Oscar Wilde – Foto encontrada em http://www.sitiodolivro.pt/
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O fantasma saiu
furtivamente dos lambris, com um sorriso maléfico nos lábios cruéis e
enrugados, e a lua escondeu a sua face atrás de uma nuvem no momento em que ele
passou perto da grande janela saliente, onde as suas próprias armas e as da sua
mulher assassinada surgiam brasonadas a azul e ouro. Deslizou continuamente, à
semelhança de uma sombra maligna, com a própria escuridão a parecer detestá-lo
à sua passagem. Assim que julgou ter ouvido alguém a chamar, parrou, mas era
apenas o latido de um cão vindo da Red Farm e então prosseguiu, murmurando
pragas do século XVI e brandindo o punhal ferrugento no ar da meia-noite. Por
fim, chegou à esquina da passagem que conduzia aos aposentos do malfadado
Washington. Deteve-se ali por um instante, com o vento a sacudir os seus longos
caracóis grisalhos e a agitar em dobras grotescas e fantásticas o indizível
horror da mortalha do defunto. Então o relógio bateu o quarto de hora, e ele
sentiu que tinha chegado o momento. Gargalhou para si mesmo e dobrou a esquina;
mas, assim que o fez, recuou com um lastimoso gemido de pavor, ocultando a sua
cara pálida nas suas mãos compridas e ossudas. Mesmo à sua frente surgira um
horrível espectro, imóvel como uma figura esculpida e monstruosa como o sonho
de um louco! A sua cabeça era calva e polida, a face, redonda, gorda e branca,
e um riso hediondo parecia ter-lhe contorcido as feições num esgar eterno. Dos
seus olhos saíam raios de luz escarlate, a boca era tão larga como um poço de
fogo e uma vestimenta horrível, à imagem da sua, envolvia com as suas neves
silenciosas a silhueta titânica. Ao peito trazia um letreiro com uma inscrição
bizarra em caracteres antigos, um pergaminho de ignomínia ao que parecia, um
registo de grandes pecados, um relato de crimes, e, na sua mão direita,
empunhava uma cimitarra de aço reluzente.
Nunca tendo visto um
fantasma, ficou naturalmente assustadíssimo, e, após um segundo olhar de
relance ao espectro atroz, fugiu de volta para o seu quarto, tropeçando no seu
comprido e emaranhado lençol enquanto ia corredor fora, acabando por largar o
seu punhal ferrugento nas botas do ministro, onde o mordomo o encontrou na
manhã seguinte. Uma vez na intimidade dos seus aposentos, atirou-se para cima
de um pequeno colchão de palha e escondeu o rosto debaixo da roupa da cama. Ao
fim de algum tempo, porém, o velho e corajoso espírito de Canterville voltou a
si e decidiu ir falar com o outro fantasma assim que nascesse o dia. Com
efeito, assim que a aurora tocou as colinas com a sua luz prateada, ele voltou
ao local onde pela primeira vez tinha visto o assustador espectro, sentindo
que, afinal de contas, dois fantasmas eram melhores do que um e que, com a
ajuda do seu amigo, bater-se-ia em maior segurança com os gémeos. Quando ali
chegou, porém, os seus olhos depararam com um horrível espectáculo. Era
evidente que algo se passara com o fantasma, pois a luz sumira-se completamente
dos seus olhos cavos, a cimitarra luzidia tinha-lhe caído da mão, e ele estava
encostado a uma parede numa postura forçada e incómoda. Ele avançou na sua
direcção e tomou-o nos braços, quando, para seu horror, a cabeça do outro se
soltou e rolou no chão; o corpo reclinou-se e ele deu por si a segurar numa
cortina de dossel de algodão branca, tendo uma vassoura, um cutelo de cozinha e
um nabo oco aos seus pés! Incapaz de compreender esta curiosa transformação,
pegou no letreiro com uma brusquidão febril e, à luz cínzea da manhã, leu estas
palavras tenebrosas:
EIS O
FANTASMA OTIS.
A Única
Assombração Autêntica e Original.
Desconfiem
das Imitações.
Todos os
Outros são Réplicas.
Num instante percebeu tudo. Ele fora enganado, impelido e
burlado! Os seus olhos recuperaram a típica expressão dos Canterville; ele
rangeu os seus maxilares desdentados, e, levando as mãos engelhadas ao alto,
jurou, segundo a pitoresca fraseologia da escola antiga, que, quando o galo
soasse duas vezes o seu alegre canto, actos sangrentos ocorreriam e o
assassínio se aproximaria com passos silenciosos.
In «O fantasma de Canterville (The Canterville Ghost)», de Oscar Wilde (1887; tradução de Rita Canas Mendes; consultoria linguística para a versão portuguesa: Francisco Serra Lopes), colecção «AudioBooks / Livros Bilingues», Ara Llibres S.C.C.L. (EMSE EDAPP, S. L.), Barcelona (Espanha), 2014 (distribuído com o Correio da Manhã, em Janeiro de 2015).
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