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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

«PENSE NO GLOBAL E ACTUE NO LOCAL - Reflexos da Política de Saúde», de João Nunes Rodrigues

APRESENTAÇÃO
Este livro surge do desafio de compilar e rever os vários artigos de opinião, sobre Política de Saúde, publicados nos últimos três anos no Diário de Coimbra, na Revista da Ordem dos Médicos, no boletim informativo do SMZC (Esculápio) e no sítio MGFamiliar.Net, acreditando que estão ainda muito actuais e com profunda ligação aos cuidados de saúde primários (CSP), às unidades de saúde familiar, ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e à saga que os portugueses vivem hoje.
Esta obra destina-se a toda a gente: profissionais de saúde e cidadãos anónimos. E não é uma mera apresentação de diagnóstico sobre a Política de Saúde dos últimos três anos. É, sim, um manifesto, pela necessidade de se apostar na boa governação de um SNS público, baseado em CSP fortes e abrangentes, considerando que a totalidade da população deve ter à sua disposição uma equipa de saúde familiar de proximidade.
Vivemos tempos de premência em dizer não ao pessimismo, ao financiamento público de mais hospitais privados, bem como ao parco investimento nos CSP e à diminuição da qualificação da Administração Pública (AP).
Sem neutralidade, assumo que existe uma vida atrás de mim dedicada à causa pública, com registos escritos e divulgados que me responsabilizam, criando-se um eventual conflito de interesses.
Ou seja, o autor é defensor, dentro do SNS, de organizações simples (organizações positivas e democráticas) que prestam contas, que sejam discriminadas positivamente e que fomentem a criação de Comunidades de Práticas (CoP). Acredita num SNS que cuida de todos, com qualidade. E que não desperdiça os nossos impostos, sendo eficiente.
Seleccionei as diversas matérias abordadas em sete capítulos, começando pela dicotomia entre um «SNS moderno» versus a «Troika e a privatização», registando o percurso da Troika na Saúde e um balanço da política de destruição do SNS, por parte do Governo (no período de 2012 a 2015), em que se destaca a defesa de mais mercado e de menos Estado. Sobretudo, com a transferência de camas públicas para os hospitais privados e misericórdias.
Depois, entramos directamente na área que deveria merecer mais importância no SNS: os ACeS e as suas unidades funcionais. Percebendo-se, em sete constatações, que os governos e, por vezes, os media continuam a apostar tudo nos hospitais, deixando os CSP para segundo plano, como parente pobre de uma gestão moderna e responsável.
No terceiro capítulo, dá-se destaque à marca genuinamente portuguesa e de sucesso confirmado internacionalmente: as USF, como organizações positivas e democráticas que fazem mais, melhor e a melhor preço. E os cidadãos reconhecem! Todavia, sabemos que a construção de novos projectos como estes – em que se salvaguardam valores humanos fundamentais e se qualifica a causa pública – exige atenção sobre os desafios futuros.
De seguida, recordo o enquadramento geral da avaliação de desempenho nas organizações de Saúde e a cultura que deve ser implementada para que seja possível apostar numa verdadeira discriminação positiva (em equipa e não individualmente), introduzindo (como causa e efeito) a cascata da avaliação. Por falar em avaliação de desempenho, recorda-se um “Conto de criança” intrínseco à selecção dos «mais competentes» nos concursos para dirigentes da AP, via CReSAP (Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública).
O quinto capítulo centra-se em propostas concretas sobre o que deveria ser a estratégia de futuro para desenvolver ainda mais a Medicina Geral e Familiar, procurando enquadrar a questão cronicamente prometida de «Médicos de família para todos», contrapondo-se com uma proposta inovadora de «Equipa de Saúde Familiar para todos».
O antepenúltimo capítulo aborda as propostas relativas a um novo ciclo para a Reforma dos CSP, tendo por base o trabalho liderado pela USF-AN (Unidades de Saúde Familiar – Associação Nacional).
Por fim, no sétimo capítulo, não querendo terminar como iniciei – ou seja, permanecer na Política de Saúde –, deixei de lado as grandes posições ideológicas e centrei-me no quotidiano de uma unidade de saúde portuguesa, a USF Serra da Lousã. E desenvolvi o que deve ser um verdadeiro plano de gestão clínica, centrado na Governação Clínica e de Saúde, a implementar em qualquer unidade de saúde do SNS.
Nos sete capítulos que constituem o presente livro, existem, como disse, algumas reflexões e propostas formuladas durante os últimos três anos. Contudo, constato que, no âmbito global, as ideias então expressas continuam actuais, visto que a aposta no desenvolvimento dos CSP terá de continuar com as próximas gerações.

