Páginas

domingo, 3 de janeiro de 2021

As ruas de Combray evocadas por Marcel Proust


    […] Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do comboio quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela às distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno da sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora às suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha num quadro de primitivos. Para morar, Combray era um pouco triste, como eram tristes as suas ruas, cujas casas, edificadas com as pedras escuras da região, precedidas de degraus exteriores e com seus telhados de beirais salientes que faziam sombra, eram tão escuras que, mal começava a declinar o dia, já era preciso erguer as cortinas nas «salas»; ruas de graves nomes de santos (vários dos quais se ligavam à história dos primeiros senhores de Combray), Rua de Santo Hilário, Rua de S. Tiago, onde ficava a casa de minha tia, Rua de Santa Hildegarda, para onde davam as grades, e Rua do Espírito Santo, para onde se abria o portãozinho lateral do seu jardim; e essas ruas de Combray existem num local tão recôndito da minha memória, pintado a cores tão diferentes das que revestem agora para mim o mundo, que na verdade me parecem todas, bem como a igreja que as dominava na praça, ainda mais irreais que as projecções da lanterna mágica; e em certos momentos parece-me que poder atravessar ainda a Rua de Santo Hilário, poder alugar um quarto na Rua do Pássaro – a velha hospedaria do Pássaro Ferido, de cujos respiradouros saía um cheiro de cozinha que, intermitente e cálido, ainda sobe por momentos na minha memória – seria entrar em contacto com o Além de um modo mais maravilhosamente sobrenatural do que se me fosse dado conhecer Golo e conversar com Genoveva de Brabante.
    A prima de meu avô – minha tia-avó –, em cuja casa habitávamos, era mãe dessa tia Leónia que desde a morte do marido, meu tio Octávio, não quisera abandonar, primeiro Combray, depois, em Combray, a sua casa, depois o seu quarto, depois o seu leito e que não «descia» nunca, sempre deitada, num estado incerto de pesar, de debilidade física, de doença, de ideia fixa e de devoção. O seu apartamento particular dava para a Rua de S. Tiago, que findava muito além, no Prado Grande (por oposição ao Prado Pequeno, verdejante no meio da cidade, entre três ruas) e que, uniforme e pardacenta, com os três altos degraus de pedra diante de quase todas as portas, parecia um desfiladeiro talhado por um imagista medieval na mesma pedra em que houvesse esculpido um presépio ou um calvário. Minha tia, na verdade, não habitava mais que duas salas contíguas, passando de tarde para uma, enquanto arejavam a outra. Eram desses quartos de província que – da mesma forma que em certas regiões há partes inteiras do ar e do mar iluminadas ou perfumadas por miríades de protozoários que nós não vemos, – nos encantam com os mil odores que neles exalam as virtudes, a prudência, os hábitos, toda uma vida secreta, invisível, superabundante e moral que a atmosfera ali mantém em suspensão; odores naturais, sim, e cor da natureza como os dos campos próximos, mas já caseiros, humanos e confinados, a fina geleia industriosa e límpida de todos os frutos do ano que deixaram o pomar pelo armário; odores provenientes das estações, mas mobiliários e domésticos, a corrigir o picante da escarcha com a doçura do pão quente, ociosos e pontuais como um relógio de aldeia, vagabundos e ordeiros, descuidosos e previdentes, roupeiros, madrugadores devotos, felizes de uma paz que só nos traz mais ansiedade e de um prosaísmo que é um grande reservatório de poesia para aquele que a atravessa sem ter vivido no seio dela. O ar estava saturado da fina flor de um silêncio tão nutritivo, tão suculento, que eu só me aventurava por ali com uma espécie de gula, principalmente naquelas manhãs ainda frias da semana da Páscoa, em que melhor o saboreava porque mal acabara de chegar a Combray; antes que entrasse para cumprimentar minha tia, faziam-me esperar um instante na primeira sala, onde o sol, ainda invernoso, viera aquecer-se diante do fogo, já aceso entre os dois ladrilhos, e que saturava toda a sala de um cheiro de fuligem, tornando-a como uma dessas grandes «bocas de forno» do campo, ou desses panos de chaminé de castelos, a cujo abrigo nos vem o desejo de que rebente lá fora a chuva, a neve, até mesmo alguma catástrofe diluviana para acrescentar ao conforto da reclusão a poesia do Inverno; eu dava alguns passos, do genuflexório até às poltronas de espesso veludo, sempre revestidas de cabeceiras de croché; e o fogo, que cozinhava como se fosse uma massa os apetitosos cheiros de que se achava coalhado o ar do quarto e que já tinham sido trabalhados e «levantados» pela frescura húmida e ensolarada da manhã, folhava-os, dourava-os, enrugava-os, tufava-os, fazendo deles um invisível e palpável bolo provinciano, uma imensa torta, na qual, depois de ligeiramente saboreados os aromas mais estalantes, mais finos, mais respeitáveis, mas também mais secos, do armário, da cómoda, do papel de ramagem, eu voltava sempre, com inconfessada cobiça, a envisgar-me no odor medíocre, pegajoso, insípido, indigesto e enjoativo da colcha de flores.

    
No quarto próximo, ouvia minha tia falar sozinha a meia voz. Sempre falava muito baixo, porque supunha ter dentro da cabeça alguma coisa de quebrado e flutuante, que ele poderia deslocar se falasse muito forte, mas nunca permanecia muito tempo, mesmo sozinha, sem dizer alguma coisa, porque julgava que isso era bom para a garganta e, impedindo que o sangue ali parasse, tornaria menos frequentes as sufocações e angústias de que sofria; e depois, na inércia absoluta em que vivia, emprestava às suas mínimas sensações uma importância extraordinária; dotava-as de tal motilidade que lhe era difícil guardá-las para si e, na falta de confidente a quem comunicá-las, anunciava-as a si mesma, num perpétuo monólogo que era a sua única forma de actividade. Infelizmente, tendo adquirido o hábito de pensar em voz alta, nem sempre reparava se havia alguém no quarto próximo, e muitas vezes eu a ouvia dizer a si mesma: «Tenho de me lembrar de que não dormi» (pois nunca dormir era a sua grande pretensão, pretensão de que a nossa linguagem guardava as marcas e o respeito: pela manhã, Francisca não ia «acordá-la», mas «entrava» no seu quarto; quando minha tia desejava fazer uma sesta, diziam que ela queria «reflectir» ou «repousar»; e quando lhe sucedia descuidar-se na conversa a ponto de dizer: «o que me despertou» ou «sonhei que…», ficava vermelha e corrigia-se em seguida). […]

................................

Ilustração sobre Combray da autoria de Stéphane Heuet, 1998.

[Excerto do primeiro volume da obra «Em Busca do Tempo Perdido» («I – No Caminho de Swann», com tradução de Mário Quintana), de Marcel Proust]

Sem comentários:

Enviar um comentário