias, o tempo tem estado tão abafado e húmido que o médico e a enfermeira dizem que é melhor utilizá-lo, quanto mais não seja para secar o ar. Fingindo estar a dormir, observava, na verdade, as pequenas pontas dos chinelos chineses de Satsuko, que espreitavam por debaixo do roupão. Pés deliberadamente afunilados são raros num japonês.
– Pai, ainda está acordado, não está? A menina Sasaki diz que o ouve ressonar logo que se deita.
– Por qualquer razão, esta noite não consigo dormir.
– Por minha causa?
Como não respondi, riu-se e disse:
– É mau para si ficar excitado!
E prosseguiu, após uma pausa:
– Talvez seja melhor dar-lhe Adalin.
Era a primeira vez que Satsuko se mostrava tão provocante, o que realmente me excitou.
– Não é necessário.
– Não se preocupa, eu vou buscar!
Enquanto ela ia procurar o medicamento, tive uma ideia brilhante.
– Aqui está? Dois serão suficientes?
Deitou dois comprimidos do fraco de Adalin para um pires e foi buscar um copo de água à casa de banho.
– Agora, abra bem a boca! Não está satisfeito por ser eu a dar-lhos?
– Sim, mas não mos dês num pires, pega-lhes com os dedos e põe-mos na boca.
– Então, vou lavar as mãos.
E foi de novo à casa de banho.
– A água vai entornar – avisei, logo que ela voltou. – Já agora, porque não mos dás boca a boca?
– Não seja ridículo! Ser atrevido não o leva a lado nenhum!
Antes de eu dar por isso, atirou os comprimidos, rapidamente, para a minha boca e deitou água a seguir. Tencionara fingir que adormecia mas, contra a minha vontade, adormeci mesmo.

In «Diário de um velho louco», de Junichirō Tanizaki (tradução de Maria José de La Fuente; revisão de texto de Francisca Cortesão), Colecção «Ficções» (n.º 125), Relógio D’Água Editores, Outubro de 2008 (1.ª edição).

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