João Nunes Rodrigues
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PREFÁCIO
A disputa que existe em torno da ocupação dos espaços na comunicação social é uma das mais importantes batalhas que o associativismo tem actualmente de travar. Seja ela através da escrita, do som ou da imagem, e em qualquer plataforma, desde a Internet até aos outdoors que abundam por aldeias, vilas e cidade – os quais acompanham os condutores nas suas viagens pelos muitos quilómetros de estradas nacionais –, essa presença é cada vez mais importante e crucial para o sucesso de qualquer instituição na transmissão das suas mensagens.
No sindicalismo médico também é assim, com a enorme desvantagem ou vantagem de os médicos se ocuparem a 100% dos seus doentes e, só depois, nos seus tempos livres, voluntariamente, lutarem por melhores condições de trabalho.
Uma luta que tem vindo a ser consecutivamente ganha pelos poderes instituídos. Leia-se, neste caso, o Governo e as suas instituições, com mais acesso aos meios e aos fundos necessários, através de orçamentos chorudos, para agências, assessores, anúncios e o mais que se achar útil, por forma a passar as mensagens que pretendem impor ao público.
Neste sentido, qualquer brecha que se encontre nestes espaços de media hipercontrolados e formatados a um sistema centralista é uma vitória. Pelo que os espaços que o ex-presidente do Sindicato dos Médicos da Zona Centro (SMZC) tem conseguido conquistado nos media (principalmente locais e no âmbito da Medicina Geral e Familiar) são exemplos a seguir por todos os dirigentes associativos que tenham uma opinião e a queiram difundir. Assim, fica desde já o convite a todos os médicos para que opinem, escrevam e difundam... num meio de comunicação social ou numa rede social.
O SMZC vai continuar aberto à diversidade de opiniões, disponibilizando o seu boletim informativo Esculápio (o qual já vai na 34.ª edição), bem como a sua página Web e, sempre que possível, publicando livros desta natureza, à semelhança do que fez ao publicar a obra «Ser Médico...Ser Solidário».
Numa perspectiva paralela a esta, e num exemplo de descentralização e de autonomia responsável, a presente edição do livro «Pense no global e actue no local» tem como paradigma, no sindicalismo médico, a actuação da própria FNAM (Federação Nacional dos Médicos), subdividida territorialmente nos três sindicatos que a compõem (SMN – Sindicato dos Médicos do Norte, SMZC e SMZS – Sindicato dos Médicos da Zona Sul), num exemplo de como uma organização nacional se pode desdobrar e actuar no local, mais perto das realidades e de as poder auscultar, de forma a trilhar um caminho amplo, no território português, na defesa de um Serviço Nacional de Saúde equitativo e de qualidade.

