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sábado, 29 de dezembro de 2012

LIVROS E PAPÉIS PARA CONSTANTINOPLA, excerto do livro «O pátio maldito» (Prokleta Avlija), de Ivo Andrić

Fotografia retirada de http://www.ivoandric.org.rs/html/andric_e.html
(…) Uma noite, os guardas cercaram e revistaram a casa de Kâmil. Apreenderam todos os livros e manuscritos e fizeram-no prisioneiro na sua própria casa.
Quando o alcaide viu a enorme pilha de livros, ainda por cima em várias línguas estrangeiras, os inúmeros manuscritos e notas, deixou-se possuir de tanto horror e cólera que decidiu, sob sua própria responsabilidade, prender o proprietário e mandá-lo com os seus livros e papéis para Constantinopla. Nem a si mesmo conseguia explicar por que razão os livros, especialmente os estrangeiros, e em tão grande número, suscitaram nele tão grande ódio e raiva. Mas esse ódio e raiva não tinham necessidade de explicação, amparavam-se e cresciam a par e passo. O governador estava convencido de que não se enganara e de que desferira um golpe certeiro.
A notícia da prisão do filho de Tahir-Paxá, inquietou muita gente importante, sobretudo entre o pessoal da justiça. O próprio juiz-mor, homem culto, idoso, amigo de Tahir-Paxá, foi falar pessoalmente com o alcaide. Expôs-lhe todo o caso, isto é, explicou-lhe que o rapaz era sem mácula, que pela sua vida podia servir de exemplo de bom rapaz e de verdadeiro muçulmano, que caíra numa espécie de melancolia e de exaltação em consequência de amores infelizes, que se dedicava inteiramente à ciência e aos livros, e que se talvez tivesse nisso exagerado, devia considerar-se isto antes uma doença do que uma acção perniciosa e mal intencionada, e que ele merecia atenção e piedade e não perseguição e castigo. Este caso era, com toda a clareza, um grande equívoco. Do que Kâmil se ocupava era a história, a ciência, e a ciência não faz mal a ninguém. Mas todos estes argumentos anulavam-se contra a teimosia e a desconfiança do burocrata.
– Não quero, meu Senhor, cansar a cabeça com esse caso. Eu da História ou seja lá o que for, não conheço. Cá pr’a mim, era melhor que ele também não a conhecesse nem procurasse conhecer o que faziam os Sultões de antigamente, mas sim que obedecesse ao que o Sultão de hoje manda.
– Mas é a ciência, são os livros! – interrompeu-o, desesperado, o juiz, que por experiência sabia quão nocivas e perigosas para a sociedade e para o indivíduo podem ser as pessoas tacanhas, que, por serem limitadas, acreditam infinitamente na sua inteligência, na sua perspicácia e no acerto de todos os seus julgamentos e de todas as suas conclusões.
– Pois, são os livros que lhe fazem mal! O Djem-Sultão! O pretendente! A luta pelo trono! A palavra foi dita, e uma vez dita nunca mais pára, mas vai para a frente e, andando, cresce e transforma-se. Não fui eu quem disse o que foi dito, mas ele; e ele que responda por isso.
– Ora, muitas vezes imputam às pessoas o que nunca aconteceu! – tenta o juiz, novamente, defender o jovem.
– Se foi acusado injustamente e caluniado que se lave e será limpo. Quanto a mim, eu livros não leio nem quero pensar pelos outros. Cada qual que pense por si. Sou eu que tenho de me preocupar por causa dele? Onde mando eu, cada um tem de prestar atenção ao que diz e ao que faz. Eu só conheço uma coisa: a ordem e a lei.
O juiz levantou a cabeça e olhou-o severamente e com um ar reprovador.
– A mim parece-me que é isso que todos nós defendemos.
Mas o homem possesso já se não deixava nem intimidar nem parar.
– Sim senhor, a ordem e a lei! E por minha fé, por minha dedicação ao Sultão, se alguma cabeça sair por cima disso, eu corto-a, nem que seja a do meu único filho! Sobre isto não admito a mínima falta, nem que seja essa erudição suspeita do tal jovem senhor.
– Este caso podia ser esclarecido e decidido aqui mesmo.
– Não senhor. Lei é lei, e essa não manda que o procedimento seja esse, mas sim como eu mandei fazer. Falou dos Sultões e dos negócios imperiais, pois que responda por suas palavras perante o Imperador. E para isso há Istambul, é lá que deve explicar o que leu, o que escreveu e o que andou a dizer por aí. E os de lá que resolvam isso. Se for inocente, nada tem a temer. (…)

In «O pátio maldito» (Prokleta Avlija), de Ivo Andrić (tradução do servo-croata de Lúcia e Dejan Stanković), Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, Maio de 2003 (1.ª edição).

