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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

SAGRES visto por Miguel Torga

Ver http://www.travel-in-portugal.com/photos/img30.htm
Sagres é hoje um ímpeto parado, a seta indicadora dum rumo perdido, real e simbolicamente. Lugar dum sentido histórico perpetuado pela fatalidade da duração natural, rasgão áspero onde a vida não se resigna a renunciar, ali está, retesado num gesto inútil e pertinaz, envolto num burel de cardos, cilícios com que a si próprio se macera.
Pseudópode ousado dum pequeno corpo retraído, o seu destino ideal seria permanecer eternamente fugidio dentro da carne da nação, como uma protuberância rebelde, de vontade indómita e aventureira. Expurgado de vieirismos sebastiânicos, de saudosismos contemplativos e junqueirismos retóricos, podiam partir dele, já não as caravelas impossíveis do passado, mas os veleiros possíveis do presente. Longe da astúcia minhota, da agressividade transmontana, da mesquinhez beiroa e da arrogância alentejana, nenhum outro sítio tão azado para o português iniciar quotidianamente a grande façanha de renovação interior. Mais do que as terras que os do Infante acharam, o que teve importância nacional verdadeira foi o alargamento da consciência de cada mareante, a sua comparticipação no alvoroço renascentista. Não podíamos dar Erasmos, nem Leonardos, nem Luteros, nem Galileu. Mas podíamos dar esforço, energia, heroicidade, ferocidade, curiosidade e obstinação. A hora exigia todas as formas de superação humana. Ao lado do pensamento livre, a arte inconformada; a par da fé discutida, a ciência objectiva. Faltando a qualquer povo a graça desses dons, havia vago ainda o campo vasto da acção, metade do mundo por arrancar das trevas, o Atlântico e o Pacífico inviolados à espera de navegantes. Foi essa verdade que Sagres nos ensinou, imperativamente a apontar o longe…
Obedientes e sem mais delongas, num mergulho de alcatrazes, atirámo-nos então daquela rocha branca ao abismo azul. E descobrimo-nos. Encontrámo-nos universais em toda a parte do globo, mas, sobretudo, dentro da nossa própria perplexidade. Já não éramos apenas da Vidigueira, de Belmonte ou de Vila Real. Éramos daí e também da certeza de que pisávamos um planeta redondo, onde todos os caminhos iam dar à única maravilha que se podia ver claramente vista: o homem e os seus mil recursos de expressão. Chegado o momento, saíam-lhe das mãos, realizadas, as obras que o génio, o meio e as circunstâncias lhe permitiam: teorias, sistemas, invenções, quadros, estátuas, poemas ou continentes.
Eufóricos, porque justificados, vimo-nos por algum tempo legítimos cidadãos do mundo. Humanistas do nosso específico humanismo, até dos defeitos fizemos virtudes. Até nas andanças do espírito, para que estávamos tão mal apetrechados, conseguimos milagres. Os próprios que se perdiam contavam singularmente a perdição. Cada qual arrancava de si o melhor que tinha na inteligência, no instinto e no coração, e trazia-o à tona da consciência ou em sabedoria, ou em beleza, ou em santidade. Foi um apogeu.
Depois, esquecemos a lição. A intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara, expulsou o judeu e o capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos reais do esforço dispendido iriam fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas riquezas do progresso outros valores igualmente cotados na praça da civilização, que teriam agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso interior… Mas não. Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.
Mas a lenga-lenga não enterneceu o pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários. Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inactividade acumulava, e a que bastaria apenas actualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia colectiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.
E deu-se o inevitável: como aquelas realidades que se desconhecem, embora continuamente presentes a nosso lado, assim o teimoso promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto de nós. E as próprias ondas, cansadas de tão estranho absurdo, escavam nas ilhargas do rochedo e minam-lhe os fundamentos. Indignado, o «mar português» quer destruir o pesadelo, ou, pelo menos, transformá-lo numa ilha onde não possam chegar peregrinos da impotência. Quer destruí-lo, ou separá-lo de Portugal.

In «Portugal» (prosa), de Miguel Torga, edição do autor, Coimbra, Dezembro de 1980 (4.ª edição revista).

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