Sérgio Esperança
(Presidente do SMZC)
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O AUTOR:
João Nunes Rodrigues  (1964) – É casado, pai de três filhos e licenciado em Medicina, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Possui os diplomas universitários (DU) em Dietética Médica e em Diabetologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Montpellier (França), bem como a parte curricular do mestrado em Nutrição Clínica da FMUC e o Curso de Pós-Graduação em Direito da Medicina, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
É, a partir de 2015, Assistente Graduado Sénior (ex-Chefe de Serviço) de Medicina Geral e Familiar (MGF), no ACeS (Agrupamento de Centros de Saúde) Baixo Mondego (Centro de Saúde Norton de Matos). Exerce MGF na Unidade de Saúde Familiar (USF) Serra da Lousã, desde 2007, sendo o coordenador desta USF, eleito desde 2009.
Entre Novembro de 2005 e 30 de Abril de 2007, integrou – por nomeação do então ministro da Saúde, Correia de Campos – a estrutura de Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), entidade responsável pela coordenação, a nível nacional, da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários e pela implementação das USF.
Enquanto activista sindical médico, desde 1992, está ligado ao Sindicato dos Médicos da Zona Centro (SMZC) – e, consequentemente, à FNAM (Federação Nacional dos Médicos) –, tendo sido presidente do SMZC (de 2004 a 2006) e membro do Conselho Nacional da FNAM.
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FICHA TÉCNICA:
Livro: Pense no global e actue no local – Reflexos da Política de Saúde
Autor: João Nunes Rodrigues
Capa: Desenho de Gonçalo Queirós, sobre fundo com pormenor do quadro «Espelho em seis Painéis N.º 1» (Mirror in six Panels N.º 1), de Roy Lichtenstein (1970). A ilustração representa uma família alargada com sete (7) elementos (avó, avô, pai, mãe e três filhos) que frequenta os cuidados de saúde primários e a sua unidade de saúde familiar (USF).
Editora: Mar da Palavra - Edições, L.da
Colecção: Cuidados de Saúde Primários (N.º 1)
PVP: 15,90 €
N.º de páginas: 136
Formato: 14,5 x 21,0 cm
ISBN: 972-8910-70-9 (EAN: 978-972-8910-70-9)
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Registo de notícias e outras referências:
http://www.usf-an.pt/index.php/em-noticia/323-pense-no-global-e-actue-no-local-reflexos-da-politica-de-saude
http://www.tempomedicina.com/noticias/30463
http://www.univadis.pt/saude-sociedade-hoje/133/Presidente-USF-AN-lanca-livro-sobre-Politica-de-Saude#?
https://www.biusf.pt/Pages/Noticias/PENSE-NO-GLOBAL-E-ACTUE-NO-LOCAL---Reflexos-da-Pol%C3%ADtica-de-Sa%C3%BAde.aspx
http://www.bibliofeira.com/livro/274127967/pense-no-global-e-actue-no-local-reflexos-da-politica-de-saude/
https://www.facebook.com/149325878444472/photos/a.401126863264371.88598.149325878444472/993696074007444/?type=3&theater
http://www.wook.pt/ficha/pense-no-global-e-actue-no-local/a/id/16993996
http://www.bertrand.pt/ficha/pense-no-global-e-actue-no-local?id=16993996
http://www.smzc.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=461:2015-12-11-16-42-06&catid=12:informacao-aos-socios&Itemid=20

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

[O senhor habitua-se, conquanto esta profissão tenha as suas dificuldades específicas], passagem do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

