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quinta-feira, 16 de julho de 2015

[A deleitação burguesa], excerto de «O Despertar dos Mágicos»

Imagem encontrada em http://technowayer.blogspot.pt

«A marquesa tomou o seu chá às cinco horas»: Valéry dizia mais ou menos que não se pode escrever semelhantes coisas quando já se entrou no mundo das ideias, mil vezes mais importante, romanesco, mil vezes mais real do que o mundo do amor e dos sentidos. «António amava Maria que amava Paulo; eles foram muito infelizes e tiveram uma série de questiúnculas». Uma literatura inteira! Palpitações de amibas e de infusórios, quando o Pensamento arrasta tragédias e dramas gigantescos, transmuda seres, altera civilizações, mobiliza multidões imensas. Sonolentos prazeres, deleitação burguesa! Nós, os adeptos da consciência alerta, trabalhadores da Terra, sabemos onde se encontram a insignificância, a decadência, o divertimento corrupto…
O final do século XIX marca o apogeu do teatro e do romance burguês, e a geração literária de 1885 reconhecerá durante algum tempo como mestres Anatole France e Paul Bourget. Ora, nessa mesma época há um drama, no domínio do conhecimento puro, muito maior e palpitante do que entre os heróis do Divorce ou do Lys Rouge. Produz-se uma súbita embriaguez no diálogo entre materialismo e espiritualismo, ciência e religião. Do lado dos sábios, herdeiros do positivismo de Taine e Renan, formidáveis descobertas farão desmoronar as muralhas da incredulidade. Apenas se acreditava nas realidades devidamente estabelecidas: bruscamente, é o irreal que se torna possível. Observai os factos como se se tratasse de uma intriga romanesca, com mudança repentina de personagens, intervenção dos traidores, paixões contrariadas, debate entre ilusões.
O princípio da conservação da energia era algo de sólido, de fixo, de marmóreo. E eis que o rádio produz energia sem a ir buscar a qualquer fonte. Havia certezas a respeito da identidade da luz e da electricidade: só se podiam propagar em linha recta e sem atravessar obstáculos. E eis que as ondas, os raios X atravessam os sólidos. Nos tubos de descarga, a matéria parece eclipsar-se, transformar-se em corpúsculos. A transmutação dos elementos opera-se na natureza: o rádio torna-se hélio e chumbo. Eis que a Época das Certezas se desmorona. O mundo já não brinca ao jogo da razão! Tudo se torna então possível? De chofre, aqueles que sabem, ou julgam saber, cessam de fazer a divisão entre física e metafísica, coisa verificada e coisa sonhada. Os pilares do Templo fazem-se em nevoeiro, os clérigos de Descartes deliram. Se o princípio de conservação da energia é falso, que impediria o médium de fabricar um ectoplasma a partir de zero? Se as ondas magnéticas atravessam a terra, por que motivo não poderá um pensamento viajar? Se todos os corpos emitem forças invisíveis, por que não um corpo astral? Se há uma quarta dimensão, será ela o domínio dos espíritos?
Madame Curie, Crookes, Lodge fazem mexer as mesas. Edison tenta construir um aparelho que comunique com os mortos. Marconi, em 1901, julga ter captado mensagens dos Marcianos. Simon Newcomb acha absolutamente natural que um médium materialize crustáceos frescos do Pacífico. Uma tempestade de fantástico irreal deita por terra os investigadores de realidades.
Mas os puros, os irredutíveis, tentam repelir essa corrente. A velha guarda do positivismo insurge-se. E, em nome da Verdade, em nome da Realidade, recusa tudo: os raios X e os ectoplasmas, os átomos e o espírito dos mortos, o quarto estado da matéria e os Marcianos.
Assim, entre o fantástico e a realidade vai desenrolar-se um combate muitas vezes absurdo, cego, desordenado, que em breve se fará sentir em todas as formas do pensamento, em todos os domínios: literário, social, filosófico, moral, estético. Mas é na ciência física que a ordem se restabelecerá, não por regressão ou amputações, mas por excesso. É na física que surge uma nova concepção. Devemo-la ao esforço de titãs como Longevin, Perrin, Einstein. Uma nova ciência aparece, menos dogmática que a antiga. Abrem-se portas sobre uma realidade diferente. Como em todo o grande romance, não há no fundo nem bons nem maus e todos os heróis têm razão se a atenção do romancista se tiver colocado numa dimensão complementar onde os destinos se tornam a encontrar, confundindo-se, elevados em conjunto a um grau superior.

In «O Despertar dos Mágicos – Introdução ao Realismo Fantástico», de Louis Pauwels e Jacques Bergier, tradução de Gina de Freitas, Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1980 (11.ª edição).

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