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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

[Não tem descanso Guilhermina, na imobilidade em que procura casar-se com a suite de Bach], escreve Mário Cláudio


Uma certa fase lembraremos, em que a natureza se lhe debate na tormentosa exigência de se acertar. À sua semelhança padece o pintor Augustus John, no vastíssimo atelier de Mallord Street, do cavalete se aproximando e se distraindo, na espécie de broto de camélia em que a boca comprime na avaliação do modelo. Não tem descanso Guilhermina, na imobilidade em que procura casar-se com a suite de Bach, que vai executando sem fim. E um vacilante compromisso celebra com a imagem de si, que a todo o instante ameaça estilhaçar-se, no que pouco a auxilia o homem que a retrata. A cada passo, parece ele saído de uma moita de heras, dando-lhe ordens e ordens de se calar, o botão manobrando da telefonia, que ejacula o noticiário ou um shimmy sincopado. Ao arbítrio do pincel irá definindo a violoncelista, sem que em absoluto a possua, na tenacidade com que o trabalho reapura que já deu por findo. Fica a via, defronte do atelier, congestionada de Chevrolets, puxando os freios num guincho dilacerado, despejando essas mulheres que à volta do artista se entrechocam, na espera de um filho ou de um madrigal. Logo a violoncelista catalogam como mais uma amante, que ele umas vezes recebe com a afirmação de ser a mais bela, outras a mais feia criatura deste mundo. Despedem-se os valdevinos, abandonando um campo de destroços onde um cálice voga quebrado, uma tarte de damascos meio consumida. Passa John, enfim, numa dança de pontas, em busca de outrem que não a ibérica de imponente violoncelo, clamando a fêmea que o salve, essa a que o real não recuse aderir.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote). 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

[Voa-lhe a alma, por vezes, a outra cidade, a esse Porto de vinte e cinco], excerto de «Guilhermina», romance biográfico de Mário Cláudio

Porto – Fotografia encontrada http://arquitectura.ufp.pt/
A primeira inclinação será, de quem por fim a si próprio se adapta, no sentido de reconstituir os lugares de menino. Assim se vai passar com a longínqua Guilhermina, quando os empresários em propostas se sucedem já, de entrevistas gastronómicas para os lados de Covent Garden. Voa-lhe a alma, por vezes, a outra cidade, a esse Porto de vinte e cinco, com os aquartelamentos em polvorosa, o aeróstato que sobre a turba se desloca, as mercearias que para o passeio rebentam seu stock de tachos e vassourame, de sacos de vária qualidade de grão. Aí duram os pais, desavindos sempre, Augusto que anda tocando por aqui e por além, Elisa que as etapas segue da filha, enquanto alguns conselhos respiga de um almanaque ensebado. Numa casa da Rua da Alegria irá a violoncelista reuni-los, um pouco sorrindo da unção patrística, apanágio dos pândegos como o papá, que admoesta ser já altura «de pensarem com tino e se convencerem de que não há coisa melhor do que a boa harmonia da família, por causa dos remorsos que mais tarde mortificam bastante». Num dislate contínuo é que a tribo sobrevive, com o duo recomposto, Felisbela, a filha natural, as sonsas criadas que a acção e o verbo dos amos não deixam de policiar. E um inferno, amistoso quase, se encena, com silêncios que entremeiam os ágapes de bacalhau, furtos inexplicáveis, gritadas trocas de satisfações. Ora é o espaço privativo que se invade, ora Glória, a de dentro, que com o faunesco patrão um entendimento mantém inadmissível. Desaparecem os bolos e o colarzinho da boneca, um rumor de tempestade no tecto sobrenada de tudo isso. Será Elisa a mais sensível, excelente relatora de quanto vai sucedendo, a Guilhermina dando parte epistolar, com um que outro remoque contra FB, que assim denomina a bastarda intrusa. Conserva-se esta, aliás, bem de fora das peripécias, dormitando pesadona e de luzes acesas, apressada saindo para esse sítio onde, violoncelista ainda, o repasto acompanha de meia dúzia de macambúzios, que uma banana descascam com detida precaução. A Queen Annes’s Gate chegam as novas, sem vírgulas, à fada-madrinha de todos, meu bijou, meu encanto, na emulação em que os pais entre si a disputam. E a dadivosa Guil, que as despesas paga em troca só de algum desvelo, quando a ciática lhe dá ou um gerente ignora a fila onde ordenara lhe reservasse três lugares, quase nunca se lastima. Consulta a irmã, amoravelmente casada no Quai de Bourbon, torna à pauta sobre a estante, com a habitação do Porto e os moradores acondicionados num recanto de seu afecto.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote). 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