Imagem encontrada em http://www.ojornalista.com/
O chefe da redacção, um tudo-nada vesgo, tinha servido na secretaria do Exército. Mas no seu porte não havia sugestões marciais. Pelo contrário: era um homem frondoso, calmo, de cabelos manchados de cinza, que punha em todos os gestos uma arrumação criteriosa. A propensão para o escrúpulo e a ordem reflectia-se nos linguados que lhe saíam das mãos, sempre limpos, sempre preenchidos por uma letra rendilhada. Desprezava rancorosamente as máquinas de escrever e não consentia no jornal uma única dactilógrafa. «Esses trastes fizeram-se para analfabetos. Nem só a boa redacção basta para denunciar o escritor: é também preciso escrever com o seu punho e escrever bem!» E, assim, compunha os seus opulentos artigos com um aparo especial fornecido, em exclusivo, por um estabelecimento da Baixa. Ordenava que lhe guardassem, libertos de dedadas, os seus originais. «Hoje, neste século de espavoridos, não há o respeito pela escrita. Vêem-se gatafunhos. E a escrita é o barómetro da saúde dos espíritos! Eu queria ver os meus amigos com o meu professor primário!... Mas têm as máquinas, pronto…» Na apresentação de Carlos Nóbrega não dispensara a credencial decisiva:
– O senhor é dos tais?
Nóbrega começará a sua tarefa ainda com uns restos de uma ideia muito romântica sobre o que fosse um jornal. Mas acomodou-se como pôde. Revia as provas automaticamente e automaticamente estendia os dedos para o telefone. Nos minutos vagos rabiscava desenhos ou retratos dos colegas e pensava nos saborosos passeios nocturnos que o emprego lhe roubara. O chefe da redacção, de resto, era afável, embora respeitasse as hierarquias.
– O senhor habitua-se, conquanto esta profissão tenha as suas dificuldades específicas. Específicas, entenda-me! Tenho visto bom menino universitário vir para aqui com prosápias e não saber, afinal de contas, alinhavar a notícia de um funeral…
Entre o chefe, que vinha de raspão em algumas noites, e o administrador, um fuinha que fazia do jornal o seu lar de todas as horas, existia uma ciumeira tempestuosa.
– Ou se serve a ele ou a mim! – bradava o fuinha. O chefe, mais comedido, não traduzia os seus sentimentos.
No dilema de agradar a um ou a outro estava o segredo da conservação dos empregados menores. O administrador tinha sido, nos bons tempos, cocheiro e nessa qualidade prestara alguns serviços memoráveis ao proprietário do jornal, não só de natureza política, mas também amorosa. Firmando nesses laços de raiz, o ex-cocheiro era uma rocha ali dentro. Quem viesse de novo devia saber equilibrar-se entre os dois abismos.
A Tribuna, como a maioria dos jornais de província, tinha uma vida difícil; daí, não podendo recrutar jornalistas profissionais, ter de escolher o seu estado-maior entre pessoas cuja principal garantia era a fidelidade à empresa ou aos subsidiadores. Assim se explicava a presença do ex-sargento e do ex-cocheiro nos postos de comando; mas esses bravos homens eram capazes de todos os sacrifícios e a sua devoção pelo jornal compensava à larga alguns deslizes intelectuais.  

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).

[o lugar de redactor da noite], fragmento do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

Imagem encontrada em http://www.pravda.com.ar/
Seabra andava alvoroçadíssimo. Como a revista era lida e ridicularizada pelos cafés do bairro universitário, ele, orgulhoso e insensível às estúpidas graçolas, vestia agora uns coletes espalhafatosos, que ninguém mais se lembraria de usar. O seu nome no corpo directivo da Rampa era um troféu. Tornava-se-lhe necessária essa glória de ser distinguido na rua, mesmo que a curiosidade começasse por ser despertada por uma banalidade tão formal como um colete. Estimulado aos grandes gestos, retribuíra com um fato azul-marinho o busto que o escultor lhe esboçara. Intimamente, esperava uma oportunidade de sugerir que a reprodução dessa bela peça de escultura, talhada com vigor e frenesi, fosse publicada no segundo número da revista.
Esse facto, naturalmente, tinha-lhe feito desabar as desconfianças quanto à personalidade de Carlos Nóbrega. Não havia dúvida de que o homem compreendera, enfim, a missão que se exige de um artista. Por isso, massacrou meticulosamente os amigos do jornal e um dia pôde chegar à pensão com a notícia desejada; cento e cinquenta escudos por mês e um horário, nada abusivo, das nove da noite à uma da manhã. Nóbrega passaria a ter ao seu cargo a revisão de provas, a coordenação dos telegramas das agências e a crítica aos esporádicos salões de pintura. Seabra galgara as escadas de expressão triunfante e previra que o escultor desse largas ao seu reconhecimento por tal prova de camaradagem. Preparara mesmo uma resposta adequada: «Isso não tem nenhuma importância. Devemo-nos um sagrado auxílio mútuo.» Mas o escultor de modo nenhum ficara surpreso ou comovido: sem largar os pincéis, dissera por fim:
– Sabe, por acaso, se eles estarão dispostos a adiantar-me um mês de ordenado?
– Não sei, bem vê…
Seabra, para corrigir o desapontamento, volveu a sua atenção para outros lados. Isabel estava de pé, de costas para a luz da janela, contrafeita da posição fatigante. Pela primeira vez reparava que a miúda se fazia rapidamente mulher. E bem jeitosa!
– Prometes… – disse-lhe. – Estás a ficar um torrãozinho de açúcar…
Aquela rapariguita de corpo gracioso a despontar... Já na aldeia, com a pastora da quinta do avô, ele tivera uma inesquecível aventura. E esta gente de baixa condição não trazia complicações. Voltou-se para Carlos Nóbrega, numa última tentativa de o forçar à gratidão:
– Digo-lhe que é o lugar mais suportável do jornal. Eu, que tenho por lá passado os meus bocados…
E ficou-se por aí, certo de que os outros saberiam interpretar as reticências: ele, como intelectual, tinha de ser visita assídua desses meios.
Nóbrega, indiferente, limpava as mãos a um trapo, depois de fazer sinal à rapariga para aliviar os músculos.
– … Se eu tivesse de escolher, isto é, se estivesse no seu caso – insistia Seabra –, preferia, sem hesitações, o lugar de redactor da noite. Durante o dia aparecem meninos com artiguinhos, e amigalhaços que vêm falar da guerra e pedir umas notícias de compadrio. Quanto ao ordenado, embora modesto, não ofende ninguém, não é verdade? E fica com o dia livre para as suas coisas.
– Meu bom amigo: você está perturbado com a ideia de que será preciso rogar-me desculpas por me ter conseguido um emprego.
Os olhos de Seabra arregalaram-se perante tão imprevisível comentário. Desapoiado, farejando uma situação ridícula, sorriu indefinidamente, como se um sorriso fosse, só por si, elucidativo. Dedicou ainda um aceno brejeiro à Isabelita – estava apetecível, o diabo da garota! – e saiu, ajeitando com azedume as abas do colete.

