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segunda-feira, 12 de maio de 2014

[Mas ele conhecia as palavras obscuras que davam nome ao que se aproximava], excerto de «A morte em Veneza», de Thomas Mann


Imagem encontrada em http://wikimapia.org/
Nessa mesma noite teve um sonho terrível – mas talvez não se possa designar como um sonho uma experiência física e espiritual, de facto ocorrida durante um sono profundo e com completa autonomia e presença dos sentidos, mas sem que ele se visse como um elemento extrínseco e vagueante dos acontecimentos no espaço, que na verdade tomavam como arena a sua própria alma e se impunham vindos de fora, derrubando despoticamente a sua resistência – uma profunda resistência do espírito – atravessando-o, deixando para trás os despojos devastados e aniquilados da sua existência, da cultura da sua vida.
Começou por ter medo, medo e prazer e uma curiosidade pelo que iria acontecer. Era noite e os seus sentidos estavam alerta; pois de longe aproximava-se um tumulto, um estrondo, um rumor indistinto; gritos, cânticos e trovões abafados, uivos estridentes de júbilo e um bramido muito preciso com um u arrastado – e todos eram penetrados e dominados pela melodia de uma flauta perversamente insistente que lhe enfeitiçava as entranhas. Mas ele conhecia as palavras obscuras que davam nome ao que se aproximava: «O deus estrangeiro!» Descerrou-se a cortina ardente de fumo: reconheceu então montanhas semelhantes às que rodeavam a sua casa de Verão. E sob uma luz rasgada, por entre florestas e troncos e penhascos cobertos de musgo, desmoronaram-se, caíram em remoinho homens, mulheres e animais, uma multidão enraivecida – e as encostas foram inundadas com corpos, chamas, tumulto e uma dança em roda vertiginosa. Tropeçando nas peles de animais que lhes pendiam dos cintos, as mulheres agitavam pandeiretas entre gemidos sobre as cabeças lançadas para trás, brandiam tochas e punhais nus, traziam serpentes sibilantes enroladas no ventre, agarravam entre gritos o peito com as duas mãos. Homens com chifres, os corpos peludos tapados por peles, baixavam as nucas e erguiam os braços e as coxas, faziam ressoar pratos de bronze, batiam timbales furiosos, enquanto rapazes imberbes picavam bodes com ramos engrinaldados, agarrando-os pelos cornos e deixando-se arrastar exultantes pelos seus coices. E os entusiasmados repetiam o chamamento de consoantes suaves com um u final arrastado, doce e selvagem ao mesmo tempo, um som nunca antes ouvido: – mas aqui ressoava ele, lançado ao ar como o bramido de um veado, e era ali ecoado por muitas vozes; em triunfo devastador, espicaçando todos à dança, ao frémito dos corpos, não se calando nunca. Mas o som grave, sedutor, da flauta tudo penetrava e dominava. Não o seduzia a ele também, apesar da sua distância, chamando-o, desavergonhado e premente, para o festim, para o excesso do sacrifício maior? Grande era a sua abominação, grande o medo, ardente a vontade de se proteger do deus estranho e inimigo do espírito digno e contido. Mas o clamor crescia, os uivos replicados pelo eco das montanhas ensurdeciam, intumesciam em demência arrebatadora. A sua consciência era invadida por odores; o cheiro ácido dos bodes, o cheiro dos corpos arfantes, um hálito como o de águas salobras, e um outro ainda, familiar: a feridas e a doença. O seu coração vibrava com os batimentos dos timbales, o seu cérebro gravitava, foi acometido de ira, desvairamento, aturdido pela volúpia, e a sua alma ansiava juntar-se ao cortejo do deus. O símbolo de madeira, obsceno, enorme, foi descoberto e elevado: e todos bramaram, desenfreados, a invocação. Com espuma a correr dos lábios, vociferavam, provocavam-se com gestos lascivos e mãos ávidas, enterravam os punhais na carne e lambiam o sangue dos membros mutilados. Mas no seu sonho estava já com eles, estava neles, um outro súbdito do deus estrangeiro. E estava neles também quando se atiraram aos animais, os rasgaram, os dilaceraram, e quando, sobre o chão musgoso, se sacrificaram ao deus em coito desenfreado. E a sua alma provou a volúpia e o delírio da queda.

In «A morte em Veneza», de Thomas Mann (tradução de Isabel Castro Silva e revisão técnica de Helder Guégués), Colecção «Ficções» (n.º 21), Relógio D’Água Editores, Lisboa, Junho de 2004 (1.ª edição).

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