Mário Cláudio – Foto
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Se soubesse ele naquela
manhã de fins de Julho que o nobre ingresso do Museu haveria de ocupar na sua
mitologia privada lugar idêntico ao que na mitologia do Mundo preenchiam a
escada angélica de Jacob e a corda apaixonada de Romeu e Julieta, se tanto soubesse
ele, é duvidoso que a galgasse de diferente maneira. Do plano térreo que
correspondia ao da entrada principal até ao andar onde se poderiam alcançar as
obras do seu pintor não mediaria mais do que uma quarentena de degraus, capazes
de todavia lhe alterar por completo o rumo da existência, e muito especialmente
o modo de a encarar. E o dito espaço vencê-lo-ia ele a pé, ou porque outra
estratégia não lhe ocorresse, ou porque se achasse fora de serviço o elevador,
ou porque simplesmente lhe houvesse apetecido, o que traria como efeito que, ao
chegar ao destino, lhe batesse o seu tanto o coração, e ao lançar os olhos pela
área das suas reflexões, se lhe afigurasse que nunca mais haveria ele de parar.
À sua frente, e num caos de linhas que se entrecruzavam e se desfaziam,
mesclavam-se as cores dos quadros expostos, um rosto interrogativo, o aceno de
um arvoredo, o derrube da bandeira de uma batalha, e nada pertencia a nada, e
tudo aquilo que ele mentalmente fora lhe parecia ter chegado sem remissão ao
termo. Era no pavor infrene que se debatia como um mar imenso, destituído de
tábua de salvação, entregue ao furor que não lograva identificar senão como a
catástrofe final do Universo criado. E moviam-lhe à roda, e sem que disso
tomasse consciência plena, difusas formas de outras criaturas, semelhantes à
que havia sido, mas tão enquadráveis ainda no Mundo, e no seu caixilho de
valores rotuláveis, que não davam conta do que ali, e na pessoa daquele
visitante, a morte inexoravelmente se implantara. Acabava de sofrer o primeiro
ataque de pânico, de uma sinistra procissão de centenas de outros que ao longo
dos anos se repetiriam, confundindo os clínicos gerais, inábeis para lidar com
o fenómeno, imputando-o à hipocondria, criptotetania, a uma variante de
epilepsia, ou a uma pitada de esquizofrenia, e incitando os psiquiatras a
projectar uma boa dose de sessões de divã. Embrulhada em tal pacote, o dos
acessos paroxísticos, vinha a caterva das habituais manifestações morbosas, a
taquicardia e a dispneia, a moleza das pernas e os espasmos do estômago, o frio
das mãos e o suor da testa, os desarranjos digestivos e a secura de boca, as
tonturas, as constrições, as cãibras, e o medo, sobretudo o medo, o medo, o
medo.
In
«Gémeos» (romance), de Mário Cláudio, Colecção «Autores de Língua Portuguesa», Publicações
Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 2004 (2.ª edição).
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