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).

terça-feira, 20 de outubro de 2015

[O livro nas montras!], passagem do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

Imagem encontrada em http://www.blogdacompanhia.com.br/

O livro nas montras! Agora podia acontecer fosse o que fosse, que nada mais importava. Embora toda a elaboração do livro, o entendimento com a tipografia, a revisão de provas, esse lento e ansioso crescimento de um sonho íntimo, cujo destino, no entanto, era ser exposto à claridade, houvesse sido feito em segredo – o pai, apesar disso, teria suspeitado já de alguma coisa? Às vezes, Sílvio julgava descobrir-lhe olhares significativos. E chegava a apetecer provocar-lhe uma censura, uma ironia, ou, quem sabe, uma palavra de espanto. «Fale! Fale, que não o temo!» Sílvio já podia suportar esse arrojo, visto que, daí a dias, o seu livro, um navio de velas soltas, o levaria à conquista de imprevistos portos. «Falem. Agora falem!» Nada o impedia também de deixar a repartição, ou a burguesa casa dos pais, ou a rapariga do bairro académico que troçava da sua persistência. Que valiam essas coisas, odiadas ou descoloridas, quando tudo o mais, a fama e a ventura, se lhe oferecia através da poesia?
O livro tinha uma capa azul-celeste e não havia dúvida de que, fosse pela capa ou por outro subtil chamariz, se destacava singularmente dos restantes volumes que o rodeavam. Quem se abeirasse das montras, olhava-o em primeiro lugar. Isso era evidente. Ele bem reparara, mais de uma vez, nas pessoas a afluírem às livrarias e ficarem uns momentos a contemplar o livro, conquanto, por uma inexplicável reserva, nem o abrissem nem lhe tocassem. Sílvio espiava, ora passando como por acaso rente às montras, ora detendo-se um pouco no passeio fronteiro. Na livraria principal da cidade, onde cavaqueavam os lentes, haviam posto dois exemplares lá dentro, bem à vista, no escaparate das novidades, e Sílvio esperava todas as tardes, quando saía da repartição, que eles já lá não estivessem. Mas estavam. Certamente o livreiro satisfazia os compradores com outros exemplares armazenados nas prateleiras, deixando ali aqueles, em exibição, para atrair novos clientes. Dias depois, porém, o livro tinha desaparecido. Aflito, inquiriu de si próprio: esgotara-se? Procurando melhor, descobriu que algum empregado inexperiente colocara por cima da sua obra uma outra novidade literária. Um romancelho qualquer. Que fazer? Deu umas voltas nervosas pela sala, simulando apreciar umas revistas, e, quando achou que os empregados estavam distraídos, libertou o seu livro do opressor que o ocultava. Quando saiu da livraria, à pressa, comprometido, não olhou mais para ninguém; mas parecia-lhe que todos o observavam, que todos haviam reparado no seu gesto de ladrão. Por isso as faces lhe ardiam, num fogo que aos outros pareceria tremendamente suspeito.
Ainda não fora ao café. Não poderia, nesses dias, enclausurar-se fosse onde fosse, quando lá fora, na rua, as pessoas o acotovelavam, estonteadas, para o admirarem melhor; quando o livro, oferecido aos olhos da cidade, precisava de ser amparado pelo seu carinho. Lá chegaria a altura de voltar ao café, com um exemplar debaixo do braço, de modo que Nóbrega bem lhe visse e pudesse, enfim, incitá-lo a esse encontro adiado durante infindáveis meses.

