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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dia para recordar Matilde Rosa Araújo

(20/6/1921 - 6/7/2010)


Quais as personagens de que se sentiu mais próxima?
Talvez o Joaquim n’ O Sol e o Menino dos Pés Frios [Livros Horizonte, 2001], um rapazinho que conheci na praia do Campelo, muito pobre, que ia para a praia vender moinhos.
Punha uma cana de moinhos, daqueles de papel de lustro, enterrada na areia e conversava comigo; um rapaz que era uma alegria. Depois, íamos tomar banho. Ele era pequenino, tinha oito anos nessa altura. Foram dois anos seguidos. Lá aparecia o Joaquim... Está aqui o retrato dele, por acaso. E o Joaquim dizia que os pais andavam de feira em feira, e que ele dormia à beira da estrada, numa taberna, num estabelecimento qualquer que o acolhia… Eu fiquei com a morada do Joaquim, ajudei no pouco que podia, porque era uma criança com uma alegria, ensinava tanto no seu ser de criança, era maravilhoso! A alegria com que ele rompia a água do mar; o mar e a criança, era lindo… O Joaquim escreveu-me ainda umas cartinhas muito de menino e depois deixou de escrever. Passado muito tempo, muitos anos, eu pensava «O que será feito do Joaquim?», até que se aproximou o tempo em que ele já podia ir para a guerra. «Teria ido para a guerra?», pensava, «coitado do Joaquim…» Um dia, passados já anos, vinha eu do magistério primário, da escola, o meu pai estava em casa, já doente, e disse-me: «Olha que quem veio bater à porta à tua procura foi o Joaquim.» O Joaquim! Tinham passado tantos anos, e era realmente o Joaquim. «Mas diz que não te encontrou, andou a rua toda – e esta rua nunca mais tem fim – e que não te encontrou. Até que, enfim, bateu aqui à porta, onde havia uma Matilde – naquele tempo havia poucas Matildes, era nome de velha – e depois ele disse que voltava cá.» E passados uns dias, voltou. O Joaquim estava doente de guerra, aqui no estabelecimento da Artilharia 1, onde acolhiam aqueles que tinham sobretudo problemas psíquicos e de pulmões, consequência triste de um tempo anormal... O Joaquim ficou numa alegria muito grande, e eu numa alegria muito grande por o ver, foi tão bom!
Contou-me a sua vida: «Eu dizia à senhora que os meus pais andavam de terra em terra, mas os meus pais estavam presos; os meus pais não eram pessoas sérias, roubavam e eu não dizia à senhora até com medo que depois me deixasse de falar», e eu disse «Oh homem, eu nunca deixaria de te falar»; «Não?» Compreendi perfeitamente, coitado, o receio e até o pudor de falar dos seus pais nessas circunstâncias. «Hoje o meu pai já morreu e eu tenho em casa a minha mãe, a minha querida mãe, e ainda bem que encontro a senhora, porque os meus pais, com medo que a senhora viesse a saber o que eles eram,
esconderam-me a morada da senhora e eu nunca mais soube de si.» O Joaquim estava doente, queria emigrar e eu disse: «Oh Joaquim, não vais emigrar…» – já estava casado, tinha um filho. Estava muito débil ainda, mas foi um bem ter reencontrado o Joaquim.
Depois, apagou-se de novo na memória – na memória não, na convivência... Há tempos fui a uma escola no Porto, e tinha vindo no jornal que eu ia lá. Estava longe de imaginar o que ia acontecer quando subi os degraus da escola: estava o Joaquim, um homem forte já amadurecido, com um grande ramo de flores para mim; trabalhava bem e tinha a sua mulher, os seus filhos – estava um homem feliz. Talvez a palavra «resgatado» (ele próprio se resgatou da vida) seja um bocado dura, mas foi isso mesmo. Também eu fiquei feliz e comovida. Aí está o Joaquim d’ O Sol e o Menino dos Pés Frios, e o Joaquim que aparece a dar uma flor ao palhaço que está triste na história d’ O Palhaço Verde [Livros Horizonte, 2002]. O Joaquim é um elo da infância que traz paz e esperança.
Consultar: http://www.casadaleitura.org/portalbeta/bo/documentos/vo_matilde_b.pdf

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