[São ‘As Aves’, de Aristófanes], excerto de «Guilhermina», romance de Mário Cláudio

Imagem encontrada em poesiaemsi.blogspot.com






















«Ó vós, fracos humanos, semelhantes às folhas leves, aos sonhos vãos, vós cujo corpo feito de lodo, sombra fugidia, ignora a protecção de uma plumagem delicada, escutai as Aves, raça imortal, eterna, sempre jovem, vizinha do céu, que nada de mortal nem de baixo concebe. A natureza vos diremos dos ventos, dos trovões, das geadas, a história do Mundo vos narraremos, tudo o que se pode saber vos ensinaremos. E abandonareis, então, a filosofia. No começo, o Caos, a Noite, e Érebo e o Tártaro ocupavam o Universo, até que a Noite de sombrias asas deu à luz um ovo delicado, o Érebo em seu seio o recebeu, dele nasceu o Amor. Com suas asas de oiro brilhante, a escuridão furou da Noite, ao alado Caos se uniu para dar ao Mundo a raça das Aves. Antes de o Amor unir todos os seres, nem Olimpo nem Céu havia, pois. De tais uniões saíram o Céu e o Oceano, a Terra e os Deuses. Assim, terão os mortais de nos ceder o direito de primogenitura. Do Amor é que nascemos.» São As Aves, de Aristófanes. Delas, de seu conclave, ninguém melhor do que o Ateniense poderia discursar pelos lábios de Guilhermina. E em seu voo contínuo, segundo a segundo mais alto, de asas também me rompendo os flancos. Extenua-se Álvaro em seu trato com a terra, enquanto os membros mexemos por sobre continentes e oceanos, babas do império do homem. Está de momento sozinha, no diminuto camarim do Teatro Principal de Valência, com as lutuosas aigrettes que lhe tombam na testa, um pouco fremindo em suas charadas. E de súbito a descortina, imóvel entre os espelhos, como sempre vinda inesperadamente. Ao bafo de fora, anda desvairado um novelo de serrim e ervas secas, pelo pavimento dos bastidores. De órbitas que parecem nada ver, impiedosa a defronta a que chegou, muito esguia, descalçando as luvas altas.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote). 
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VER: Apresentação da Escola Paulo Freire de «As Aves», de Aristófanes: 

[E lá vai Joseph Haydn, fungando rapé], excerto do romance «Guilhermina», de Mário Cláudio

Foto encontrada em http://en.wikipedia.org/
Entre Londres e Heathfield infindas horas despende, esquadrinhando recitais, congeminando contratos, a um guiché se plantando, onde é necessário munir-se de inquebrantável paciência. Minuto a minuto, pelo toque entrecortado de um klaxon, atravessando o Strand, numa quadra acanhada onde as xícaras tinem, é o rondó do Concerto em Ré, de Haydn, andarilho e folgazão, que a possui. E o espírito se lhe insurge contra a memória insistente, que em tudo se engasta, arrogando-se direitos, como central a utilizando onde vozes e ecos, ecos e vozes se imbricam. Perpassa o comboio por estações onde se aprumam os esperantes, sob lâmpadas que se atarraxam a um quebra-luz de esmalte branco. Do alto dos taludes uma tribo de crianças espreita, filhas da viúva indigente e corajosa que um livro escreveu de muita celebridade. E ao fundo os detritos se amontoam, bidões e farrapos, por entre cascalho e carris arrancados. Num espaço se pára, por fim, de viadutos, atira-se com a porta da carruagem, onde ficam uma bolsa e um jornal. O cansaço vence os que reentram, um odor aflige a suor e a giz, descaem uns quantos sobre os comparsas ao lado, com o fio da saliva a correr-lhes pelo queixo. Persiste o rondó, embalando os que vão, os sentidos revolvendo de Guilhermina. Num estrépito, porém, de rodados e cabos, a um ramal se acede, apodera-se a orquestra da integral melodia. E lá vai Joseph Haydn, fungando rapé, a luz soprando de um astro, alumiando outro, numa pressa transitando pela Via Láctea.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote).