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).

[Os livros ofereciam-lhe um prazer quase carnal], passagem do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

Fernando Namora (fotografado por Gustavo de Almeida Ribeiro)

– Pensas fazer alguma exposição em Coimbra?
Quem tinha feito a pergunta? Zé Maria ouviu-a através do nevoeiro dos seus pensamentos. Exposições, livros. Eles julgavam ser possível construir um mundo apenas com frases; e, no entanto, todos eles tinham ou julgavam ter uma aguda consciência das realidades, da vida tal como era. E acreditavam nela. Mas comportavam-se como crianças que levam os sonhos até à Lua e estendem depois os braços para alcançá-los.
Marinho devia ter respondido com um aceno de cabeça. Mas agora decidira-se a falar também:
– O meio não é para exposições, suponho. Dizem-me que há por aí uns aficionados que compram quadros quando lhos impingem a domicílio. Uns tipos que, evidentemente, não fazem distinção entre a pintura e os jarrões que lhes enfeitam as salas de visitas. Mas compram, é o que importa. Estudarei essa possibilidade. Você tem um cigarro, Luís Manuel? Perdi o maço ao apear-me do comboio.
Júlio riscava o vidro da mesa com a unha. Seabra aproveitou a oportunidade para insistir no seu tema:
– Sempre a questão da massa! O problemazinho. É revoltante estarmos sujeitos a isto. Você, Marinho, consegue realizar-se como artista pensando constantemente nessas questões do dia-a-dia, como um merceeiro tem de pensar nas letras e nos prazos de vencimento?
O outro descaiu as pálpebras sobre os olhos claros, a medir o interesse da pergunta. Numa voz incolor, respondeu com lentidão:
– Faz-se o que se pode. Há coisas mais importantes do que isso.
– Lastimável.
– Tu és irredutível, Seabra – disse Júlio, e não se sabia até onde chegara a ironia e a que verdadeiramente quisera referir-se.
A conversa escorregou logo depois para o confronto entre a literatura e a pintura. Seabra achava que a missão de um novelista era, de todas, a mais espinhosa e, ao dizê-lo, parecia insinuar a alta e terrível missão a que deliberadamente se obrigara.
Luís Manuel assistia, com prazer reconfortante, ao entusiasmo que os companheiros punham nos seus depoimentos e ele próprio conseguiu atraí-los ao comentário sobre certas edições estrangeiras que, um pouco a ocultas, haviam, enfim, chegado às suas mãos. Falando de livros, já ele poderia impor-se à consideração de Marinho, visto que era sempre o primeiro a adquirir as obras acabadas de chegar às livrarias da cidade. Não tinha, evidentemente, tempo para as ler todas, mas sabia-lhes da existência, do formato, da sedução exterior, podia mostrá-las nas fartas prateleiras da sua casa. Os livros ofereciam-lhe um prazer quase carnal. Era a própria vida condensada, acessível, fechada em volumes, que se transportava comodamente para um recanto solitário, a vida que se palpava com as mãos e à qual era fácil entregar-se ou negar-se, conforme lhe aprouvesse. Os seus dedos magros gozam o contacto do papel, o rasgar das folhas, os primores da impressão, tal uma mulher se delicia ao sentir sobre o corpo um tecido desejado.

