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terça-feira, 20 de outubro de 2015

[Os livros ofereciam-lhe um prazer quase carnal], passagem do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

Fernando Namora (fotografado por Gustavo de Almeida Ribeiro)

– Pensas fazer alguma exposição em Coimbra?
Quem tinha feito a pergunta? Zé Maria ouviu-a através do nevoeiro dos seus pensamentos. Exposições, livros. Eles julgavam ser possível construir um mundo apenas com frases; e, no entanto, todos eles tinham ou julgavam ter uma aguda consciência das realidades, da vida tal como era. E acreditavam nela. Mas comportavam-se como crianças que levam os sonhos até à Lua e estendem depois os braços para alcançá-los.
Marinho devia ter respondido com um aceno de cabeça. Mas agora decidira-se a falar também:
– O meio não é para exposições, suponho. Dizem-me que há por aí uns aficionados que compram quadros quando lhos impingem a domicílio. Uns tipos que, evidentemente, não fazem distinção entre a pintura e os jarrões que lhes enfeitam as salas de visitas. Mas compram, é o que importa. Estudarei essa possibilidade. Você tem um cigarro, Luís Manuel? Perdi o maço ao apear-me do comboio.
Júlio riscava o vidro da mesa com a unha. Seabra aproveitou a oportunidade para insistir no seu tema:
– Sempre a questão da massa! O problemazinho. É revoltante estarmos sujeitos a isto. Você, Marinho, consegue realizar-se como artista pensando constantemente nessas questões do dia-a-dia, como um merceeiro tem de pensar nas letras e nos prazos de vencimento?
O outro descaiu as pálpebras sobre os olhos claros, a medir o interesse da pergunta. Numa voz incolor, respondeu com lentidão:
– Faz-se o que se pode. Há coisas mais importantes do que isso.
– Lastimável.
– Tu és irredutível, Seabra – disse Júlio, e não se sabia até onde chegara a ironia e a que verdadeiramente quisera referir-se.
A conversa escorregou logo depois para o confronto entre a literatura e a pintura. Seabra achava que a missão de um novelista era, de todas, a mais espinhosa e, ao dizê-lo, parecia insinuar a alta e terrível missão a que deliberadamente se obrigara.
Luís Manuel assistia, com prazer reconfortante, ao entusiasmo que os companheiros punham nos seus depoimentos e ele próprio conseguiu atraí-los ao comentário sobre certas edições estrangeiras que, um pouco a ocultas, haviam, enfim, chegado às suas mãos. Falando de livros, já ele poderia impor-se à consideração de Marinho, visto que era sempre o primeiro a adquirir as obras acabadas de chegar às livrarias da cidade. Não tinha, evidentemente, tempo para as ler todas, mas sabia-lhes da existência, do formato, da sedução exterior, podia mostrá-las nas fartas prateleiras da sua casa. Os livros ofereciam-lhe um prazer quase carnal. Era a própria vida condensada, acessível, fechada em volumes, que se transportava comodamente para um recanto solitário, a vida que se palpava com as mãos e à qual era fácil entregar-se ou negar-se, conforme lhe aprouvesse. Os seus dedos magros gozam o contacto do papel, o rasgar das folhas, os primores da impressão, tal uma mulher se delicia ao sentir sobre o corpo um tecido desejado.

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).

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