[Para essa busca das mãos, o desencontro delas], excerto do romance «Guilhermina», de Mário Cláudio

Imagem encontrada em http://hkdtransition.org.uk/
Para essa busca das mãos, o desencontro delas, a que soluções poderá recorrer o biógrafo? Radica-se em Inglaterra, com o violoncelo que em Paris entretanto arrebatou, temo-la «by Mrs. Hart», em Broadhurst, Heathfield, Sussex, como se a guerra não bramisse. Libertos da trela, farejam os cães as valetas, estacam ante um bando de gansos despenhados de um barranco, que de mau génio sibilam. Ao cálido sol da manhã, no peitoril os boiões se enfileiram da geleia de framboesa, há quem, na precaução do Inverno, renove o colmo de seu telhado. Saltitam os estorninhos ávidos, a debicar as aparas de bacon, ao abrigo preguiça Emma, a gata, de um recesso de hortênsias que o gelo mumificou. É, então, o ritmado baque das bolas de squash, com violência expedidas num corte que se não vê. Atiçado o lar, sob o relógio decidindo o tempo certo na escarpa da chaminé, fica ela ensaiando até muito tarde, no quarto que lhe cederam, donde a torre normanda se distingue, a Lua que em baixo desponta, rasando copas de bosques fervilhantes de roedores, fossos estagnados de fortalezas que se esboroam. E um vasto parque se prolonga pelos outeiros, transpõe urzes e silvados, na perspectiva se limita dos Downs, da pardacenta lista do Canal. Passam as amazonas em seu trote domado, perfura a chaleira uma pausa com o assobio infinito. Escondida por tais aparências, saboreia Guilhermina os dias conforme lhe vêm. Necessário se faz, agora, aprender-lhes o uso, no conjunto o tecer das idades, desculpar-lhes o encanto com que se esventram, de polpa rubra e doirada, completos na elipse que vão descrevendo.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote).

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

[o passo de chumbo da soldadesca chafurdando na lama], excerto do romance «Guilhermina», de Mário Cláudio

Foto encontrada em http://topicos-historia.blogspot.pt
Na guerra acesa está em Brive, foragida, entre arcas de porão e móveis enfardados, com a mãe, a irmã, o cunhado Léon. Uma outra se quer perante os homens, perante esse marido de Virgínia, que a entusiasma, inabalável mas fraco, opção para o macho tenaz, que durante tantos anos a trouxera oprimida. De Paris a reminiscência a acompanha dos aeroplanos, descendo a pique, parindo uma bomba, voltando logo a seguir, ante a inconsciência dos transeuntes, que a tudo assistem como a um festival. Brive é melancólica e só, com essa Rue Gambetta, onde o pequeno grupo se alberga acomodado por um certo Fey, terminando num aterro de arrabalde. E, a cada instante, no horizonte de choupos que o Outono esgalha, a rubra deflagração se adivinha das granadas, o passo de chumbo da soldadesca chafurdando na lama. Num desalento de cinzas mortas, andará contemplando, então, as mãos do cunhado. Tinham dedos macilentos e afuselados, estacas que delimitassem um território onde nevara. Habituados que estavam, os dedos, ao comando do diletante a quem pertenciam, ao grão do marroquim e ao toque do Vergé, também eles se consideravam destituídos de toda a serventia. Numa paixão irada os inspeccionava Guilhermina, à suposta brandura de suas falanges se prometendo, enquanto se lamentava «há dois meses que minha irmã e eu não fazemos uma nota de música». Descarregavam-se os feridos, franceses e belgas, ingleses, até mesmo alemães, que em seus argumentos insistiam, enquanto lhes ajustavam a ligadura, a resolução professando de, a breve trecho, ir embora. Na noite, enfim, altíssimas brilhavam as constelações, inexoráveis, sorridentes quase. E uma velhota trôpega, desproporcionada, com seu bordão tacteava o terreno, o esburacado manto desfraldando pelas planícies de França.

In «Guilhermina» (romance), de Mário Cláudio, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho de 2007 (5.ª edição – 1.ª na Dom Quixote).