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).

[Qual deles seria um poeta?], excerto do romance «Fogo na noite escura», de Fernando Namora

 Fotografia encontrada em http://www.360meridianos.com/
Sílvio, provavelmente, no meio da rua ou nos cafés, já teria encontrado os verdadeiros poetas – os que, pelo seu heróico inconformismo, mereciam a poesia. E procurava identificá-los entre a grosseira multidão. Eles não poderiam ter a aparência de pessoas vulgares: um olhar ausente, cabelos vaporosos, um corpo esguio e, certamente, debaixo do braço, livros que não era necessário esconder. Sílvio entrava nos cafés e farejava à sua volta. Qual deles seria um poeta? E por vezes ficava tão certo de ter acertado que se sentava próximo de qualquer solitário de expressão longínqua, esperando a todo o momento vê-lo anotar versos fortuitos, destes que brotam, irreprimíveis, da mesa da solidão. Quando chegasse esse instante, dar-lhe-ia a entender que compreendera. Que era um cúmplice. Que era um igual. E dir-lhe-ia que também ele tinha um livro refugiado na gaveta, um livro que era por enquanto um rolo de papéis aguardando um título e o milagre da sua libertação. Um título? Mas não pensara já em chamar-lhe Estrelas do Pântano? Uma capa com o seu nome ao cimo, Sílvio Mendoça, e por debaixo, em caracteres amarelos sobre um sugestivo fundo negro, esse símbolo da sua amargurada poesia: estrelas, estrelas do… pântano. Mas daí à concretização do sonho! Quem sabe? Talvez já estivesse perto… Todos os meses amealhava umas economias e em breve teria provavelmente o dinheiro suficiente para a edição. O seu nome nos jornais, o seu nome gritado aos ouvidos empedernidos e surpresos dos colegas! Mendoça era um nome repugnante, sugeria a esfoliação inflamada nas costas do pai, que ele era obrigado, nos dias quentes, a ensopar com águas de virtude, mas Sílvio imporia o nojo desse nome! Ele o faria reter aos ouvidos da fama!
As coisas poderiam ainda acontecer de outro modo: o desconhecido do café leria os seus poemas e, deslumbrado, levá-lo-ia junto de um editor, convencendo-o a publicar as Estrelas do Pântano. Não seria preciso o dinheiro amealhado. Todos falariam da descoberta de um jovem que levara timidamente os seus versos às mãos de um mecenas. A cidade inteira, atónita, iria libertá-lo do cárcere da repartição. Vive e sonha, gritavam as gentes, vive para a tua grandeza! As mulheres a persegui-lo pelas ruas, tendo nos lábios flores roxas de amor e martírios; os homens a apontarem-no à curiosidade respeitosa dos que o procuravam para lhe entregar oferendas. Ah, não! Era sonhar demasiado; era despedaçar-se, mais tarde, de encontro à realidade!
Efectivamente, regressava dessas viagens pelo sonho com os nervos e os músculos exaustos. E então adormecia. No dia seguinte, porém, nesse mesmo cenário do seu quarto, com o leito de ferro de colegial, a mala de cânfora e a imagem da Senhora das Dores, sua madrinha, repreendendo-o benevolamente, repetir-se-iam os desmandos da sua imaginação. Mas era bom e fácil imaginar. Bastava estender os olhos pela avenida longa e agitada, pela Universidade que furava o céu tranquilo, pela noite vasta. Em qualquer parte e em qualquer instante encontraria o seu desconhecido. E ambos, então, com as mulheres de cabelos vaporosos e lábios roxos, iriam ao encontro dos ventos, dos sóis, do imprevisto.

In «Fogo na noite escura», romance de Fernando Namora, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988 (14.ª edição).