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sábado, 15 de outubro de 2016

«O seu marido não pertence à Comissão das Lágrimas?», excerto de romance de António Lobo Antunes

Foto encontrada em http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
– Continuas com medo?
e não tenho vergonha de confessar, continuo com medo a Cadeia de São Paulo diante dele agora, pessoas e pessoas não a fugirem, em corredores, em celas, tão difícil reconhecer os presos por causa dos inchaços, não mencionando os postigos estreitos, interrogo-me como a minha filha descobriu eu que me calei ou quando muito gritos mudos que ninguém escutou, será que as árvores e os objectos decidiram informá-la mas como se não saíram de Lisboa e por conseguinte nada sabem de África, em relação a África, de resto, há momentos em que duvido, palavra de honra, ter lá morado em tempos, desde há milénios este tabuleiro e estes vidros opacos e no entanto cada autocarro uma camioneta do Exército, cada automóvel um jipe da polícia, passei semanas a fio de açucena em riste nem todas sob a chuva, é verdade, mas quase todas sob a chuva e indiferente a ela dado que a Simone, dado que a Alice, Simone li nas fotografias do cartaz, a Alice mais tarde, a querida Alice que veio de Lisboa num barco de mulheres, cheio de lantejoulas e plumas, para os fazendeiros do café, ao mencionar a querida Alice logo o avô cego e os passarinhos do pão, aí vai ela carregando o joelho no sentido do quarto, há-de ser complicado transportarmos uma coisa não nossa, e senhora da embaixada
– O seu marido não pertence à Comissão das Lágrimas?
e pesada, e incerta, se cuidava que a não via um pedido de ajuda não calculo a quem, à Virgem que não nos fita, inquieta com a estreiteza do universo
– Não há lá fora a sério?
e não há lá fora, Senhora, há a Cadeia de São Paulo e o meu pai sentado com os outros, a uma mesa comprida, com duas lâmpadas no tecto tombando, em charcos pardos, sobre outros charcos pardos, inquirindo, sibilando, zangando-se com os presos dos corredores e das celas, quem procuraste ontem, com quem falaste, onde foste, as folhas da sua boca não
– Ai Cristina
não
– Como estás Cristina?
a que inimigo escreveste contra a gente, porque pensavas matar-nos e mais charcos, olhos que babavam saliva, murmúrios de palmeira sufocada, a seguir aos murmúrios de palmeira um silêncio vazio em que um barco com uma lanterninha de papel, perdão, um barco sem uma lanterninha de papel largava corpos na baía onde o mar agitava sementes de avenca contra a janela, no seminário as avencas o tempo inteiro nos caixilhos, advertindo
– Não entristeças Deus
com o da cama ao lado, mais baixo que as avencas
– Dá-me
e demasiados braços, demasiadas unhas, demasiado suor na sua nuca, nas costas, ele a pensar, aterrado
– Um dia destes Deus vai saber de certeza
porque as avencas sabiam e não gostavam de mim, as avencas
– És preto
numa arrogância que não cessava, não cessava, a minha mãe de joelhos e ele incapaz de consolá-la, ele preto
– O seu marido não pertence à Comissão das Lágrimas?
ele mandioca torcida nas esteiras, ele de pedra como em Lisboa, quase oitenta anos de pedra, ele com a mãe, hoje a engordar o capim, na cozinha do chefe de posto voltada aos girassóis e a seguir aos girassóis as mangueiras, em redor do seminário eucaliptos a concordarem
– És preto
o chefe de posto branco, a esposa do chefe de posto branca, a minha mãe preta, o meu pai preto que trabalhava num armazém a entregar os salários e não havia salários, não pagaste o imposto, gastaste o que sobrava na cantina e os palermas calados, nunca viu criaturas tão submissas, pedaços de calções, pedaços de camisas, um ou outro chapéu de palha sem palha, a que desgraçado o furtaste, gatuno, ele na Comissão das Lágrimas
– Queres os portugueses de volta em Angola?
a rapariga sem gengivas nem língua que só a pistola calou, não entendia a razão de continuar a ouvi-la em Lisboa, o que fizeste para que eu te oiça em Lisboa a não ser que o mar vos traga um a um, a missa no seminário às seis e um quarto da manhã e ele gelado, oxalá ninguém conte a Deus, oxalá não venha aqui e suspeite, Deus branco, como o chefe de posto e a esposa do chefe de posto, com a colher de girar a sopa no fogão ao alto, estende as mãozinhas, ladra, e um girassol a quebrar-se a cada golpe, inúmeras pestanas amarelas e a pupila de verniz descobrindo-me de súbito
– Mostraste?

In «Comissão das Lágrimas», romance de António Lobo Antunes, Obra Completa (Edição ne varietur, de acordo com a vontade do autor; revisão filológica de António Bettencourt), Publicações Dom Quixote, Alfragide, Novembro de 2011 (6.ª edição).

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