[Então o relógio bateu o quarto de hora, e ele sentiu que tinha chegado o momento], excerto de «O fantasma de Canterville», de Oscar Wilde

Oscar Wilde – Foto encontrada em http://www.sitiodolivro.pt/
O fantasma saiu furtivamente dos lambris, com um sorriso maléfico nos lábios cruéis e enrugados, e a lua escondeu a sua face atrás de uma nuvem no momento em que ele passou perto da grande janela saliente, onde as suas próprias armas e as da sua mulher assassinada surgiam brasonadas a azul e ouro. Deslizou continuamente, à semelhança de uma sombra maligna, com a própria escuridão a parecer detestá-lo à sua passagem. Assim que julgou ter ouvido alguém a chamar, parrou, mas era apenas o latido de um cão vindo da Red Farm e então prosseguiu, murmurando pragas do século XVI e brandindo o punhal ferrugento no ar da meia-noite. Por fim, chegou à esquina da passagem que conduzia aos aposentos do malfadado Washington. Deteve-se ali por um instante, com o vento a sacudir os seus longos caracóis grisalhos e a agitar em dobras grotescas e fantásticas o indizível horror da mortalha do defunto. Então o relógio bateu o quarto de hora, e ele sentiu que tinha chegado o momento. Gargalhou para si mesmo e dobrou a esquina; mas, assim que o fez, recuou com um lastimoso gemido de pavor, ocultando a sua cara pálida nas suas mãos compridas e ossudas. Mesmo à sua frente surgira um horrível espectro, imóvel como uma figura esculpida e monstruosa como o sonho de um louco! A sua cabeça era calva e polida, a face, redonda, gorda e branca, e um riso hediondo parecia ter-lhe contorcido as feições num esgar eterno. Dos seus olhos saíam raios de luz escarlate, a boca era tão larga como um poço de fogo e uma vestimenta horrível, à imagem da sua, envolvia com as suas neves silenciosas a silhueta titânica. Ao peito trazia um letreiro com uma inscrição bizarra em caracteres antigos, um pergaminho de ignomínia ao que parecia, um registo de grandes pecados, um relato de crimes, e, na sua mão direita, empunhava uma cimitarra de aço reluzente.
Nunca tendo visto um fantasma, ficou naturalmente assustadíssimo, e, após um segundo olhar de relance ao espectro atroz, fugiu de volta para o seu quarto, tropeçando no seu comprido e emaranhado lençol enquanto ia corredor fora, acabando por largar o seu punhal ferrugento nas botas do ministro, onde o mordomo o encontrou na manhã seguinte. Uma vez na intimidade dos seus aposentos, atirou-se para cima de um pequeno colchão de palha e escondeu o rosto debaixo da roupa da cama. Ao fim de algum tempo, porém, o velho e corajoso espírito de Canterville voltou a si e decidiu ir falar com o outro fantasma assim que nascesse o dia. Com efeito, assim que a aurora tocou as colinas com a sua luz prateada, ele voltou ao local onde pela primeira vez tinha visto o assustador espectro, sentindo que, afinal de contas, dois fantasmas eram melhores do que um e que, com a ajuda do seu amigo, bater-se-ia em maior segurança com os gémeos. Quando ali chegou, porém, os seus olhos depararam com um horrível espectáculo. Era evidente que algo se passara com o fantasma, pois a luz sumira-se completamente dos seus olhos cavos, a cimitarra luzidia tinha-lhe caído da mão, e ele estava encostado a uma parede numa postura forçada e incómoda. Ele avançou na sua direcção e tomou-o nos braços, quando, para seu horror, a cabeça do outro se soltou e rolou no chão; o corpo reclinou-se e ele deu por si a segurar numa cortina de dossel de algodão branca, tendo uma vassoura, um cutelo de cozinha e um nabo oco aos seus pés! Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com uma brusquidão febril e, à luz cínzea da manhã, leu estas palavras tenebrosas:

EIS O FANTASMA OTIS.
A Única Assombração Autêntica e Original.
Desconfiem das Imitações.
Todos os Outros são Réplicas.

Num instante percebeu tudo. Ele fora enganado, impelido e burlado! Os seus olhos recuperaram a típica expressão dos Canterville; ele rangeu os seus maxilares desdentados, e, levando as mãos engelhadas ao alto, jurou, segundo a pitoresca fraseologia da escola antiga, que, quando o galo soasse duas vezes o seu alegre canto, actos sangrentos ocorreriam e o assassínio se aproximaria com passos silenciosos.