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

NÚMERO ANTIGO DUM JORNAL, excerto do conto «Zaqueu e “Polly”, o cozinheiro», de Knut Hamsun

Knut Hamsun - fotografia retirada de revistafinismundi.blogspot.com
(…) O sol implacável flameja a 40 graus centígrados; céu e terra vibram neste ar abrasado que nenhum verdadeiro sopro de vento acode a refrigerar. O Sol parece um brejo de fogo.
Tudo é calmo em volta das edificações; somente vem do grande barracão de madeira, que serve de cozinha e refeitório, um zunzum de vozes e movimentos apressados: o dos três cozinheiros trabalhando na maior azáfama. Queimam erva em enormes fornos e o fumo sai em espirais da chaminé, de envolta com chamazinhas e faúlhas. Os alimentos assim preparados são metidos em tachões de zinco e estes postos sobre carroças, atrelam-se em seguida os burros, e por fim lá vão os três homens pela pradaria fora com as suas vitualhas.
O cozinheiro é um Irlandês, homenzinho atarracado, dos seus quarenta anos, cabelo grisalho e porte militar. Anda meio desnudo; a grande camisa aberta à frente patenteia-lhe o tórax, amplo como mó de moinho. Todos ali o tratam por Polly, por causa do seu rosto, que se assemelha à cabeça de um papagaio.
Polly foi outrora soldado, num dos fortes lá para o Sul; tem o culto das Belas-Letras e sabe ler. Eis o motivo por que conserva consigo uma compilação de canções e também um número antigo dum jornal. Estes tesouros, ninguém mais tem o direito de lhes tocar; guarda-os numa prateleira da cozinha, para os ter sempre à mão durante as horas de ócio; e compulsa-os com assiduidade.
Ora o Zaqueu, seu lastimável compatriota, que é muito curto de vista e usa óculos, apoderou-se um dia do dito jornal. Não vão oferecer ao Zaqueu qualquer livro comum, onde os minúsculos caracteres se baralhariam, inextricáveis, sob o seu olhar; em compensação, experimenta verdadeiro prazer em ter na mão o jornal do cozinheiro para ir lendo, de seu vagar, as belas maiúsculas dos anúncios. Mas o cozinheiro, tendo dado imediatamente pelo roubo do seu tesouro, foi direito ao Zaqueu, que lia estendido sobre o grabato, e apreendeu-lhe com ímpeto o que era propriedade sua. Travou-se então entre os dois homens uma briga veemente e insultuosa. (…)

In «Zaqueu e “Polly”, o cozinheiro», livro de contos de Knut Hamsun (tradução de César de Frias), colecção «Mosaico – Pequena antologia de obras-primas» (n.º 14), com direcção literária de Manuel do Nascimento, Fomento de Publicações, L.da, Lisboa, s/d.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

"A FELICIDADE É UM DEVER", excerto de um livro do húngaro Imre Kertész

Imre Kertész - Prémio Nobel da Literatura 2002 
(fotografia retirada de http://literalab.com)
(…) Vive como se cada um dos teus passos fosse abençoado. Também podes viver como um maldito. Mas, então, serás maldito. Por outro lado, aconteça o que acontecer, o facto de teres podido viver e trabalhar foi, de qualquer modo, uma bênção; e foi uma bênção, porque, no teu passado maldito, também foste capaz de te aperceber das grandes oportunidades da vida.
Se é verdade, como diz Camus, que a felicidade é um dever, então, esta verdade só fará inteiro sentido se concluirmos de modo claro em relação a quem é um dever: nós mesmos, os nossos companheiros, Deus, por hipótese?
Fica por definir a qualidade da felicidade. Se a tua ocupação – não, deixemo-nos de subentendidos –, se a paixão da tua vida te leva a definir a condição humana, deves abrir o coração à miséria total que reside neste estado; mas não podes ficar indiferente ao movimento do teu lápis, à alegria da chamada criação. És um mentiroso, então? Naturalmente; mas em qualquer grande aventura, aqui, vigora a ordem: deves oferecer-te a ti mesmo, para que comam a tua carne, bebam o teu sangue… O pior dos fins é uma espécie de desarranjo banal, ordinário: ele tudo desmente. Não sair das luzes da festa – oh, o horror do aborrecimento: o aborrecimento é um crime.
Se a tua existência não é inacreditável, então, não vale a pena falar dela. (…)

In «Um outro – Crónica de uma metamorfose», de Imre Kertész (com tradução do húngaro de Ernesto Rodrigues), colecção «Grandes Narrativas» (n.º 434), Editorial Presença, Lisboa, Junho de 2009 (1.ª edição).

