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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

É UMA COISA FECHADA, CHEIA, LISA COMO UM OVO, excerto de «Pauis», de André Gide

André Gide - fotografia retirada de http://beretandboina.blogspot.pt
"Meu pobre amigo, dar-se-á o caso de nunca teres entendido as razões de ser de um poema? a sua natureza? o seu surgimento? Um livro… mas um livro, Hubert, é uma coisa fechada, cheia, lisa como um ovo. Não se pode enfiar lá dentro absolutamente nada, nem sequer um alfinete, a não ser à força, e a sua forma fica então destruída.
– Quer dizer que o teu ovo está cheio? interrogou Hubert.
– Ó meu caro amigo, gritei, os ovos não se enchem: os ovos nascem cheios… Aliás, já assim sucede nos Pauis… e depois acho estúpido dizer que faria melhor em escrever outra coisa… estúpido! ouviste?... outra coisa! em primeiro lugar, para mim até seria óptimo; mas vê se compreendes que aqui também há taludes a marginar, como nos outros sítios; as nossas estradas são forçadas, tal como os nossos trabalhos. Posto-me aqui porque era um espaço vago, sem ninguém; escolho um tema por exaustão, e Pauis porque estou certo de que não aparecerá ninguém sobejamente deserdado para vir trabalhar na minha terra; foi o que tentei exprimir mediante estas palavras: Sou Títiro e solitário. – Li-te isto, mas não atentaste… E, de mais a mais, quantas vezes já te pedi que nunca me falasses de literatura! A propósito – prossegui em jeito de diversão – vais esta noite a casa de Angèle? ela recebe.
– Literatos… Não, respondeu-me ele, não gosto, tu bem sabes, dessas reuniões concorridas onde nada mais se faz a não ser falar; e julgava que também te faziam sufocar a ti.
– É verdade, admiti, mas não quero magoar Angèle; ela convidou-me. De resto, pretendo encontrar-me lá com Amilcar para lhe fazer notar que se sufoca. A sala de Angèle é demasiado pequena para estes serões; procurei dizer-lho; até empregarei a palavra exígua;… depois preciso de falar com Martin.
– Faz como entenderes, disse Hubert, vou andando; adeus.”

In «Pauis», de André Gide (tradução de Gemeniano Cascais Franco), Editorial Seis Filetes, Lda. (Fradique), Paio Pires (Setúbal), Setembro de 2002 (1.ª edição portuguesa).

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