In «O fantasma de Canterville (The Canterville Ghost)», de Oscar Wilde (1887; tradução de Rita Canas Mendes; consultoria linguística para a versão portuguesa: Francisco Serra Lopes), colecção «AudioBooks / Livros Bilingues», Ara Llibres S.C.C.L. (EMSE EDAPP, S. L.), Barcelona (Espanha), 2014 (distribuído com o Correio da Manhã, em Janeiro de 2015).

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

«Olé, rapazes pimpões», canto tradicional português de Natal (Beira Alta e Litoral)

Fogueira de Natal – Foto encontrada em http://rouxinoldepomares.blogs.sapo.pt/

Olé, rapazes pimpões,
Cantemos à desgarrada,
Para alegrar o Menino,
Mai-lo sua Mãe sagrada.

– Mai-lo sua Mãe sagrada,
Acabaste de cantar;
Lembraste bem, ó rapaz,
Atrás não hei-de ficar.

– Atrás não hei-de ficar,
Não decerto a ninguém,
Faria triste figura
Junto à lapa de Belém.

– Junto à lapa de Belém
Grande alegria tivemos,
Vamos p´rós nossos casais
Gabar-nos do que fizemos.

In «Cantos Tradicionais Portugueses da Natividade», do Coro de Câmara da Academia de Amadores de Música (versões “a cappella” e direcção de Fernando Lopes-Graça; nota introdutória de João José Cochofel), Radertz [Teixeira de Brito, Lda.], Porto, Dezembro de 1955.

«Estas casas são mui altas», canto tradicional português das Janeiras (Monsanto, Beira Baixa)

Foto encontrada em http://sorisomail.com/

Estas casas são mui altas,
Forradinhas de alegria;
Viva quem nelas passeia,
Que é a senhora Maria.

Estas casas são mui altas,
Mas não lhe chegamos nós;
Viva quem nelas passeia,
Quem está a fazer as filhós.

In «Cantos Tradicionais Portugueses da Natividade», do Coro de Câmara da Academia de Amadores de Música (versões “a cappella” e direcção de Fernando Lopes-Graça; nota introdutória de João José Cochofel), Radertz [Teixeira de Brito, Lda.], Porto, Dezembro de 1955.

«Ó da casa, cavalheira», canto tradicional português dos Reis (Nespereira, Douro Litoral)

Imagem encontrada em http://www.radiovizela.pt/

Ó da casa, cavalheira,
Escutareis e ouvireis,
Duas meninas donzelas
Que vos vêem pedir os Reis.

Estes Reis são aliados
A uma estrela da guia:
A estrelinha se escondeu
Aos pés da Virgem Maria.

In «Cantos Tradicionais Portugueses da Natividade», do Coro de Câmara da Academia de Amadores de Música (versões “a cappella” e direcção de Fernando Lopes-Graça; nota introdutória de João José Cochofel), Radertz [Teixeira de Brito, Lda.], Porto, Dezembro de 1955.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

BRUMA, poema de João José Cochofel

Imagem encontrada em http://naut.blogcindario.com/

A tua carne cantou em mim
como se eu fosse um búzio
e tu um mar em som,
presente e longínquo.

E em ti
que vive hoje ainda,
a reavivar o instante sóbrio e perfeito
que a noite trouxe em teus olhos
debruçados sobre a tua e a minha solidão?...

– Mas quando a noite a fechar-se
chama do mar a bruma rumorejante,
tuas mãos frias e recolhidas
talvez ainda tenham uma saudade muda
para mim…

In «Búzio» (poesia), de João José Cochofel, edição do autor, Coimbra [Oficinas da «Atlântida»], 1940 (1.ª edição, de restrita tiragem).

RIO-ME DOS QUE FAZEM, poema de João José Cochofel

Imagem encontrada em http://lopesmelissa.blogspot.pt/

Rio-me dos que fazem
profissão de poeta.

A poesia não é um cartão de identidade
para exibir nas relações cosmopolitas.
A poesia não é a prova malabar
das teorias dos exegetas.

Talvez a poesia seja afinal e apenas isto,
apenas esta maneira discreta de adivinhar
os nexos ocultos que existem
entre a espera cansada dos homens
e o hálito fresco da maresia,
a violência quente das searas,
a nitidez metálica das máquinas.