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

BOAS FESTAS! E poema «Natal», de Miguel Torga

A editora Mar da Palavra deseja – a todos os amigos, autores e leitores (incluindo professores e alunos, escolas, bibliotecas e bibliotecários), colaboradores e livreiros, jornalistas e representantes de órgãos da Comunicação Social – umas BOAS FESTAS e um novo ano que corresponda, no mínimo, às expectativas individuais e colectivas.






NATAL

Velho Menino-Deus que me vens ver

Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo, e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...

Agora, outras quimeras me tentaram

Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...

Vem, apesar de tudo, se queres vir.

Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...

Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.

O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...

Coimbra, 24 de Dezembro de 1942, in «Diário II» (quarta edição), de Miguel Torga

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

«Aqui estou eu, portanto», poema de Odysséas Elytis

                AQUI ESTOU eu, portanto,
o criado para as pequenas Kóres e as ilhas do Egeu;
                o amante das cabriolas dos cabritos,
o iniciado das folhas da oliveira;
                o bebe-sol e mata-gafanhotos.
Eis-me aqui frente
                ao negro vestido dos fanáticos
e à irritação do ventre vazio dos anos
    que abortou os seus filhos!
O vento desata os elementos e o trovão assalta os montes.
    Destino dos inocentes, eis-te de novo só, tu, nos Estreitos!
Nos Estreitos abri as mãos.
    Nos Estreitos esvaziei as mãos
e não vi outra riqueza nem ouvi outra riqueza
    que o correr das frias fontes.
Romãs ou Zéfiros ou Beijos.
                «Cada um com as suas armas», disse:
Nos Estreitos abrirei as minhas romãs.
                Nos Estreitos porei de sentinela os zéfiros,
libertarei os antigos beijos que o meu desejo santificou!
                O vento desata os elementos e o trovão assalta os montes.
Destino dos inocentes, és o meu próprio Destino!

In «Louvada seja (Áxion estí)», de Odysséas Elytis (com tradução e posfácio de Manuel Resende), colecção «Documenta Poetica», Assírio & Alvim, Lisboa, Março de 2004 (1.ª edição).

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

«Cavalo e cavaleiro», poema de Harry Martinson

Foto de Harry Martinson retirada de http://sverigesradio.se














Centenas de gerações
tornaram nobre o cavalo árabe
ao serviço de muitos príncipes
                                                [degenerescentes.
Por vezes também as caudas que se agitaram
                                              [por esses déspotas
acabaram por lançá-los no precipício,
enquanto o árabe que carregava o tirano
retesava os cascos no solo e estacava
à borda do abismo.

Assim são os cavalos e outros animais nobres.
Por isso Goya e outros grandes artistas
nos seus retratos de cavaleiros, maior atenção
consagraram ao cavalo
que ao pouco importante ocasional
                                                         [cavalgador,

fosse ele um grosseirão, ou um refinado,
um principiante da sela
ou um veterano dela.

O sonho de reunir com segurança cavaleiro
                                                               [e cavalo
acabou por tornar-se centauro,
cavaleiro que é sua própria montada.

Esse do cavaleiro o desejo sonhado
de não ser nunca derrubado.
                                                                       (Passad, 1945)
                                                                                                             
In «Comboio camuflado», de Harry Martinson (com prefácio, selecção e tradução do sueco por Silva Duarte), 
Colecção Poesia Século XX (n.º4), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 1974 (1.ª edição).