[Quatro Andamentos, 1964]

In «Breve» (poesia), de João José Cochofel (antologia organizada por Sofia Cochofel Quintela, com prefácio de José Carlos Seabra Pereira), Editorial Caminho (grupo Leya), Alfragide, Novembro de 2010 (1.ª edição).

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

[Faço poesia], poema de João José Cochofel

Reprodução do quadro «A Noite Estrelada» (1889), de Vincent van Gogh
Faço poesia
como quem canta ou chora
se tem razões para isso.

A literatura
posso bem ignorá-la.
Só não posso fechar
esta chaga de lume
a supurar
música, legendas, negrume,
lixo.

                                                 [Quatro Andamentos, 1964]

In «O Bispo de Pedra» (Quatro Andamentos, Emigrante Clandestino, Uma Rosa no Tempo, Água Elementar), poesia de João José Cochofel, Iniciativas Editoriais, Lisboa, Novembro de 1975 (1.ª edição).

[O oiro verde], poema de João José Cochofel

Imagem encontrada em http://www.campoaberto.pt/
O oiro verde
neste chapado de sol poente
sobre as árvores.

Que pensarás tu do oiro verde,
mulher coberta de farrapos
e do cheiro ancestral
agonizante da pobreza?
                                                 [Quatro Andamentos, 1964]

In «O Bispo de Pedra» (Quatro Andamentos, Emigrante Clandestino, Uma Rosa no Tempo, Água Elementar), poesia de João José Cochofel, Iniciativas Editoriais, Lisboa, Novembro de 1975 (1.ª edição).

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Solidão positiva

Foto encontrada em http://sonhosdesperto.blogspot.pt/
Aprender a estar sozinho é fundamental. A necessidade que temos de solidão está em estreita relação com a importância do privado e é outro elemento muito importante na abordagem destes problemas. O nosso mundo também é contra a solidão, mas precisamos imenso dela! Há solidão e soledade. Sem ter nada contra os outros, temos uma absoluta necessidade de estar sós. […]
Às vezes, usamos uma palavra que expressa a solidão positiva – a soledade – que é uma coisa muito importante, mas a nossa cultura tem uma enorme tentação de destruir este espaço “a sós”. É uma espécie de horror ao vazio.

In «Só avança quem descansa – A sabedoria do tempo», de Vasco Pinto de Magalhães, s. j., Edições Tenacitas, Coimbra, Outubro de 2014 (4.ª edição).

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A relação entre o espaço e o tempo

Imagem encontrada em https://livingurbanism.wordpress.com
Numa estratégia adequada para gerir bem o tempo é fundamental perceber a importância da relação entre o espaço e o tempo. Tem muito mais importância de que parece, porque quando não há espaço muitas vezes também não há tempo.
É bem difícil para quem não tem um mínimo de espaço conseguir ter tempo. E hoje isso agravou-se: por um lado, vive-se o paradigma dominante do indivíduo acima de tudo, por outro lado, demos cabo do privado ou do espaço privado, que é uma coisa importante para se poder perceber o que é o “seu” tempo, porque cada pessoa tem o seu tempo e ritmo próprio.
O famoso open-space no mundo do trabalho é algo a que me oponho e que me incomoda bastante. Até os duches das escolas são em open-space! Está na moda, ninguém põe isso em questão, mas é uma boa maneira de dar cabo do tempo. É um supercontrolo, mais ou menos estilo Big Brother, em que as pessoas não sabem nem podem gerir o seu tempo, porque são continuamente controladas umas pelas outras. Poupou-se no espaço e deu-se cabo do tempo de cada um, feriu-se a relação de cada um consigo mesmo.
Mudou o paradigma e nós perdemos a atenção ao privado. E o privado não se opõe à comunidade, opõe-se ao comunitarismo e a estas formas de controlo; opõe-se a tudo aquilo que nos despersonaliza, porque nós precisamos de um espaço privado para sermos gente e termos um tempo de qualidade.

In «Só avança quem descansa – A sabedoria do tempo», de Vasco Pinto de Magalhães, s. j., Edições Tenacitas, Coimbra, Outubro de 2014 (4.ª edição).

O diálogo e a coragem de deitar fora

Padre Vasco Pinto de Magalhães – Foto encontrada em http://www.paroquiadetires.org/
O truque para conseguir ter um tempo de liberdade e descansar bem está não tanto no ser capaz de ter uma cabeça superorganizada, uma agenda extraordinariamente arrumada, daquelas onde vamos marcando pontinhos a assinalar as tarefas cumpridas, mas em manter-se aberto e dialogante com a realidade.
Nós não dialogamos com a realidade, nem com a nossa nem com a dos outros, e o diálogo seria o ponto de partida. Depois andamos sempre irritados com o que acontece ou com aquilo que as outras pessoas dizem, o que leva a um desgaste enorme ou ao azedume.
Mas o tal “truque” não é mero aceitar ou não aceitar, é o estar aberto, dialogante com as coisas que nos acontecem e com a realidade, o que é uma grande sabedoria e o início do descanso. O “truque” é estar aberto à mudança, e não deixar de ter problemas, mas de viver os problemas em diálogo, o que é um segredo fantástico que nós não praticamos. Quando muito discuto e entro em conflito com a realidade, mas não entro na relação e a relação descansar-nos-ia imenso. Se assim não se faz, não se cresce!
A atitude mais saudável a cultivar seria, precisamente, este diálogo com os acontecimentos, com as situações, com os problemas, que me permitiria captar deles o que me interessa e deitar fora o que não interessa. Aliás, uma das coisas mais interessantes que têm os computadores é o “caixote do lixo”, aquele mecanismo de delete, de deitar fora o que não nos interessa. Ai de quem não tenha um enorme caixote do lixo, onde às vezes até podia deitar quase tudo fora… e ficávamos riquíssimos de espaço e com espaço livre para o que valesse a pena. Mas não, há pessoas que têm o “computador das suas vidas” completamente atulhado. De quê? De nada! E dizem: “Mas pode-me vir a ser necessário!...”.

In «Só avança quem descansa – A sabedoria do tempo», de Vasco Pinto de Magalhães, s. j., Edições Tenacitas, Coimbra, Outubro de 2014 (4.ª edição).

domingo, 11 de janeiro de 2015

VISCONTI AMIGO, poema de João José Cochofel

Luchino Visconti – Foto encontrada em https://mubi.com 

Visconti amigo,
tanto eu como tu nascemos tarde.
Ambos amamos os palácios,
ambos amamos as ruínas
que o tempo poupar, e as outras
mais ruínas ainda
por não querermos poupá-las.

Ruínas. Outono. Nostalgia.
Um agasalho, um ninho
da futura alegria.
[Quatro Andamentos, 1964]

In «Breve» (poesia), de João José Cochofel (antologia organizada por Sofia Cochofel Quintela, com prefácio de José Carlos Seabra Pereira), Editorial Caminho (grupo Leya), Alfragide, Novembro de 2010 (1.ª edição).

REBENTA EM MIM UM MAR DE FORÇA, poema de João José Cochofel

João José Cochofel – Foto encontrada emhttp://www.infopedia.pt/ 

Rebenta em mim um mar de força.
É maré cheia!
Mar que atiro à praia, seguro e rijo,
sem que o tolham loas de sereia.

E a vida já me doeu…
Mas não tomei ópio nem olhei o céu,
embora chorasse como os vencidos.

Agora é sol e sangue
o búzio que trago nos sentidos.

[Sol de Agosto, 1941]

In «Breve» (poesia), de João José Cochofel (antologia organizada por Sofia Cochofel Quintela, com prefácio de José Carlos Seabra Pereira), Editorial Caminho (grupo Leya), Alfragide, Novembro de 2010 (1.ª edição).

sábado, 10 de janeiro de 2015

[Pusera-se-lhe o onomástico de Dom Beltrán], excerto do romance «Gémeos», de Mário Cláudio

Imagem encontrada em http://www.podengo-mediogrande.com/
Pusera-se-lhe o onomástico de Dom Beltrán, o que ficara a dever-se à vaga memória de um herói de histórias de cordel, uma dessas personagens que trotam pela vida fora, comandadas por uma astúcia especial, revelando todavia graça de convívio que as torna irresistíveis aos olhos de quem primariamente lhes censura as falcatruas. De rabo em perpétuo levantado, colocando as orelhas fitas diante de sinais que só ele percebia, alternava o malandro a doçura com que se botava a lamber as mãos dos que se acercavam, e que perante isso de imediato se sentiam rendidos, com a malevolência que implicava em morder-lhes os dedos, gesto com que ia explorando seus grandes ímpetos de amor.