Retirado de http://www.arabiantreasuregroup.com.br

sábado, 1 de dezembro de 2012

A VIDA PRECISA DE FIXAR-SE E DE MOVER-SE

Foto de Luigi Pirandello retirada de http://traduzirfantasmas.wordpress.com
















(…)
Parece-vos, minhas senhoras e meus senhores, que ainda pode haver vida no que já não mexe? Naquilo que descansa na sua perfeita quietude?
A vida deve obedecer a duas necessidades que, porque são opostas, não lhe permitem nem fixar-se definitivamente nem continuar sempre a mover-se. Se a vida sempre se movesse, nunca mais se fixaria; e se, ao contrário, se fixasse, nunca mais se moveria. E a vida precisa de fixar-se e de mover-se.
O poeta ilude-se a si próprio quando julga ter encontrado a libertação e ter conseguido a quietude fixando para sempre numa forma imutável a sua obra de arte. Acabou simplesmente de viver esta sua obra. A libertação e a quietude não se atingem sem que se tenha deixado de viver.
E todos os que as encontraram e conseguiram atingir estão nesta miserável ilusão de se crerem ainda vivos, quando na verdade estão de tal modo mortos que já não sentem o fedor do seu cadáver.
Se uma obra de arte sobrevive é só porque ainda a podemos arrancar à fixidez da sua forma, porque podemos acolher essa sua forma dentro de nós num movimento vital; e a vida somos nós que lha damos então; diferente de tempo para tempo, e variando de um para outro de nós; muitas vidas e não uma só; como se pode inferir das contínuas discussões que se sucedem e que nascem do facto de não se querer acreditar neste ponto: que não somos nós que lhe damos esta vida; e que não é de facto possível que a vida que eu lhe dou seja igual à que lhe dá outro. Peço que me desculpem, minhas senhoras e meus senhores, por esta longa excursão que me vi obrigado a fazer para chegar a este ponto, àquilo a que queria chegar.
Podem-me perguntar:
«Mas quem foi que lhe disse que a arte devia ser vida? É verdade que a vida tem de obedecer às duas necessidades opostas que o senhor diz, mas por isso mesmo não é arte; tal como a arte não é vida porque consegue precisamente libertar-se dessas necessidades opostas e consiste na eterna imutabilidade da sua forma. E é por isso mesmo que a arte é o reino da criação conseguida, enquanto que a vida está como deve estar, numa infinitamente variada e constante formação. Cada um de nós procura criar-se a si próprio e criar a sua própria vida com as mesmas faculdades do espírito com que o poeta faz a sua obra de arte. E são de facto aqueles que mais são dotados destas faculdades e que melhor as sabem utilizar que conseguem atingir um estádio mais elevado e dar-lhe uma consistência mais durável. Mas não será nunca uma verdadeira criação, antes de tudo o mais porque se destina a deteriorar-se e a acabar connosco no tempo; depois porque, ao tender para um fim, nunca poderá vir a ser livre; e finalmente porque, ao estar exposta a todos os acasos imprevistos e imprevisíveis, a todos os obstáculos que os outros lhe opõem, corre continuamente o risco de ser contrariada, desviada, deformada. A arte vinga de certa maneira a vida porque a sua criação é autêntica enquanto liberta do tempo, dos acasos e dos obstáculos, e não tem outro fim a não ser ela própria.»
Pois, minhas senhoras e meus senhores, eu respondo que sim, que é verdade.
E até vos digo que cheguei a pensar muitas vezes com sentimentos angustiosos, senão de pavor, na eternidade de uma obra de arte como numa inacessível e divina solidão da qual até o poeta é excluído no momento em que acaba de criar; ele, um mortal, excluído desta imortalidade.
Tremenda é a estátua na imobilidade da sua atitude.
Tremenda é esta eterna solidão das formas imutáveis, longe do tempo.
Qualquer escultor – eu não o sou mas posso imaginar – depois de ter criado uma estátua, se verdadeiramente acredita ter-lhe dado vida para sempre, deve desejar que ela, como coisa viva, se possa soltar da sua fixidez e se possa mover e falar.
Deixaria de ser estátua e tornar-se-ia em pessoa viva. Mas só com esta condição, minhas senhoras e meus senhores, se pode traduzir em vida e voltar a mover-se aquilo que a arte fixou na imobilidade de uma forma; só com a condição de esta forma receber de nós o movimento, uma vida variada, diferente e momentânea: aquela que cada um de nós for capaz de lhe dar.
Hoje deixam-se voluntariamente as obras de arte na sua divina solidão intemporal. Os espectadores, depois de um dia de pesadas preocupações e de actividade intensa, angústias e trabalhos de todo o género querem, à noite, divertir-se no teatro. (…)

In «Esta noite improvisa-se» (do original Questa sera si recita a soggetto), de Luigi Pirandello, Editorial Estampa, Lisboa, Janeiro de 1998 (2.ª edição).
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Trechos da personagem Chanteause / A Cantora, vivida pela actriz Gabriela Smith, na peça "Esta noite se improvisa" (Rio de Janeiro, com direcção David Herman - autor Luigi Pirandello):

http://www.youtube.com/watch?v=LBbwdwl5SrQ