E nos meus lazeres interrogava-me sobre o que poderia ter sido o passado daquele valdevinos. Produto de uma cadela podenga, abandonada num matagal, presa por um cordel a um castanheiro por se mostrar menos do que medíocre de caça, e de um descendente de sabujos desclassificados, oriundos de além-fronteiras, atrelara-se um dia ao eixo de uma carroça, em consequência da insistente reclamação de um dos catraios do bando, o qual nele projectara uma promessa de divertido companheirismo. Muito faceiro nas atitudes, mas nunca afinal conquistando o direito a um nome, correspondia o perro com digníssima resignação às atenções que, ultrapassado o encanto da infância, iam fatalmente esmorecendo. Comia o que lhe atiravam, afastava-se das zaragatas, procurava na vizinhança dos ciganos recém-nascidos a sorte de vir a deparar com um ou outro dono providencial.

In «Gémeos» (romance), de Mário Cláudio, Colecção «Autores de Língua Portuguesa», Publicações Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 2004 (2.ª edição).

[Acabava de sofrer o primeiro ataque de pânico], excerto de «Gémeos», de Mário Cláudio

Mário Cláudio – Foto encontrada em http://portodeencontro.blogs.sapo.pt/
Se soubesse ele naquela manhã de fins de Julho que o nobre ingresso do Museu haveria de ocupar na sua mitologia privada lugar idêntico ao que na mitologia do Mundo preenchiam a escada angélica de Jacob e a corda apaixonada de Romeu e Julieta, se tanto soubesse ele, é duvidoso que a galgasse de diferente maneira. Do plano térreo que correspondia ao da entrada principal até ao andar onde se poderiam alcançar as obras do seu pintor não mediaria mais do que uma quarentena de degraus, capazes de todavia lhe alterar por completo o rumo da existência, e muito especialmente o modo de a encarar. E o dito espaço vencê-lo-ia ele a pé, ou porque outra estratégia não lhe ocorresse, ou porque se achasse fora de serviço o elevador, ou porque simplesmente lhe houvesse apetecido, o que traria como efeito que, ao chegar ao destino, lhe batesse o seu tanto o coração, e ao lançar os olhos pela área das suas reflexões, se lhe afigurasse que nunca mais haveria ele de parar. À sua frente, e num caos de linhas que se entrecruzavam e se desfaziam, mesclavam-se as cores dos quadros expostos, um rosto interrogativo, o aceno de um arvoredo, o derrube da bandeira de uma batalha, e nada pertencia a nada, e tudo aquilo que ele mentalmente fora lhe parecia ter chegado sem remissão ao termo. Era no pavor infrene que se debatia como um mar imenso, destituído de tábua de salvação, entregue ao furor que não lograva identificar senão como a catástrofe final do Universo criado. E moviam-lhe à roda, e sem que disso tomasse consciência plena, difusas formas de outras criaturas, semelhantes à que havia sido, mas tão enquadráveis ainda no Mundo, e no seu caixilho de valores rotuláveis, que não davam conta do que ali, e na pessoa daquele visitante, a morte inexoravelmente se implantara. Acabava de sofrer o primeiro ataque de pânico, de uma sinistra procissão de centenas de outros que ao longo dos anos se repetiriam, confundindo os clínicos gerais, inábeis para lidar com o fenómeno, imputando-o à hipocondria, criptotetania, a uma variante de epilepsia, ou a uma pitada de esquizofrenia, e incitando os psiquiatras a projectar uma boa dose de sessões de divã. Embrulhada em tal pacote, o dos acessos paroxísticos, vinha a caterva das habituais manifestações morbosas, a taquicardia e a dispneia, a moleza das pernas e os espasmos do estômago, o frio das mãos e o suor da testa, os desarranjos digestivos e a secura de boca, as tonturas, as constrições, as cãibras, e o medo, sobretudo o medo, o medo, o medo.

In «Gémeos» (romance), de Mário Cláudio, Colecção «Autores de Língua Portuguesa», Publicações Dom Quixote, Lisboa, Dezembro de 2004 (2.ª edição).